terça-feira, 28 de agosto de 2012

Ars longa, vita brevis

Jorge Adelar Finatto


pintura: Theodore Gudin

 
A obra de arte lembra a garrafa que o náufrago joga ao mar com manuscrito dentro, desde sua remota e desesperada ilha. Quer o autor que alguém recolha sua garrafa das águas revoltas e leia a urgente mensagem.

Ultimamente, tenho lido escritores que lançaram suas garrafas ao mar há muito, muito tempo. Estão já mortos em suas solitárias ilhas. Não deixa de ser comovente que os mortos continuem conversando com os vivos através dos textos que escreveram.
 
A arte é longa, a vida é breve.

Assim como os escritores, músicos e pintores também atiram garrafas ao mar por meio de suas músicas e pinturas, esperando comunicar-se.

A morte não tem o dom de matar a arte.

Litterae non dant panem. As letras não dão pão, diz o provérbio latino. O que isto importa? A nossa fome é espiritual, é de outra natureza nosso pão.
 
A obra de arte instaura uma espécie de diálogo atemporal entre os indivíduos de diferentes épocas. A criação não se submete às leis do tempo.
 
De certo modo, a arte nos reúne em torno de seu lume como a fogueira reunia os habitantes da antiga caverna em torno do fogo.
 
Por isso, não está errado dizer que para a arte só existe uma idade: a da permanência da beleza e da vida sobre todas as mortes.

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Ars longa, vita brevis. Do latim. A arte é longa, a vida é breve. Expressão utilizada por Sêneca em Sobre a brevidade da vida, citando Hipócrates.

Pintura: Theodore Gudin, França, 1802 - 1880. Fonte: Pintores famosos: http://www.pintoresfamosos.cl/obras/gudin.htm
 

sábado, 25 de agosto de 2012

A guardiã da alma e do tempo

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


A máquina de escrever é a verdadeira máquina do tempo.*
 Guillermo Cabrera Infante
  
Contigo aprendi a escutar a chuva.

Foi o que fiz, Maria, ontem, na madrugada de insônia. E me lembrei das tardes antigas em que, no inverno, me contavas histórias na velha casa de madeira e eu adormecia ouvindo a tua voz misturada na voz do vento.

No fundo do pátio, entre os plátanos, passava o Arroio Tega, fazendo rumor sobre os seixos, conversando com os canteiros da horta.

O arroio rompia desde o interior verde da mata e levava mundo afora meus barcos de papel e as folhas das árvores.

Nas águas claras a nossa vida se refletia, misturada ao azul do céu e à cor luminosa dos peixes.

O mundo era suave e leve como ninho de passarinho.

A casa se enchia com aroma de cravo, mel, açúcar queimado e  canela. Quando acordava, sobre a mesa da cozinha estavam os doces que tinhas feito.

Nunca houve um mundo mais cálido do que aquele que construías ao meu redor. Nem existiu abraço mais terno e verdadeiro no teu menino.

Tecias com tuas mãos delicadas o ofício de guardiã do tempo e da minha alma.

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* A Ninfa Inconstante, Guillermo Cabrera Infante, p. 16. Coleção Literatura Ibero-Americana, Folha de São Paulo, 2012.
 

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O escândalo das hortênsias

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


As hortênsias resolveram embelezar o mundo. Era só o que faltava.
 
Em meio a tanta desilusão, tanta feiura das almas, tanta gente má e casca grossa, vêm agora as hortênsias e decidem distribuir beleza e graça.

Um negócio muito estranho.


photo: j.finatto 

 
Um verdadeiro absurdo aqui em Passo dos Ausentes.

Quando achava que não tinha mais jeito, quando nada mais esperava diante do triste espetáculo humano, as hortênsias surgem em silêncio, espargindo cor e delicadeza sobre cinzas.

Tanta beleza é mesmo uma violência contra os cidadãos. É o fim dos tempos.

Devia ser aberto um processo contra as hortênsias por tamanho escândalo, verdadeiro atentado ao pudor. Mas ninguém faz nada.

Nem maldizer a vida em paz a gente pode agora.


photo: j.finatto

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O título podia ser A sagração da primavera, uma feliz recordação da música de Igor Stravinsky, diante da estação que se aproxima. 
Texto postado em 12/12/2011.
 

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Glauber, Guimarães Rosa, Jorge Mautner

O Cavaleiro da Bandana Escarlate

Jorge Mautner e o diretor Heitor D'Alincourt no
tapete vermelho (Foto: Cleiton Thiele/Pressphoto


Na sexta-feira, 17, ainda com olheiras e calafrios da gripe (que me derrubou por cinco dias no quarto de hotel), compareci ao cinema para o último dia do Festival de Gramado (único a que pude assistir).

Não comuniquei antes ao autor do blog o meu estado, achando que me recuperaria a tempo. Nada disso. Henriette, a gentil francesa que está em minha casa (de visita) há 25 anos (ela afirma que ainda não decidiu se ficará comigo ou se retornará a sua iluminada Paris), estranhou a ausência dos textos sobre o festival (conforme me havia comprometido no post do dia 10), subiu a serra para ver o que estava acontecendo. Me salvou.

A doce demoiselle jogou-me no banco traseiro do meu antigo Citroen (preto, com aqueles paralamas ondulados que até parecem pista de tobogã), trouxe-me de volta para o solar aqui na Praça Maurício Cardoso, onde convalesço. Coloquei as chinelas e o roupão de Marcel Proust, e entrei no espírito.

Contou-me ela (acho que gosto dessa garota mais do que pensava) que durante a penosa viagem de Gramado a Porto Alegre (o fordeco não passa dos 50 km/h) eu delirei. Era a febris maledicta falando em mim.

Segundo Henriette, conversei com seres invisíveis, entre eles Glauber Rocha. No meu delírio, o glorioso cineasta baiano assegurou que estava voltando a fazer filmes. O projeto imediato era filmar A terceira margem do rio, conto de J.G. Rosa (inventor da obra-prima universal Grande sertão: veredas).

Mas tudo não passou de um desejo inconsciente, aflorado quase in extremis.

                         *                        *                        *

O que mais gostei, nesse derradeiro dia da mostra competitiva, foi Jorge Mautner, o filho do holocausto, direção de Pedro Bial e Heitor D'Alincourt. Sempre me interessou a visão irreverente, criativa e reveladora que Mautner tem do nosso país e do nosso mundo.

De origem judaica,  seus pais emigraram para o Brasil, fugindo do holocausto. Ele nasceu a 17 de janeiro de 1941 no Rio de Janeiro. Uma parte de sua família foi morta nos campos de concentração nazistas.

Jorge Mautner é filho dessa história e daquela outra, muito mais rica e luminosa, que começa com seu nascimento no Brasil, passa pela formação em cultura tão diversa como a brasileira e continua no escritor, filósofo, músico, compositor e artista que ele se tornou.

Sua construção humana está toda marcada pela experiência existencial no cadinho chamado Brasil, onde tudo que no mundo se divide aqui se encontra, gerando uma outra coisa.

A terna babá com quem Jorge conviveu até os sete anos era ialorixá e o levava ao terreiro de candomblé, no qual o menino ouvia os batuques, via as cores, movimentos. Nunca mais esqueceu.

Mautner vê o mundo a partir do Brasil, com sua miscigenação, suas mesclas culturais, seus modos de ser e fazer, seu rico acervo de influências em todos os campos, tudo isso e mais a prática da tolerância pela necessidade de convivência com o diferente.

Jorge, presente no Palácio dos Festivais em Gramado, disse antes da projeção do filme:

Ou o mundo se brasilifica ou virará nazista.

E afirmou, também: Esse filme representa a amálgama do Brasil universal. (...) Árabes e judeus aqui são sócios.

Isto e muito mais temos a admirar neste belo documentário-documento: a revelação do que somos e do que podemos vir a ser. O filme ganhou três prêmios (Kikitos): melhos fotografia, melhor roteiro e melhor montagem, na categoria dos longas-metragens nacionais.

Estará, digo eu, no convívio de opostos e de diferentes, nessa aceitação da alteridade, na transposição para um outro estágio civilizatório a possível contribuição brasileira para um novo mundo, muito mais fraterno e humano.

Gostei do filme por tratar dessas questões de forma aberta, com esperança, sem endurecer interpretações, pelo contrário, abrindo possibilidades  para o futuro que aqui já começou, mestiço e plural, em direção ao homem e mulher solidários, nesse novo tempo no qual ansiamos viver.

Agora desligo a máquina pois Henriette me busca para sorver o caldo verde (enclave lusitano em nosso viver), sob a pérgula, no jardim. Olho para nós assim e penso que somos dois adoráveis velhinhos (espero que essa garota não volte para a França tão cedo).

domingo, 19 de agosto de 2012

Efêmera canoa

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Vista do continente parece uma figura saída de um cartão postal. Recordação de um passado distante.

Diante da cidade indiferente, atravessa lenta e quase invisível a canoa.

Nenhuma imagem é tão bela como a cidade e seu rio.

A solidão da canoa desliza na paisagem, em lenta e agonizante viagem em direção ao crepúsculo.

O homem atrás do peixe.

O pescador e o peixe à sombra da cidade cinza e desolada.

O observador, na beira do rio, alimenta a ilusão de beleza e permanência.

O olho faminto registra o calado movimento, a passagem da canoa em seu delicado itinerário.

A canoa, a cidade, o homem, o peixe e o olho habitam o efêmero momento.

Todos rumo ao oblívio.

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Porto Alegre e o Rio Guaíba. Texto revisto, publicado antes em 24, fevereiro, 2012. 

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Como esses pássaros que emergem

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto



Como esses
                     pássaros
que emergem
de remotos abismos
o poeta ressurge
no coração da ilha
                     para colher
a suma revelação



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Do livro O habitante da bruma, Jorge A. Finatto. Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

As borboletas de Fukushima

Jorge Adelar Finatto

borboleta com mutação (abaixo). Agência EFE

As borboletas que vivem nas áreas próximas à Usina Nuclear de Fukushima, no nordeste do Japão, estão sofrendo mutações genéticas.

A radiação liberada no ambiente durante o acidente ocorrido na usina, em março de 2011, em razão do terremoto e do tsunami que assolaram o país, está alterando as formas das asas e antenas das borboletas, entre outras mudanças. A notícia foi publicada no Scientific Reports desta semana.
A incidência das mutações se dá em borboletas que comem alimentos contaminados pela radiação e naquelas cujos pais já foram atingidos por alterações genéticas.

Cresce no Japão e no mundo a consciência de que precisamos partir urgentemente para o uso de energias limpas, como eólica e solar, deixando para trás a atômica e a que resulta da queima de combustíveis fósseis.

O risco de acidentes nucleares coloca em constante perigo a existência dos seres vivos em nosso planeta. Não precisa muito: um erro humano, um evento da natureza ou um desastre por qualquer motivo são suficientes para causar irreparáveis danos genéticos, quando não a extinção da vida.

As borboletas, ao natural, têm vida brevíssima, duram em média de duas a quatro semanas. Algumas mariposas vivem apenas um dia.

Além das horas que destinam a coisas prosaicas como prover suas necessidades e fugir de predadores, pouco tempo resta às borboletas para viver e ser feliz.

O tempo das borboletas de Fukushima ficou ainda menor, depois que a radiação lhes impregnou o corpo frágil. Sabe-se lá as dores que sentirão com as mutações, para não falar da decepção de se sentirem diferentes das outras.
As mutilações genéticas das borboletas dizem respeito a todos nós. A brevidade da nossa própria existência recomenda todo o cuidado possível com a vida em geral. Precisamos compartilhar com os outros seres o milagre de estar vivo.
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Sobre o tsunami no Japão em março de 2011:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/03/hokkaido-ilha-do-coracao.html