quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Os saltimbancos

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto. Veneza, Itália
 
 
A vida é um teatro de saltimbancos sem tempo para ensaiar. Nós somos os atores improvisados no oblíquo palco da existência. Vivemos o frágil instante imersos em acontecimentos sobre os quais não temos nenhum controle, ninguém tem.
 
Não existe papel fácil nessa tragicomédia. Todos os gestos, todas as falas são inaugurais, irrepetíveis, e não vêm precedidos de qualquer espécie de roteiro previamente organizado.

Viver não acontece num cenário ideal. Não recebemos script ao nascer. Construímos o personagem na medida em que vivemos a história.

Esta construção se dá através dos valores que recebemos, em casa e no mundo, e da crítica que fazemos em relação a esses mesmos valores. O pensamento crítico não dissociado do sentimento humano é o que pode nos valer na difícil composição.

O essencial é saber se temos capacidade de nos colocar no lugar do outro, de ouvi-lo, de nos comover com suas circunstâncias. E nunca aceitar a violência física, moral, intelectual ou de qualquer tipo como forma de legitimação e exercício de poder.

Raramente nosso desempenho sai como gostaríamos. Há sempre espaço para algo melhor, mais refinado, mais feliz talvez. No fundo queríamos um cenário mais luminoso e humano, um enredo menos sofrido, mais poesia e menos prosa.

Vivemos ao relento o sonho dos saltimbancos.

A peça teatral nunca se completa, não existe o grand finale. As histórias são cruas, comuns, às vezes com alguma luz, sempre tão diferentes, tão iguais.

Somos personagens em carne viva sobre o palco vazio, sozinhos diante do imponderável. Vivemos ao vivo, apresentação única. E não podemos rasgar a fantasia.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

A cidade dos ipês (e do medo nas ruas)

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto


Os ipês invadiram Porto Alegre nesses dias que antecedem a primavera (começa no dia 22 de setembro). A beleza dessas árvores nas ruas da cidade impressiona. No inverno passam sem ser notadas. Agora explodem.
 
A elevação da temperatura em agosto, em pleno inverno, precipitou a floração. Nos últimos dias do mês, contudo, voltou a esfriar bem, ventou, choveu. Não sei o que será das flores com a brusca mudança. Por enquanto estão aí.

Como todos os seres vivos, as flores precisam de reservas de saúde e paciência para agüentar o desequilíbrio provocado pelo homem. Uma coisa danada.


photo: j.finatto

Os ipês, como nós, são sobreviventes de um clima louco. As cores vivas, variadas e delicadas transformam o espaço público em algo mais bonito.

Numa cidade onde quase não se pode sair à noite a pé devido à violência, isto é um consolo. A cidade ferida sabe ser dura com a leveza e com a inocência. Mas ostenta, ironicamente, um alto nível de arborização, entre os maiores do mundo. O Guaíba com suas águas doces e largas colabora com esse ambiente.


photo: j.finatto

Não é possível ficar indiferente a um ipê de flores cor-de-rosa (ou brancas ou amarelas ou roxas) iluminando a calçada.

Na medida em que as flores vão caindo, formam tapetes no chão que os distraídos pisam.

Se alguém está pensando em se matar por esses dias, recomendo: antes do ato-extremo-pura-desilusão-ressaca-de-viver, saia um pouco de casa e vá andar pelas ruas do seu bairro em meio aos ipês. Talvez mude de ideia.

O espetáculo das árvores em Porto Alegre mostra que a vida pode ser muito mais do que fazem crer os semblantes tensos e melancólicos que habitam as nossas ruas.

 

sábado, 1 de setembro de 2012

Camafeu sentimental

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

Deve ter sido assim
num lugar assim
num tempo assim

ele foi feliz um dia
sem saber o que era
felicidade

Uma fotografia guardada há muito tempo na gaveta é um achado. Ele já esteve nesse lugar. Nem sabe mais quando. Uma velha casa de madeira entre pinheiros. Um córrego esperto cantando ali perto. Pode ouvi-lo agora claramente. Na janelas laterais, floreiras com gerânios de variadas cores.

Lá dentro, em volta de uma grande mesa, pessoas se reúnem para o café da tarde. Um alarido de véspera de primavera. O menino olha aqueles rostos iluminados. O cheiro de pão feito em casa, no fogão de ferro, se espalha por tudo.

Em volta daquela mesa, retratos na parede. Em volta da parede, o mundo gira em lentas rotações.

O aroma de jasmim invade o ambiente. No quintal, caminha-se entre laranjeiras, ameixeiras, romãs, pitangueiras, mamoeiros, parreira, abacateiros. O cinamomo florido abre os galhos perto do poço, o banco pintado de branco embaixo.

Há muito tempo ele não visitava a casa da infância.

As buganvílias exalam azul e branco no jardim.

O gato dorme entre novelos de lã na cadeira de balanço.

Um dia recortado no tempo. Pessoas vivendo sem medo da separação. Cálida alegria.

A fotografia, camafeu sentimental.

Deve ter sido assim, num lugar assim, num tempo assim, ele foi feliz um dia, sem saber o que era felicidade.
 
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Texto publicado em 7, setembro, 2011.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O peixe da boca vermelha

Jorge Adelar Finatto
  photos: j.finatto
 

photo: j.finatto


A caminhada polifônica destina-se não apenas ao exercício do corpo como à indispensável atenção às coisas do espírito.

A observação dos seres vivos e da paisagem, a aproximação estética e sensorial da mãe natureza, a respiração do ar limpo e fresco das manhãs (ou tardes), na montanha, a descoberta de inefáveis epifanias durante o percurso, tudo isso faz parte da polifonia andante.
 


Andava eu nas cercanias do Lago da Neblina, em Passo dos Ausentes, prevenido com a invencível Coruja, a vetusta máquina fotográfica que me acompanha.

Os gansos desistiram de acusar a minha presença. Sabem que sou apenas um caminhante que está só de passagem, um sujeito inofensivo, que anda a bordo de um chapéu de palha branco, com grossas e estapafúrdias lentes nos óculos, catando o invisível.

Um indivíduo assim não oferece risco à fauna e à flora, quiçá a si mesmo.

Nas margens e dentro do lago existe vida pulsante. Estava eu olhando o vazio (essa maneira de encontrar, talvez, o inesperado) quando ouvi um vago rumor na água.


Foi quando me apareceu o amigo (ou amiga) dessas fotos.
 

Um peixe branco, a boca pintada de vemelho, com traços coloridos espalhados pelo corpo, cerca de 1 metro de comprimento, passou a navegar perto de mim. Tive a impressão de que sabia da sessão de fotos, ao menos não poupou poses e movimentos.

Chegou-se mais para a beira, mas não tão próximo que não pudesse ativar um plano emergencial de fuga caso isso fosse necessário. Não foi.
 
 
O peixe da boca vermelha quis dizer alguma coisa com sua presença, e acho que conseguiu. Encheu de beleza a tarde e o meu coração.



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Texto publicado em 25 de janeiro, 2011.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Ars longa, vita brevis

Jorge Adelar Finatto


pintura: Theodore Gudin

 
A obra de arte lembra a garrafa que o náufrago joga ao mar com manuscrito dentro, desde sua remota e desesperada ilha. Quer o autor que alguém recolha sua garrafa das águas revoltas e leia a urgente mensagem.

Ultimamente, tenho lido escritores que lançaram suas garrafas ao mar há muito, muito tempo. Estão já mortos em suas solitárias ilhas. Não deixa de ser comovente que os mortos continuem conversando com os vivos através dos textos que escreveram.
 
A arte é longa, a vida é breve.

Assim como os escritores, músicos e pintores também atiram garrafas ao mar por meio de suas músicas e pinturas, esperando comunicar-se.

A morte não tem o dom de matar a arte.

Litterae non dant panem. As letras não dão pão, diz o provérbio latino. O que isto importa? A nossa fome é espiritual, é de outra natureza nosso pão.
 
A obra de arte instaura uma espécie de diálogo atemporal entre os indivíduos de diferentes épocas. A criação não se submete às leis do tempo.
 
De certo modo, a arte nos reúne em torno de seu lume como a fogueira reunia os habitantes da antiga caverna em torno do fogo.
 
Por isso, não está errado dizer que para a arte só existe uma idade: a da permanência da beleza e da vida sobre todas as mortes.

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Ars longa, vita brevis. Do latim. A arte é longa, a vida é breve. Expressão utilizada por Sêneca em Sobre a brevidade da vida, citando Hipócrates.

Pintura: Theodore Gudin, França, 1802 - 1880. Fonte: Pintores famosos: http://www.pintoresfamosos.cl/obras/gudin.htm
 

sábado, 25 de agosto de 2012

A guardiã da alma e do tempo

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


A máquina de escrever é a verdadeira máquina do tempo.*
 Guillermo Cabrera Infante
  
Contigo aprendi a escutar a chuva.

Foi o que fiz, Maria, ontem, na madrugada de insônia. E me lembrei das tardes antigas em que, no inverno, me contavas histórias na velha casa de madeira e eu adormecia ouvindo a tua voz misturada na voz do vento.

No fundo do pátio, entre os plátanos, passava o Arroio Tega, fazendo rumor sobre os seixos, conversando com os canteiros da horta.

O arroio rompia desde o interior verde da mata e levava mundo afora meus barcos de papel e as folhas das árvores.

Nas águas claras a nossa vida se refletia, misturada ao azul do céu e à cor luminosa dos peixes.

O mundo era suave e leve como ninho de passarinho.

A casa se enchia com aroma de cravo, mel, açúcar queimado e  canela. Quando acordava, sobre a mesa da cozinha estavam os doces que tinhas feito.

Nunca houve um mundo mais cálido do que aquele que construías ao meu redor. Nem existiu abraço mais terno e verdadeiro no teu menino.

Tecias com tuas mãos delicadas o ofício de guardiã do tempo e da minha alma.

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* A Ninfa Inconstante, Guillermo Cabrera Infante, p. 16. Coleção Literatura Ibero-Americana, Folha de São Paulo, 2012.
 

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O escândalo das hortênsias

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


As hortênsias resolveram embelezar o mundo. Era só o que faltava.
 
Em meio a tanta desilusão, tanta feiura das almas, tanta gente má e casca grossa, vêm agora as hortênsias e decidem distribuir beleza e graça.

Um negócio muito estranho.


photo: j.finatto 

 
Um verdadeiro absurdo aqui em Passo dos Ausentes.

Quando achava que não tinha mais jeito, quando nada mais esperava diante do triste espetáculo humano, as hortênsias surgem em silêncio, espargindo cor e delicadeza sobre cinzas.

Tanta beleza é mesmo uma violência contra os cidadãos. É o fim dos tempos.

Devia ser aberto um processo contra as hortênsias por tamanho escândalo, verdadeiro atentado ao pudor. Mas ninguém faz nada.

Nem maldizer a vida em paz a gente pode agora.


photo: j.finatto

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O título podia ser A sagração da primavera, uma feliz recordação da música de Igor Stravinsky, diante da estação que se aproxima. 
Texto postado em 12/12/2011.