sexta-feira, 12 de outubro de 2012

No café do tempo com Ruy Belo

Jorge Adelar Finatto

 

Ruy Belo
Estou aqui no café, esta velha casa serrana de madeira, com suas mesas cobertas com toalhas coloridas de tecido xadrez. Hoje é quarta-feira, 18h, 10 de outubro de 2012.

O texto vai datado, um tempo de clepsidra, para que os arqueólogos literários, daqui a 50, 100 anos, possam se situar, se por acaso chegarem com seus instrumentos de escavação nesta página carcomida pelo tempo. Peço desculpas, antecipadamente, porque não estarei aqui para recebê-los.

Estou com os sapatos molhados de andar na chuva. Molhados de sonho, de distância. Olho agora através da janela do café, o frio molhado, espelhado, que faz na rua. Um pouco de neblina, vento.
 
Que raio de primavera, diz alguém. Eu não digo nada, só quero curtir o clima, acho isso uma beleza, dia pluvioso, gris. Porque além do frio, as flores dos arbustos fluem em azul e branco, mais o perfume, pena não se possa, ainda, reproduzir aroma na página luminosa.

As primaveras - assim chamam-se esses arbustos - florescem nos pátios, terrenos baldios, calçadas da pequena cidade.
 
O rastro de chuva, gotas prateadas, sobre o capote azul que penduro na cadeira ao lado, não quero arriscar um resfriado, uma gripe. Um espirro sobre o texto seria uma indelicadeza com o raro leitor.

Hoje me sinto trinta anos atrás (a idade, nessa altura, pouco importa, tantas vezes já morri e tantas outras ressuscitei), o que importa é que cheguei até esse dia de chuva luminosa, meio sem eira nem beira, talvez,  mas profundamente agradecido por poder andar na chuva e por estar agora aqui no café, num dia assim de fria, úmida, cálida primavera.

Um dia assim enfaruscado, quando tudo parece perdido para alguns, mas aí acontece de poder sentar nesta mesa, numa velha casa serrana, numa quarta-feira de tarde.
 
Escrevo essas coisas na folha branca do guardanapo, o café fumega na xícara, tem cheiro e um certo gosto de anis-estrelado.
 
No bolso do capote (azul-marinho), encontro um papel dobrado, o que será?

Uma folha de calendário marcando o dia 7 de abril de 2003, uma segunda-feira. Nela está escrito um texto do poeta português Ruy Belo (1933 - 1978), o poema se chama O valor do Vento (do livro Todos os Poemas). Ouçamos o que diz o bardo:
 
Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto 
 
É belo o poema, belo o poeta Ruy Belo na sua busca do inefável, da emoção além das palavras. Tão belo como este dia de inverno na primavera. O calendário, lembro, comprei numa livraria em Lisboa, dele tirei esta página e guardei no bolso do capote para que o poema esteja sempre por perto, para que a poesia não me abandone, para que possa conversar com o poeta Belo enquanto caminho por aí em dias de chuva e vento.

Trazer poemas no coração é uma maneira de tentar parar o tempo, ainda que por um ínfimo instante. 
 
Agora escureceu, o tempo escorreu na clepsidra. A garoa miúda escorre no vidro do café. Gotas de luz deslizam nos óculos.
 
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  Foto: Ruy Belo. O crédito da imagem será dado tão logo conhecido. Fonte:  http://norastoderuybelo.blogspot.com.br/

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Encontro macabro

Jorge Adelar Finatto 
 
photo: j.finatto


Na verdade, eu não devia ter feito a primeira pergunta: "Como vai teu pai?" O amigo de infância, que não via há muitos, muitos anos, respondeu que o pai tinha morrido. Constrangido, perguntei, então, pela mãe, uma senhora querida, que me acolhia com gentileza. "A mãe também morreu, foi logo depois do pai."
 
Desconfortável, resolvi indagar por alguém muito mais jovem, a irmã, que certamente estaria viva e com saúde. "A Fernanda? Morreu no ano passado, uma doença fulminante, deixou marido e dois filhos."

A situação tornou-se insustentável. Notei que ele franzia a testa a cada resposta e me olhava fixamente, como a estudar minha reação diante da hecatombe.
 
Para amenizar, doce ilusão, perguntei se estava casado. "Sim, casei mas me separei. Tivemos um filho. Um menino, que morreu com um aninho."

Devastado, não consegui continuar a conversa. Lamentei sinceramente as perdas, desejei-lhe felicidades, despedi-me, atravessei a praça, fui embora o mais rápido que pude.

Aquele encontro foi um desastre. O curioso é que não senti de parte do infeliz um estado de consternação. Falava como se estivesse conversando a respeito do clima. O tempo todo me olhando como quem examina um ser ao microscópio. Quanto a ele, não sei, mas eu fiquei mal.
 
Depois daquele dia, não faço mais esse tipo de pergunta.
 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Brasil, árvore frondosa

Jorge Adelar Finatto

Árvore Pau-brasil (Caesalpinia echinata). Jardim Botânico, Rio de Janeiro.
Autor: Mauro Guanandi. Fonte: Wikipédia
 

O Brasil, essa árvore frondosa, multirracial, multicultural, está avançando. Não rumo ao abismo, como querem alguns, mas a um lugar mais luminoso. Para quem, como eu, em vários momentos da vida perdeu a esperança num país melhor, há motivos para estar mais otimista.

O meu sonho de Brasil é ver o país livre da corrupção, sem dar-lhe espaço nem trégua para instalar-se e reproduzir-se. Com isso outros males, como a pobreza e a violência, vão reduzir-se e poderão um dia, quem sabe, ser superados.
 
Este Brasil diferente começou a amanhecer na medida em que o aprendizado da democracia iniciou entre nós após o período ditatorial (1964 - 1985).

A exigência de ética na política e na vida em sociedade hoje se impõe.
 
O julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal, envolvendo o famoso caso do mensalão, responde a esse anseio geral de responsabilização de quem insiste em manter condutas incompatíveis com o bem comum.

As eleições municipais de ontem, por seu lado, evidenciam que a população quer participar da construção de uma  realidade baseada em valores. O povo não está dormindo.
 
A árvore está crescendo, tornando-se a cada manhã mais forte e bela. Nela, o respeito ao direito e à justiça passa a ter um alto valor, sem o que não há vida digna de merecer este nome. 
  

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O sonho da primavera

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Essa a visão de Passo dos Ausentes. O frio polar dos últimos dias prolonga o inverno no coração da primavera. As árvores floriram, os pássaros cantam, a bela estação começou, mas aqui nos Campos de Cima do Esquecimento o intruso insiste em não desocupar a sala. Uma indelicadeza.
 
Tem feito entre quatro e nove graus Celsius durante a tarde. Essas temperaturas contrastam com o cheiro doce das flores. À noite, ontem de madrugada, fez menos três graus. Mas a sensação era de menos 8 ou 10. Foi uma das noites mais frias do ano, ao menos pra mim.

Um homem, uma mulher não podem passar o dia na frente do fogão a lenha ou da lareira. O trabalho e as obrigações da vida reclamam nossa presença. Então é preciso sair do ninho. Só saio com o intimorato e nunca suficientemente louvado capote, afundado no calor da lã. E com o boné para evitar o contato do telhado com garoas e nevoeiros. O problema dos óculos: opacos.

Um peixe sonhando no aquário.

photo: j.finatto

O inverno é um general farroupilha teimoso, que não quer abandonar os territórios perdidos para as alegres e coloridas tropas da primavera. Às vezes me pego sonhando viver num lugar solar como a Bahia. Mas temo que o inverno vá junto com seu arsenal de tempestades, raios, relâmpagos, trovadas e gelos. Melhor não envolver os baianos nisso.

Não sou contra o inverno, por favor. Gosto, até porque, em Passo dos Ausentes, não se tem outra escolha. Hoje pela manhã o gramado amanheceu branco. Bonito (olhar da janela). Enquanto isso, ouço a Sonata para violino e piano, segundo movimento, intermezzo, de Poulenc (Très lent et calme), que vai abrindo caminho de luz em meio à neblina.

Um sentimento de beleza vem das orquídeas nos vasos, troncos e galhos. Rara visão. Motivo para esperar que a primavera conquiste de vez o espaço que por direito lhe pertence.

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A misteriosa expedição da Nasa a Passo dos Ausentes:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/08/misteriosa-expedicao-da-nasa-passo-dos.html
 

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Raios riscam a escuridão e assustam o silêncio

Jorge Adelar Finatto


Imagem: site da Secretaria Nacional de Defesa Civil:
http://www.defesacivil.gov.br/desastres/recomendacoes/raio.asp
 
 

As nuvens são fábricas de raios.

Escutei no rádio que entre a noite de domingo e a madrugada da segunda-feira caíram sobre o Rio Grande do Sul 5.344 raios devido às tempestades. Existe um órgão estatal encarregado de verificar a eletricidade na atmosfera que apura o fenômeno. Junto com os raios veio chuva de granizo com algumas pedras do tamanho de um ovo.
 
Conforme se noticiou, o Rio Grande do Sul é o 4º estado com maior incidência de raios no país, 5 milhões, 180 mil descargas por ano.
 
Em Passo dos Ausentes, raios, trovões, relâmpagos nos afligem o ano inteiro.  Quando o tédio é muito lá no céu, as autoridades celestes mandam uns raios sobre nossas cabeças, mesmo em dias de sol e pouca nuvem, só pra ver o pessoal levar um susto e não esquecer quem manda.

Os ateus passam mal aqui nos Campos de Cima do Esquecimento, porque não conseguem explicar, através da razão, as coisas fora do entendimento que nos acontecem. Não bastassem as angústias normais da vida de todo vivente (de onde venho, para onde vou?), eles ainda têm de engolir em seco o que está além das aparências.
 
Não sei como os técnicos do governo fazem pra contar as descargas elétricas. Os dados divulgados são minudentes: 5.344 raios, em poucas horas, nem mais nem menos.

Haverá o cargo público de contador de raios? Acho que não. Ofício assim tão perigoso e barulhento, quem havia de querer? Sei lá.
 
O que sei é que há mais mistérios entre o risco do relâmpago e a escuridão das almas do que supõe a nossa vã sabedoria.
 

domingo, 30 de setembro de 2012

Paris, um passeio literário

Jorge Adelar Finatto

 
photo: j.finatto


Aquela era uma suave manhã de outono em Paris, novembro, 2011. Saí do hotel disposto a rever, descobrir e fotografar prédios onde viveram escritores e pensadores que admiro, entre o final do século XIX e início do XX. Um percurso entre o Quartier Latin, Montparnasse, Jardin du Luxembourg e Saint-Germain-des-Prés. Os canteiros e vasos floridos do Jardim do Luxemburgo, onde está o palácio do senado da França, brilhavam em suas muitas cores. Comecei por ali a caminhada.
 
photo: j.finatto

Como qualquer cidade, Paris vive nos detalhes. Na capital francesa, eles não são poucos e têm a ver com o ambiente de suas ruas, parques, praças, cafés, museus, o rio Sena, isso tudo aninhado numa arquitetura preservada, numa cultura e numa história que influenciaram o resto do mundo. Paris é o cenário onde muitos homens e mulheres de diversas origens viveram e criaram, construindo obras que se tornaram referência.

O melhor jeito de conhecer é andar a pé, tomando cuidado para não ser atropelado. O trânsito de veículos é pesado. Em Paris, as pessoas também andam com pressa e preocupadas, nas ruas e calçadas. E, como no restante do planeta, em Paris não se vivem tempos cordiais.

A Paris humana, gentil, berço da cultura e lugar de convivência, que tanto se presta ao assim chamado turismo cultural, está visceralmente ligada ao passado. As três primeiras décadas do século XX, por exemplo.

Nas cercanias do Jardin du Luxembourg, encontramos o edifício nº 27 da Rue de Fleurus. O apartamento-estúdio alugado em 1903 por Léo Stein, irmão da escritora e animadora cultural Gertrude Stein (ambos americanos), neste lugar, tornou-se importante ponto de encontro de artistas e escritores até 1938, quando o senhorio retomou o imóvel.

photo: j.finatto

Gertude ali viveu com o irmão e depois com a companheira Alice B. Toklas. O filme Meia-Noite em Paris, de Woody Allen, dá uma ideia de como eram aquelas reuniões.

photo: j.finatto

Entre os frequentadores, havia gente como Picasso, Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald e sua mulher Zelda, e muitos outros. Na época, a cidade foi destino de artistas e intelectuais de várias partes do mundo, principalmente americanos. Gertrude Stein, que gostava de passear pelo Luxembourg, teria então criado a expressão Geração Perdida para identificar os escritores vindos da América.

Não muito longe, na Rue Descartes, nº 39, situa-se o edifício onde o poeta Paul Verlaine viveu o último ano de sua vida e morreu, em 1896. No mesmo edifício, Hemingway alugou um quarto no último andar em 1921.

photo: j.finatto

No térreo, está localizado o restaurante La maison de Verlaine, onde o atendimento é humano.

photo: j.finatto

Descendo em direção à Notre Dame, encontramos, na rue Le Goff, nº 10, o Hôtel du Brésil, no qual o pai da psicanálise, Sigmund Freud, viveu durante um ano. Que eu saiba, esta foi a única "estada" do grande pensador e médico no Brasil.

photo: j.finatto

Não posso deixar de imaginar que pelo menos em algum dia, num momento de descanso, o então jovem Sigmund ficou a pensar sobre como seriam os brasileiros, as nossas palmeiras, praias e cidades. Não sei, porém, se disso lhe veio alguma claridade ou inquietação. Talvez ambas.

photo: j.finatto

Na rua Victor Cousin, nº 8, diante da Universidade Paris-Sorbonne (IV), está o Hotel Cluny Sorbonne; nele, há muito tempo, passou um período o poeta Arthur Rimbaud.

photo: j.finatto

Rimbaud, pelo visto, gostou muito do seu quarto, quando escreve Neste momento, eu tenho um quarto bonito.


photo:j.finatto

Ao lado, bem na esquina, na rue Cujas, nº 16, está o Hôtel des 3 Collèges, onde viveu García Márquez e lá escreveu, em 1957, o livro Ninguém escreve ao coronel, sua segunda obra. O escritor colombiano tinha então 29 anos, era jornalista e passava por sérios apertos financeiros. Diz-se que, vivendo uma fase de depressão, Márquez descia todos os dias até a portaria do hotel atrás de alguma carta da Colômbia, que nunca chegava.

photo: site do hotel https://www.3colleges.fr/fr/

Uma pequena circulada por esses lugares torna livros e autores mais presentes. A leitura de Paris é uma festa, de Ernest Hemigway, nos oferece um belo mapa dessa Paris literária, mexendo com a emoção e a imaginação da gente.

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Texto publicado em 11 de abril, 2012.
 

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Pilar, José e a rosa

Jorge Adelar Finatto 
 
photo: j.finatto
 
Todas as manhãs Pilar del Río cuida da rosa que cultiva ao lado da antiga oliveira que abriga, entre suas raízes, as cinzas do escritor português José Saramago (1922 - 2010), primeiro e até agora único Prêmio Nobel de Literatura de língua portuguesa.
 
photo: j.finatto

O fato acontece por volta das 9h na pequena praça em frente da Fundação José Saramago, na Rua dos Bacalhoeiros, em Lisboa, perto do Tejo.

Pilar também tira o pó do banco de mármore como se em seguida alguém fosse ali sentar para ler um livro ou simplesmente descansar à sombra da oliveira, transplantada da aldeia de Azinhaga, na Província do Ribatejo, onde nasceu Saramago. 
 
photo: j.finatto
 
Esta é a primeira atividade do dia da jornalista espanhola, viúva do escritor, que preside a fundação. O edifício onde está instalada leva o nome de Casa dos Bicos e pertence ao município. Foi construído no século XVI e  teve por modelo o Palácio dos Diamantes, em Ferrara, Itália. 
 
photo: j.finatto. Casa dos Bicos
 
A rega, o cuidado da flor, do lugar, da memória.
O cálido gesto de Pilar vale um milhão de palavras.
Um homem só morre de verdade quando deixa de ser amado.

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José Saramago, presença e falta:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/06/jose-saramago-presenca-e-falta.html

Pilar del Río: "Não há democracia" (jornal Expresso, Portugal):
http://expresso.sapo.pt/pilar-del-rio-nao-ha-democracia=f747258