domingo, 28 de outubro de 2012

O cavalinho de madeira

Jorge Adelar Finatto
 


 
Não sei há quanto tempo ninguém abria o armário sob a escada dos fundos da casa. Uma espécie de triângulo escaleno, cinza azulado, com fechadura cor de alumínio. Foi ali que o encontrei.
 
Um cavalinho de madeira, com a pintura já desbotada, um pouco de tinta azul, um pouco vermelha, quase apagada, apagada pelo incessante escorrer da areia na ampulheta. Terá sido o brinquedo de alguém que viveu nesta casa bem antes de mim, há muito, muito tempo.
 
Os olhos do cavalinho estão bem abertos, são vivos, vivos e castanhos. Da boca do cavalinho sai uma fina tira de couro em direção ao dorso.
 
Quando o encontrei, havia algo no seu olhar que implorava que o tirasse daquele armário. Ele queria sair e vir comigo. Deve ser bem triste ficar preso num lugar escuro.

Como a minha vida tem dias no escuro também e eu preciso de amigo, pensei, vou levá-lo daqui. Peguei-o nos braços.

O cavalinho respirou fundo, piscou os olhos devagar. Vi duas lágrimas rolarem entre os longos cílios negros sobre sua face.

Impossível descrever o seu ar de felicidade quando o levei a tomar ar fresco na grama do jardim. Ergueu as patas dianteiras e, num salto, estava agora solto, dando voltas no pátio.

Depois ele veio habitar no escritório a meu lado, tem os olhos voltados para o vale, diante da janela.

No armário, nesse sob a escada de madeira, ficaram ainda quatro bonecas de pano sentadas junto a um acordeom cor de vinho.

Um casal de bonifrates, com chapéus de palha e caras de maluco, está pendurado num canto. De quando em quando, uma bailarina de vestido branco rodopia ao som de uma caixinha de música.

Tanta coisa bonita e esquecida no mundo, pensei. Tanta gente esperando apenas que alguém abra a porta, deixe entrar um pouco de luz e estenda a mão.

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Ilustração: Maria Machiavelli
 

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Tévye, o leiteiro

Jorge Adelar Finatto

Já não me aborreço tanto com Deus - com Deus eu já me reconciliei; aborreço-me, sim, com as pessoas: por que são elas tão más, quando podem ser boas? Por que as pessoas amargam a vida quer do próximo, quer a sua própria, quando está em suas mãos viverem felizes e contentes? (Tévye, o leiteiro, pág.181).
 
 
Tévye, o leiteiro, do escritor Scholem Aleikhem, pseudônimo literário de Scholem Rabinovitch (1859 - 1916), é um dos melhores livros publicados nos últimos anos no Brasil. Faz parte, desde logo, da estante das grandes obras que li até hoje. 

Trata-se de um clássico da literatura ídiche, publicado este ano pela Editora Perspectiva. A tradução do ídiche para o português, bem como a organização, introdução e notas foram realizadas por J. Guinsburg.

O resultado é um trabalho de raro apuro, de transferência e generosidade cultural.

Tévye, o personagem-narrador, é um judeu pobre, vive no longínquo schtetl (a cidadezinha judaica do interior da Rússia czarista), é casado com Golde, pai de sete filhas e nenhum varão. Leva uma vida dura.

Uma bela e tocante conversação dele com o leitor percorre o livro.
 
Ele fala o tempo todo consigo próprio e com Deus. Assim o vemos nos solitários deslocamentos pela floresta, desde sua pequena propriedade rural até o povoado, com sua carroça e seu cavalo. Vai em busca do pão através do trabalho de vender aos fregueses creme de leite, manteiga, queijo, nata, produzidos pela família a partir do leite tirado das vaquinhas que possui.

O leiteiro-personagem conversa, também, desde o início, com o escritor Scholem Aleikhem, a quem conta seus eventos, emoções e pensamentos para que este fixe em palavras suas histórias. O monólogo-diálogo incessante estabelece uma narrativa que chama e cativa o leitor.

É da beleza, da dureza e dos meandros da vida que ele nos fala, a partir de uma visão ao mesmo tempo prática e espiritual da existência. Nada lhe escapa do coração sensível e do poderoso olhar de observador.

As preocupações com a sobrevivência, com o futuro da família e das filhas, com as perseguições e ataques contra os judeus na Rússia dos pogroms, com as injustiças e com o sentido desta vida figuram entre os assuntos que permeiam as histórias deste homem simples e sábio (a sabedoria é simples).
 
A obra fez muito sucesso quando transposta para o teatro e o cinema com o título de Um violinista no telhado. Na forma de musical, na Broadway, permaneceu em cartaz por mais de sete anos após a estreia em 1964. No cinema, em 1971, alcançou grande êxito de público e crítica, tendo conquistado três Oscars e dois Globos de Ouro.

A grandeza do livro não permite a leviandade de tentar resumi-lo numa singela resenha. O que importa ressaltar é que se trata de uma delicada e inesquecível viagem pela alma humana.

Scholem Aleikhem (que significa em hebraico "A paz seja convosco!") oferece-nos uma visão de mundo muito rica, um conhecimento profundo do modo de ser e de estar no mundo das pessoas. Nascido na Rússia imperial, acabou migrando para os Estados Unidos por força de perseguições. Veio a falecer em Nova York, deixando extensa obra e leitores fiéis.

O notável trabalho de Jacó Guinsburg, escritor, estudioso e crítico de teatro, ensaísta, editor, professor emérito da Universidade de São Paulo, agrega uma brilhante contribuição à língua portuguesa.

O patrimônio imaterial que se incorpora à nossa cultura, com esta publicação, é inestimável.

Tévye, enfim, anda agora pelas ruas e cidades do nosso Brasil, conversando com as pessoas, dando notícias de seu/nosso mundo, tão antigo, tão atual, tão difícil quanto humano.

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Tévye, o leiteiro, de Scholem Aleikhem. Organização, tradução, introdução e notas de Jacó Guinsburg. Ilustrações: Sergio Kon. Editora Perspectiva, São Paulo, 2012.

Editora Perspectiva:
http://www.editoraperspectiva.com.br/index.php
 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Biblioteca pública: um bosque no amanhecer

Jorge Adelar Finatto
 
Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul.
Fonte: site da BPE 

Nunca esqueci - como seria isto possível? - as horas passadas no bosque das estantes da Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul, na Rua Riachuelo, em Porto Alegre. Uma ilha de sol em meio à sombra.
 
Para o adolescente pobre, com dificuldades pela frente para construir o futuro, as horas vividas entre os livros foram um tempo de travessia. A entrada no bosque significava a possibilidade de sair do outro lado dentro de um mundo diferente, porque o caminhante já não era o mesmo. 
 
Naquele ambiente silencioso, iluminado por velhos lustres, mobiliado com vetustos móveis, o sonho era possível. A biblioteca foi um território de liberdade naqueles anos de ditadura militar e opressão social. A censura não podia invadir as páginas de cada livro e riscar o que considerava subversivo.
 
No bosque das estantes não havia agentes armados a caçar a emoção e o pensamento.
 
"O bosque das estantes". Foto: site da BPE.

Algumas leituras marcaram minha vida naquela época. Entre elas, uma antologia de poemas do poeta americano Robert Frost. Os Ratos e O Louco do Cati, de Dyonelio Machado. Do mesmo modo, as traduções de Vontade de Potência, do filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 - 1900), e de O Caminho do Campo, do também filósofo e também alemão Martin Heidegger (1889 - 1976) (o entusiasmo com o pensamento de Heidegger durou até saber de seu envolvimento com o nazismo).
 
O contato com textos de Manuel Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Alvaro Moreyra, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Fernando Pessoa, António Nobre, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles e outros abriu veredas de luz.
 
Além da leitura, havia palestras e recitais no Salão Mourisco. Um recital inesquecível de poesia foi apresentado pelo ator Walmor Chagas. Intitulava-se Partilha, título de um belo poema do escritor porto-alegrense Paulo Hecker Filho (1926 - 2005).
 
Antigo jardim. Foto: site da BPE.

A Biblioteca Pública necessita de apoio permanente para manter vivo o seu destino de iluminar corações e mentes. Ela está lá onde sempre esteve a partir de 1915 (a construção do prédio iniciou-se em 1912), na Rua Riachuelo esquina com General Câmara (no passado distante, Rua do Cotovelo e Rua do Ouvidor). Foi criada por lei em 1871, sendo instalada e aberta ao púbico em 1877.

A missão de oferecer arte, conhecimento, beleza e esperança não pode parar.

Na vida de muita gente aquela casa foi - e é - um bem. Um bosque no amanhecer.

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Biblioteca Pública do Estado do RS: http://www.bibliotecapublica.rs.gov.br/
 

domingo, 21 de outubro de 2012

Um poema de Manuel António Pina

Jorge Adelar Finatto

O poeta vive nas palavras
 e renasce toda vez que alguém lê o que escreveu. 
A nossa homenagem ao grande escritor Manuel António Pina.


Manuel António Pina (1943 - 2012). Foto: Alfredo Cunha.
Fonte: Jornal de Notícias, Portugal.


As Vozes
                  Manuel António Pina

A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

- Quem é?
- É a mãe morta
- São coisas passadas
- Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?

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Poema do livro Nenhuma palavra e nenhuma lembrança, Manuel António Pina, Editora Assírio & Alvim, Lisboa, setembro, 1999.

sábado, 20 de outubro de 2012

Adeus a Manuel António Pina

Jorge Adelar Finatto

Manuel António Pina. Jornal de Notícias, Portugal.

Fazia mais de um ano que eu lia, diariamente, as crônicas do poeta, jornalista e escritor português Manuel António Pina, publicadas na página da internet do Jornal de Notícias de Portugal. Ao abrir o notebook, geralmente ia para o endereço eletrônico do jornal, guardado entre os favoritos. Para tristeza de seus muitos leitores, ele morreu ontem à tarde, sexta-feira, aos 68 anos, na cidade do Porto, onde vivia, e o corpo será cremado neste domingo.

Essa convivência começou quando ouvi falar dele pela primeira vez, ao receber o Prêmio Camões de Literatura em 2011. Na ocasião me interessei pelo autor, pesquisei a respeito e encomendei um livro seu de Portugal, Nenhuma palavra e nenhuma lembrança.

Impressionou-me nesse período sua lucidez e sensibilidade ao tratar de assuntos que iam desde os meandros e mistérios da criação literária até os angustiantes temas da atualidade, na Europa e no mundo. A coragem do jornalista convivia nele com o poeta inventivo.

Em entrevista a Sérgio Almeida, do Jornal de Notícias, em 20 de julho de 2010, declarou Pina:

Não escrevo poesia como escrevo crónicas, profissionalmente. No caso da poesia, sou antes amador, isto é, aquele que ama. Só escrevo poesia quando não posso deixar de escrevê-la. Ou, como Borges diz (acho que é Borges), quando uma espécie de incomodidade, ou de remorso, me força a procurar a poesia. O facto de passar às vezes anos sem publicar poesia não significa que tenha deixado de escrever poesia. Tenho há muito um livro praticamente pronto, reunindo poemas dispersamente publicados aqui e ali, em jornais e revistas, e inéditos. Não tenho é tido tempo (nem pachorra) para trabalhar sobre alguns poemas que continuam à procura de si mesmos. Dois ou três deles estão há anos presos por um único verso; tenho, de alguns desses versos, inúmeras versões, ou tentativas, mas não são o que procuro. Embora não saiba o que procuro, sei que, quando o encontrar, o reconhecerei. Resta-me esperar; não tenho pressa.

No final de 2011, durante permanência em Portugal, eu ia todos os dias à banca comprar o JN só para lê-lo.

Desde agosto último procurava e não encontrava suas crônicas no Jornal de Notícias. Pensei que estava em férias prolongadas ou algo assim, escrever para jornal dia após dia é negócio de doido, precisa dar um tempo às vezes. Mas não, a doença o afastava do trabalho.

Ficamos agora, seus inumeráveis leitores, sem a referência diária de seu pensamento, seu espírito e seu talento.

A palavra solidária de Manuel António Pina fará muita falta.

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Manuel António Pina:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/05/manuel-antonio-pina-premio-camoes-de.html

Manifestações dos leitores do JN:
http://www.jn.pt/PaginaInicial/Cultura/Interior.aspx?content_id=2838135&page=-1

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Polifonia da primavera

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Vale do Olhar

 
Regressei há pouco da caminhada polifônica que fiz durante os dois últimos dias.
 
Colhi essas e outras imagens com a Coruja durante a andança.
 
O tempo bom de primavera foi ideal para a perambulação, anotações e fotografias nas cercanias do Vale do Olhar. Uma das visões mais bonitas que se tem aqui nas alturas de Passo dos Ausentes.

Me hospedei na Casa de Taipa, lá montei o escritório de campanha, também lugar de repasto e repouso.

photo: j.finatto
 
Nesses Campos de Cima do Esquecimento, habita uma das mais sensíveis e remotas paisagens que conheço, nem em revistas vi alguma vez coisa assim. Lugares povoados ainda com bichos e mata nativa.
 
Um surpresa que tive foi reencontrar o peixe da boca vermelha no Lago da Ausência. Há cerca de três anos tivemos nosso primeiro encontro, quando o descobri - ou ele me descobriu? - e fotografei pela primeira vez. Nunca mais nos encontramos.

photo: j.finatto
 
Como da outra vez ele surgiu do nada, do fundo das águas e veio até perto da margem onde eu estava. Deixou-se fotografar novamente. Conversamos um pouco na língua dos peixes, trocamos notícias e lembranças.
 
Depois encontrei o pássaro amarelo que eu não conhecia. Uma beleza de cor. E ainda por cima canta com uma voz sublime.

photo: j.finatto
  
Muitas outras coisas e seres vi, registrei e oportunamente virão para cá.

Os ventos de outubro sopram viagem em todas as direções.

Um tempo de celebração das seivas.

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O peixe da boca vermelha:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/08/o-peixe-da-boca-vermelha.html
 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Por quem choras, Maria Filipa?

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto. Amsterdam

 
Choravas à beira do canal na tarde de domingo.

Me olhaste com os olhos mais tristes do mundo. Passageiro efêmero no barco, numa cidade distante e povoada de labirintos, eu nada podia fazer.

Eu estava de passagem entre um cais e outro, um quarto e outro, um deserto e outro.
 
Devia talvez ter me jogado nas águas turvas daquela tarde de domingo em Amsterdam. Nada era mais importante do que ir ao teu encontro.

Devia ter passado o resto do dia contigo, em silêncio, ali naquele banco, sem nada dizer (palavras só atrapalham).

photo: j.finatto. Amsterdam
 
Quem mastigou teu coração, pisou em cima e depois jogou no fundo das águas?

Por quem choras, Maria Filipa?
 
A cara de anjo, o capuz azul da solidão, os olhos mais tristes acompanhando o barco que passava, me olhavas.

Da minha solidão eu te acenei.
 
Foi tudo que fiz dentro do barco inútil. Mas por um instante tuas lágrimas secaram e teu olhar seguiu a embarcação. Depois tua cabeça caiu sobre o colo outra vez, onde tuas mãos pálidas repousavam.

photo: j.finatto. Amsterdam

O barco sumiu sob as pontes. 
 
Entre dois cais, entre dois nadas.