segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O tecido da tua ausência

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

 Na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes, ouvi de Juan Niebla, o músico cego, o seguinte depoimento, enquanto bebíamos uma taça de café preto com pão torrado. Pediu-me que tomasse por escrito suas palavras.*

Faz tempo que partiste e não escreveste uma carta sequer (um amigo sempre procura no correio pra mim).

Nem cartão postal, nem telefonema, nem e-mail. Nada. Silêncio absoluto.
 
Eu me prometi que não sentiria mais. Não iria mais até a janela escutar teus passos no vento. Nem te encontraria nos sonhos outra vez. 
 
O trem fantasma chega no meio da madrugada na estação de Passo dos Ausentes. Eu ouço o barulho ritmado das rodas nos trilhos. Às vezes pego o capote, o chapéu e a bengala e vou até lá. Volto sempre de mãos vazias.

photo: j.finatto. Estação da Ausência
 
A tua face vai sumindo da memória dos meus dedos (queria mesmo que fosse assim, como desligar uma lâmpada).

O desespero que sinto não é tanto pela tua ausência: é pelo espectro que hoje eu sou. Perambulo pela casa conversando com minha sombra. O aroma das madressilvas entra através das janelas em novembro como a dizer que vale a pena esperar.

Eu seguro o bandoneom e começo a tocar o Concierto Andaluz de Joaquín Rodrigo, que é um modo de me iluminar e suportar.
 
Faz tempo de ti. Não gosto do silêncio imemorial dessas noites (a falta da tua voz no breu).

O ruído do movimento do ponteiro do relógio em meu pulso é seco e aflitivo.

Ando tanta escuridão, tanta. Às vezes me pego acendendo todas as luzes da casa.
 
Ofereço-te este ensaio no escuro sobre o tecido da ausência.

Ei-lo.  Eis-me.

Um farelo de tua ausência apenas. O mais é o que não se diz. Desmesurado sentimento. Não cabe na folha de papel, na página volátil de um blog.

Viver é maior que qualquer literatura.

Sinto cheiro de terra molhada. Em algum lugar está chovendo agora.

Talvez caminhes sozinha na chuva.

O resto é relâmpago. Conjuro da solidão.

Um raio de luz no ventre da nuvem.

 
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*Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público em 1943, ocupa o cargo de músico municipal na estação de trem abandonada da cidade, transformada em centro cultural. Toca bandoneom nas terças, quintas, sábados e quando lhe dá na telha. Tem 85 anos, é cego desde os 16 e não aceita a aposentadoria compulsória. Texto ditado por Niebla em 24 de novembro, 2012, na Estação dos Ausentes.

A claridade do coração:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/04/claridade-do-coracao.html
 

sábado, 1 de dezembro de 2012

Palavra viva

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto. Passo dos Ausentes. Vale do Olhar


Nem todo livro se escreve só por vaidade.

Numa certa medida, a vaidade, sem exageros, faz bem. Como quando nos leva a cuidar melhor de nós e dos outros. É benigna se se traduz em maior zelo pelo modo como fazemos as coisas.

A vaidade, por exemplo, do trabalho bem feito é justa. 

Os melhores textos, creio, surgem a partir de motivações internas profundas, que se impõem movidas pela necessidade de expressar e comunicar.

Escrevemos para entender melhor o mundo e a nós, para sermos ouvidos e, se possível, amados. 
 
Como o músico, o escritor dedilha seu instrumento. Um toco de lápis sobre a folha de papel.

Escrever é um concerto solitário num teatro vazio.

Quem escreve espera que haja alguém do outro lado. Nem sempre há.
 
Meu primeiro contato com a palavra foi através do jornal que o avô lia, ao lado da janela por onde o dia entrava. E também através das cartas que ele escrevia, com a caneta de tinta azul, e daquelas que recebia.

Amar os livros e gostar de escrever é uma coisa. Viver de literatura é outra. No início, achei que como jornalista estaria mais perto da literatura do que em outras profissões. Não era verdade.

A grande carga de trabalho do jornalismo, a intensidade e as preocupações da profissão não permitem maior elaboração do texto. A disponibilidade de espírito para criar fica muito prejudicada. O estresse é constante.

Não consegui em outras profissões o que não alcancei no jornalismo: conciliar trabalho e criação. Descobri que escrever literatura não combina com sobrevivência. Contam-se nos dedos os que conseguem ganhar a vida escrevendo. 

Escrever é uma atividade clandestina, exercida nas horas mortas (na verdade, as mais vivas).  Pelo menos pra mim tem sido assim, falta-me talvez engenho e arte para reunir as coisas.

O ato de escrever é o que traduz melhor a procura de transcendência na minha passagem pela condição humana.

Escrevo com gosto e entusiasmo e nunca fiz disso meio de vida. Sou amador na inteira extensão do termo: amo o que faço e o faço de forma não profissional.
 

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Carlos Pena Filho

Jorge Adelar Finatto

 
Os mascarados. Autor: Passarinho. Fonte: site da Prefeitura de Olinda:
www.olinda.pe.gov.br
 
 
Pernambuco tem dado ao Brasil artistas e pensadores da mais alta expressão. O poeta Carlos Pena Filho (1929 - 1960) está entre eles. Trata-se de um senhor artesão do verbo. 
 
Poeta daqueles que devemos ter sempre por perto, com um livro à mão, principalmente nos dias de hoje em que a beleza e a força da palavra estão tão diluídas.
 
Nascido no Recife,  onde morreu muito jovem num desastre de automóvel, Carlos Pena Filho faz parte da linhagem de gente como João Cabral de Melo Neto, Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, entre outros pernambucanos que traduzem com requintada arte o modo de ser, sentir, fazer e sonhar do nosso povo.

Um poeta de fina extração. Como todo bom bardo, diz coisas a que o comum dos mortais, por si só, dificilmente tem acesso.
 
As mãos do poeta tornam sensível o invisível, aproximam o remoto, iluminam o sombrio.
 
 A seguir, para despertar o interesse do leitor, um poema da obra Melhores Poemas de Carlos Pena Filho, Global Editora, 4ª edição, São Paulo, 2000.


A mesma rosa amarela

Você tem quase tudo dela,
o mesmo perfume, a mesma cor,
a mesma rosa amarela,
só não tem o meu amor.

Mas nestes dias de carnaval
para mim, você vai ser ela.
O mesmo perfume, a mesma cor,
a mesma rosa amarela.
Mas não sei o que será
quando chegar a lembrança dela
e de você apenas restar
a mesma rosa amarela,
a mesma rosa amarela.*

E esta perfeita tradução de uma cidade, nos versos do poema Olinda:

Olinda é só para os olhos,
não se apalpa, é só desejo.
Ninguém diz: é lá que eu moro.
Diz somente: é lá que eu vejo.

_____________

*Este poema, com música de Capiba, tornou-se conhecido em todo o país, fazendo muito sucesso nas vozes de Maysa, Nélson Gonçalves, Tito Madi e Vanja Orico, entre outros. Informação colhida na obra citada Melhores Poemas.

Olinda, a epifania do olhar:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/08/olinda-epifania-do-olhar.html
 

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Hay vida antes de la muerte?

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto

 
Em Montevidéu, até os grafites têm espírito. As inscrições públicas nas ruas montevideanas não perdoam a superficialidade. Uma vez lidas, não deixam o caminhante em paz.
 
Pressentindo que seria um absurdo virar simplesmente as costas e ir embora, resolvi fotografar e trazer comigo a inquietante frase.

Hay vida antes de la muerte?

Não bastassem as perplexidades e angústias de cada dia, acrescentei agora mais esta ao meu baú de assombros.

Afinal, haverá mesmo vida antes da morte ou seremos apenas tristes fantoches com a boca de pano rasgada e olhos opacos, às voltas com o anonimato, o desamparo, a solidão?

O que sei é que há dias em que me sinto muito vivo. Parece que a morte ainda não foi inventada. Em outros, contudo, viver não vale um caco colorido de vaso quebrado.

Hay vida antes de la muerte? Si, pero...
 
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Texto publicado em 14 de junho, 2011.

domingo, 25 de novembro de 2012

Fanicos e farfalhas

Jorge Adelar Finatto


photo: Wikipédia. Autor: Jon Sullivan
  


Quem viu alguma vez uma joaninha caminhando na página de um livro ou sobre uma folha verde sabe do que estou falando. É talvez o acontecimento mais importante do universo.

Nenhuma literatura e nenhuma filosofia do mundo valem os passos da joaninha.

Só que pouca gente percebe o engenho e a arte por trás da  construção da frágil joaninha.

Existem muitos outros assuntos importantes para se tratar. Um blog não deve ignorar isso.
 
O fato, contudo, é que me encanto com os farelos do mundo. As coisas pequenas me atraem, as outras me enfadam, quando não revoltam.

Encontro claridade nos fanicos da existência.

Tudo que é breve e pequeno se parece com estar vivo e me interessam sobretudo.

Os verdadeiros e últimos sentidos habitam além das aparências da assim chamada realidade.
 
O mundo silencioso das migalhas me é, por isso, muito caro e diz mais que um tratado ontológico.
 
Quando se perde a palavra, é como se perdêssemos a vida.
 
Na arte, ao menos, podemos sonhar um pouco, levitar acima dos mausoléus e crematórios existenciais. Mas sei também que não podemos viver entre as nuvens.

Deve haver um caminho de passagem entre o porão e a copa das estrelas, entre a imensidão da Via Láctea e os passos humildes da joaninha.

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 Foto de joaninha. Fonte: Wikipédia. Autor: Jon Sullivan (PD-PDphoto.org]
  

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Bibliotecas

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto



Tantos livros me assustam
trago uma ignorância milenar
guardada num lugar
claro do meu ser
uma ignorância - ou a sabedoria -
do sol às 7 da manhã


 
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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, Porto Alegre, 1983. 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Viver um pássaro

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Tucano
 

A ventura de viver na montanha é conviver com as aves. A casa vive cercada desses seres delicados e cantantes. Belas criaturas, habitam os ninhos que constroem nas árvores ou nos buracos dos troncos (como os tucanos). Cantam durante o dia (espantando os males) e, como se não bastasse, podem voar para onde lhes dá na veneta.
 
Deus, quando inventou as aves, estava num dia muito inspirado. A começar pelas cores vivas e contrastantes com que as pintou. O canto nem se fala.

Tem gente que gostaria de ser super-homem, dono da rua, grão-vizir do bairro,  rei do mundo. Eu queria ser pássaro.
 
Tenho grande admiração por essa família que oferece seu canto e sua plumagem sem nada pedir ou esperar em troca. Dão de bom coração o que de graça receberam. 

Das espécies que me visitam na varanda do escritório (onde deixo frutas escolhidas para eles), o tucano é um dos mais coloridos e grandes. Faz sombra e afugenta os pequenos. Não tem um cantar bonito como os outros. É uma voz cava, rascante, amadeirada e sem graça (sem querer ofender o meu amigo).

Costuma pousar no galho diante da janela que dá para o Vale do Olhar. Fica olhando o escritório de perfil, uma figura egípcia.

- O que esse sujeito com óculos de fundo de garrafa está assim me olhando, no meio de pilhas de livros, estantes, quadros e relógios, quando podia estar voando aqui fora? - é a pergunta que leio nos olhos do irmão tucano.

Ora, é essa justamente a indagação que também me faço.

O improvável voo adunco do tucano atravessa o ar colorindo a tarde, percurso entre duas árvores, dois galhos, duas visões de mundo, duas referências no universo.

O rumor de um milagre batendo asas na luz da primavera.

photo: j.finatto