terça-feira, 12 de março de 2013

O livro na praça

Helena Jobim

 
Helena Jobim


Vim para Porto Alegre a convite, participar da Feira do Livro. E aqui estou, nessa terra generosa, terra de meu pai Jorge Jobim. Tornei-me filha de três cidades, e assim posso dizer que sou carioca, belo-horizontina (recebi o título com muita honra) e porto-alegrense. A Feira é uma beleza. Ocupa toda a Praça da Alfândega, onde grandes barracas brancas oferecem livros de todo o tipo. Algumas têm o teto transparente, e é muito bonito ver os jacarandás floridos enfeitarem os tetos com suas pétalas roxas.

Assim que cheguei à Feira, deparei-me com uma grande estátua do General Osório, montado a cavalo. No pedestal de pedra, uma inscrição gravada. Chamou-me muito a atenção. Tomei nota: "O dia mais feliz da minha vida seria aquele em que me dessem a notícia de que os povos civilizados comemorariam a sua confraternização queimando seus arsenais". Vem a calhar para a hora difícil que vivemos.

A Feira é uma grande festa invadindo a praça, com suas árvores antigas, gigantescas, de troncos retorcidos pelo tempo, verdadeiras esculturas. Essa paisagem, de largas sombras e bancos para descanso, sugere a leitura. O ambiente combina com reflexão e cultura. Sabiás e pardais cantam ocultos nas copas de folhagens espessas, como um pano de fundo construído de sons que nos remetem a dias felizes.

Esta é a 47ª Feira do Livro de Porto Alegre. Chegou o sol e o calor e havia tanta gente pelos largos corredores entre as barracas, que tínhamos de andar devagar, parando a cada instante para examinar os livros. Vontade de comprar tudo. Os homenageados desse evento estavam bem representados em bronze, lado a lado. Carlos Drummond de Andrade, de pé, segurando um livro como se o lesse. E bem junto dele, sentado, Mario Quintana olhava-o, absorto. Tirei retratos junto às estátuas desses dois grandes poetas, pensando em colocar depois as fotos enfeitando meu escritório.

E como foi proveitoso estar com artistas mexicanos! Escritores, roteiristas, editores. Chegavam em comitivas alegres e coloridas, representando o seu país, também homenageado este ano na Feira. Sons e imagens que nos aproximam definitivamente.

Depois de muito andar, palestrar (junto com meu amigo e poeta Jorge Finatto) e autografar "Recados da Lua", atravessei a rua e sentei-me no pequeno Café Antigo, dos anos 30, perfeitamente conservado. E nesse ambiente calmo, de frente para a praça, me dei conta de como é importante para mim o ofício de escrever.

Lá estava eu, testemunha deste importante evento, de lápis e papel na mão, registrando minhas impressões. Dentro de mim vibrava a grande festa do artista, irmanada com as pessoas mais simples que observava folheando livros de todos os tipos, de todas as cores. Poucas vezes na vida um escritor pode saborear tão de perto a avidez do leitor pelo livro, a ponto de me fazer esperançosa em prosseguir na luta com o papel em branco, na busca da sensibilidade, na entrega total aos meus leitores. E me lembro de novo de Cecília Meireles: "Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta".

Quero hoje agradecer especialmente aos e-mails de Clara e Fred. Suas palavras ajudaram-me também a acreditar na palavra escrita, como forma de melhorar o mundo.

Para se pensar:

A vida era por um momento.
Não era dada. Era emprestada.
Tudo é testamento.

Antonio Carlos Jobim


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Helena Jobim é escritora, autora, entre outros, de Antonio Carlos Jobim, Um Homem Iluminado (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1996), Trilogia do Assombro (Editora Nova Fronteira, 1998) e Pressinto os Anjos que Me Perseguem (Editora Record, Rio de Janeiro, 2000).

Esta crônica foi escrita por Helena durante sua passagem por Porto Alegre, na Feira do Livro de 2001. Agradeço à querida escritora e amiga a autorização para publicação do texto.

Fotos: 1) Helena Jobim. Fonte: livro Antonio Carlos Jobim, Um Homem Iluminado. 2) Helena e o irmão Tom Jobim em 1945. Fonte: site oficial do Instituto Antonio Carlos Jobim: http://www.jobim.org/
Texto publicado no blog em 11 de abril, 2011.
 

segunda-feira, 11 de março de 2013

Crônica para um vale antes que acabe

Jorge Adelar Finatto


Vale do Quilombo e montanhas. photo: j.finatto
 
Na viagem de volta a Passo dos Ausentes (o eterno retorno), paro em Gramado para o cappuccino. Enquanto estico os ossos, olho pela janela do café a paisagem da fotografia. Que nunca nos falte esta visão. 
 
Entre Gramado e Canela, na região serrana do Rio Grande do Sul, está uma das mais belas paisagens do Brasil. Um cartão-postal reconhecido internacionalmente. O Vale do Quilombo estende-se entre as duas cidades, em meio a córregos e verdes montanhas. A força desse lugar eleva o espírito e dá paz ao coração.
 
Conheço a região desde tempos imemoriais. Nasci na Serra, nela passei a infância e parte da adolescência. Passeios e acampamentos, no início dos anos 1970, abriram meus olhos para a beleza desse cenário.

Mas hoje vejo com preocupação o futuro do cartão-postal. Faz cerca de 10 anos intensificou-se o processo de urbanização em Canela e Gramado. São cada vez mais numerosas as clareiras abertas no fundo do vale e nas encostas e cumes dos montes e montanhas.  Aumenta o desmatamento.
 
A explosão imobiliária trouxe junto uma série de problemas, a começar pela deficiente rede de esgotos, fato este que se agrava na alta temporada de turismo. Além disso, nuvens de automóveis invadem as antes pacatas ruas, criando um trânsito veloz e perigoso, no qual acidentes graves passam a ser comuns.
 
Onde antes havia flores nas janelas, agora há cada vez mais edifícios.

Na estrada entre as duas cidades, multiplicam-se as lojas de venda de automóveis novos e usados, em ambos os lados da via. Proliferam diversos tipos de comércio. Este caminho que já foi rodeado de mata hoje está repleto de edificações. A tal ponto que já não se enxerga o Vale do Quilombo. Para vê-lo, é necessário esgueirar-se entre as paredes.

Não existe sequer um belvedere público na beira da estrada para admirar a vista. Na saída de Gramado para Canela, há um tímido acostamento e um corredor, protegido com mureta de concreto, no qual os visitantes se espremem para observar a natureza, sem nenhum conforto e com o barulho dos automóveis, ônibus e caminhões passando ao lado.

Os animais perdem espaço. Faz tempo que não vejo por aqui uma lebre, um graxaim, um bugio, um veadinho do campo e outros bichos como era comum.

A presença e a variedade dos pássaros já não são as mesmas. Para onde vão? Ninguém sabe. Mas decerto para um ambiente que já não encontram aqui.

O patrimônio ambiental e paisagístico é a maior riqueza das cidades serranas e isto está se perdendo. Não haverá futuro para o turismo, principal atividade econômica da região, se o crescimento desordenado, o concreto e os veículos continuarem a substituir a natureza.

Para quem, como eu, nasceu na Serra, é um triste espetáculo. Sei que a economia precisa gerar empregos e riqueza, as coisas não podem ser como no século passado. Mas sei também que o desenvolvimento não pode se dar à custa da destruição sem trégua do ambiente. 

Do jeito que vai, não está longe o tempo em que a visão das casas de madeira, flores, pinheiros, vales, penhascos, arroios e montanhas estará restrita a antigos álbuns de fotografia.
 

Série Retratos 13








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photo: Jorge A. Finatto
Pedidos de reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail

sexta-feira, 8 de março de 2013

Adeus a Chorão


Lorenzo Finatto
 

Chorão, vocalista do grupo Charlie Brown Jr., em foto de 2005 - Roberto Setton

A notícia triste diz: 

O vocalista da banda Charlie Brown Jr., Alexandre Magno Abrão, o Chorão, morreu na madrugada desta quarta-feira em seu apartamento no bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Chorão tinha 42 anos e foi encontrado desacordado por seu motorista, segundo informações da assessoria da banda. A causa da morte ainda é desconhecida. A polícia foi chamada ao apartamento para fazer o trabalho de perícia e o corpo de Chorão foi levado ao IML na manhã desta quarta-feira para ser determinada a causa da morte. (publicada em http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/chorao-do-charlie-brown-jr-morre-em-sao-paulo)
 
Eu não era um fã da banda, tinha, mesmo, certo preconceito ao som que faziam – não achava bom o bastante. Fui “treinado” para pensar que nada menos do que Tom Jobim fosse digno de grande admiração. E, entre as bandas de rock brasileiras, Charlie Brown Jr. não estava entre as minhas preferidas.
Há uns 2 anos, porém, distraído, mexendo no rádio do carro, num desses engarrafamentos intermináveis no trajeto casa-trabalho, de repente ouço os seguintes versos:

Eu quero estar amanhã ao seu lado quando você acordar
Eu quero estar amanhã sossegado e continuar a te amar
Eu quero um sonho realizado, uma criança com seu olhar
Eu quero estar sempre ao seu lado, você me traz paz

Pronto. Distraído do meu preconceito, deixando rolar, como se diz, preocupado menos com parâmetros rigidamente estabelecidos e mais com o que o coração reclamava, me deixei levar.
Os versos da canção, composição do próprio Chorão (Uma criança com seu olhar, do álbum Ritmo, Ritual e Responsa, de 2008, EMI), me arrebataram. Dali em diante, passei a acompanhar de perto o grupo.
Daí minha tristeza profunda pela morte do artista.
Pelo que se pode concluir nesses primeiros momentos, o vocalista foi vítima de uma overdose de drogas. Outro jovem talentoso (não aparentava nem de longe os 42 anos, até pelo seu visual skatista) que vai embora cedo demais.
E isso numa sociedade como a nossa, em que a droga está enraizada quase que de maneira invencível. Uma pena, uma tristeza.

Eu quero um sonho realizado, uma criança com seu olhar / Eu quero estar sempre ao seu lado, você me traz paz.
 
Versos que Tom Jobim certamente abençoaria.

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Lorenzo Finatto é advogado em Porto Alegre.
Uma criança com seu olhar:

O habitante da casa de pedra

Jorge Adelar Finatto 


photo: j.finatto

 
O homem construiu em torno de si a difícil morada. Pedra por pedra, dia após dia. Era uma casa onde a tristeza e o sofrimento não podiam entrar. Os vizinhos da rua estranharam o tamanho daquela ausência.

Como podia alguém se retirar do mundo daquele jeito? A casa foi erguida em paredes de duríssimo basalto. Não tinha porta nem janela.

Às vezes o homem sentia saudades do mar e dos navios que passavam, à noite, com suas luzes no horizonte. Fazia muito frio na casa de pedra. O frio tomou conta do corpo do homem. Ele vivia os dias enrolado num grosso cobertor que o cobria do pescoço aos pés.

Não se ouviam passos nem vozes na casa de pedra. Nem gritos de alegria, nem choros.

Nos longes onde foi morar, o homem decidiu que não ia mais levantar da cama. Passou a dormir na maior parte dos dias. Raramente saía do escuro quarto. De tanto não sofrer, tinha se livrado da convivência com as pessoas.

Ninguém nunca conseguiu entrar na casa.

Uma certa tarde o homem adormeceu e sonhou com o mar. Viu os barcos coloridos na praia. Não havia ninguém na areia. Só as palmeiras olhando o azul. Ele não conseguia mais recordar nenhum rosto humano. Nem mesmo o seu, uma vez que tinha retirado todos os espelhos da casa.

A paisagem foi se apagando aos poucos, entre reflexos que pareciam o sol entrando nas águas. Naquela tarde o homem adormeceu pela última vez.

A espessa solidão se cumpriu.

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j.finatto@terra.com.br
Texto publicado em 17 de maio, 2010.
 

quinta-feira, 7 de março de 2013

Série Retratos 12





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photo: Jorge A. Finatto
Pedidos de reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail
 

quarta-feira, 6 de março de 2013

O retrato de Iberê

Carlos Alberto de Souza

Retrato de Iberê Camargo, por Graça Craidy;
acrílica sobre tela, 2013

Nos estertores, ele encontrou forças e deu uma entrevista bombástica, criticando o mundo das artes. Não era homem de tocar nas coisas com a ponta dos dedos nem na hora da morte.
 
Na condição de jornalista, mantive contato com Iberê Camargo.

Evito dizer "conheci Iberê Camargo", porque poderia estar dando a ideia de uma relação íntima de amizade que não houve.

Volta e meia a redação do jornal de São Paulo pedia ao correspondente de Porto Alegre que ouvisse o artista sobre isto ou aquilo. As pautas não eram exclusivamente relacionadas com as artes plásticas.
 
Lembro que uma vez o pedido foi para ouvi-lo sobre controle de natalidade. Nunca esqueci a resposta: “É preciso costurar a boceta dessas mulheres”, disse ele, em alto e bom som, ao ruborizado repórter.
 
Acho que essa declaração revela um pouco da personalidade de Iberê. Ele era franco, direto, intenso, falando ou pintando. Não era homem de fazer média.
 
No livro de contos que publicou, No Andar do Tempo, ele próprio diz não ser homem de tocar nas coisas com a ponta dos dedos. Lembro ter visto essa frase estampada como epíteto em uma das paredes do Margs no dia do seu velório, em agosto 1994.
 
O historiador Décio Freitas, amigo do peito de Iberê, contou certa vez que o empresário Jorge Gerdau Johannpeter desejava ter um retrato seu de autoria do artista, depois de se entusiasmar com uma obra do gênero que encomendara tendo a sua mulher como modelo.
 
Iberê teria recusado a oferta do “rei do aço” sob a alegação de que seu rosto não lhe dizia nada, não lhe causava inspiração e que olhar para ele era o mesmo que olhar para um “ovo”.
 
Há mais de 20 outonos estive, a trabalho, na casa em que Iberê morou na Cidade Baixa. Era um sábado, a conversa foi no pátio para aproveitar a mornidão do sol da tarde. Havia um fotógrafo junto. Se a memória não falha era Achutti, que muito fotografou Iberê e sua obra, a ponto de editar o livro Iberê Camargo por Achutti.
 
No fim do papo, em meio às despedidas, Iberê me surpreendeu: “Aparece qualquer hora que vou fazer um retrato teu”. Quem não ficaria seduzido por esse convite?
 
Mas, constrangido, nunca apareci. E oportunidade não faltou. Como trabalhava no Centro, às vezes encontrava o velho Iberê caminhando pela Rua da Praia, anônimo no meio da multidão.
 
Em uma dessas vezes, metido em um casacão que lhe dava ares parisienses, queixou-se que um dos efeitos colaterais da medicação à qual estava submetido para combater o câncer era a falta de saliva, e mostrava a boca tão seca quanto a sua Restinga natal. Esses encontros eram fortuitos, mas havia afetividade neles.
 
Estive na casa de Iberê no bairro Nonoai, onde ele também tinha o ateliê, nos seus derradeiros dias. Lembro do abatimento de sua mulher, Maria, e da filha.

Nos estertores, ele encontrou forças e deu uma entrevista bombástica, criticando o mundo das artes. Não era homem de tocar nas coisas com a ponta dos dedos nem na hora da morte.
 
Em poucas pinceladas, pela superficialidade da relação que mantive com ele, pinto esse quadro de Iberê, mantendo na memória o que ele pintou de mim naquele sábado outonal, apesar de nunca tê-lo executado por indesculpável omissão do modelo.
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Carlos Alberto de Souza é jornalista em Porto Alegre.
smcsouza@uol.com.br
Graça Craidy é publicitária, professora, escritora, artista plástica. Mantém o blog: