sexta-feira, 12 de abril de 2013

Cinema de rua

O Cavaleiro da Bandana Escarlate



Este é um blog primitivo. Se o leitor observar, notará vestígios de textos escritos a caneta em guardanapo de papel. Me disseram que o autor desta página pode ser visto em cafés, lendo e rabiscando coisas. Essas anotações ele depois datilografa no computador. O editor do blog é do tempo da máquina de escrever. Para ele, o notebook nada mais é do que uma vetusta olivetti com luzes dentro. Às vezes, desconfio que, em menino, banhou-se nas águas do Dilúvio.

Este é, portanto, um blog arcaico, com raros e valentes leitores. Aqui não se ouvem músicas nem sons temáticos, não se encontram imagens cambiantes nem filmes. Tudo se passa como no tempo do cinema mudo. O fazedor da página deve amar Charles Chaplin (1889-1977).

Eu não devia ficar me dando ares. Sou convidado a escrever sobre cinema. Mas o fato é que quase não tenho saído de casa. Ultimamente, passo os dias na biblioteca do modesto solar, nas cercanias da praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre. Abro as janelas dos fundos pra ver os pássaros no breve jardim. Eles vêm alimentar-se. Sirvo-lhes frutas. Em troca me oferecem o canto, dentro da lógica capitalista de que não existe almoço de graça.

Saio pouco de casa por temperamento e porque tenho medo de assalto. Não tenho mais fôlego pra correr dos bandidos. Fumei durante muito tempo, hoje me falta o ar. Contrariando o médico, ainda fumo charuto escondido, principalmente nos entrementes de uma garrafa de vinho.

Meu físico assaz patético é um convite aos ladrões na via pública.

Uma pequena história: os primeiros filmes que vi foram aqueles do tempo de menino em Passo dos Ausentes. Não havia sala de projeção naquele fim de mundo. Um dia, no final dos anos 1940, o médico da cidade, Dr. Fredolino Lancaster, numa viagem de estudos à Inglaterra, adquiriu um projetor. Na volta, começou a passar filmes na fachada de sua casa, sobre um lençol branco. As famílias levavam cadeiras para assistir às sessões de filmes mudos, que aconteciam no primeiro sábado do mês. Ali conhecemos o grande Carlitos.

Eram as noites mais esperadas do ano. Alberta de Montecalvino se encarregava de distribuir a pipoca. Nefelindo Acquaviva organizava a platéia. Juan Niebla, o músico cego do bandoneón, executava inefáveis melodias, conforme a história se passava na tela e lhe era segredada na concha do ouvido por Heitor dos Crepúsculos.

O miserável andarilho vaga pelo universo com sua surrada roupa, chapéu-coco e bengala. Carlitos mudou nosso modo de sentir e ver a vida. O vagabundo que vive na pobreza, com modos de sobrevivente e dignidade de cavalheiro, nos devolveu alguma coisa que havíamos perdido pelo caminho. Assistir a um filme de Carlitos é receita infalível contra depressão e vontade de morrer.
 
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Foto: Chaplin como o vagabundo Carlitos (11 de abril de 1915). Autoria não informada. Fonte: Wikipédia. Texto publicado em 2 de junho, 2011.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Encher o chapéu com folhas de outono

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 
 
Escolhi esta tarde cinzenta pra caminhar por caminhos de silêncio e folhas arrastadas no chão. O coração quis fugir da sala fechada e da tristeza dos últimos dias.

Fui respirar um pouco do ar transparente de abril. Desapareci entre as árvores na distância como quem desaparece ao penetrar numa luminosa aquarela.
 
O silêncio só era cortado aqui e ali pela voz de algum pássaro ou pelo rumor das folhas dos plátanos na passagem do vento.
 
Uma paisagem fora do tempo. Um território só sentimento. Um instante longe da dor, perambulando nos Campos de Cima do Esquecimento.


photo: j.finatto
 
 
A bordo do chapéu de palha e dos óculos de fundo de garrafa lá me fui, misturado nas cores outonais como quem vai em busca da urgente seiva pra continuar vivo. 
 
Tem dias em que é preciso estancar a ampulheta e sair por aí numa tarde cinzenta.

Encher o chapéu com as folhas do outono, e andar, andar e andar pela aquarela até flutuar sobre os telhados e sobre a copa das nuvens.
  

terça-feira, 9 de abril de 2013

In memoriam

Jorge Adelar Finatto
 

Romeu Marques Ribeiro Filho
Fonte: site Tribunal de Justiça do RS
 

Porque sois uma bruma que aparece por um pouco de tempo e depois desaparece.
      Tiago 4: 14

A morte tece sua teia invisível, implacável. Num instante, retira de perto da gente pessoas que nos são queridas.
 
No meio da tarde de quarta-feira (3 de abril) recebi o telefonema dando conta da morte do colega. Ele havia jogado tênis pela manhã. Depois foi para casa pela hora do almoço. Passou mal e, em seguida, veio a morrer do coração. Não houve tempo pra nada.

Um mero e fatal instante: já não estava mais entre nós. Tinha 57 anos, havia se aposentado há alguns meses como desembargador.

Conhecia-o há mais de 20 anos. Tivemos uma convivência próxima quando, em 1991, trabalhamos na comarca de Rio Grande, cidade ao Sul, porto marítimo. Havia então o hábito do convívio entre colegas, não apenas no foro como em almoços e jantares de fim de semana.
 
Tinha admiração pelo ser humano e pelo juiz que ele era. Em Porto Alegre, a convivência diminuiu. Se o interior aproxima, a grande cidade tem o condão de nos distrair do trato diário. O invencível excesso de trabalho e as mil preocupações facilitam o isolamento e, se não nos damos conta, nos distraímos até de viver.

Algum tempo atrás, nos encontramos pela última vez. Era uma época especialmente difícil pra mim em razão de uma doença grave. Como não havia muito o que dizer, ele veio ao meu encontro, me abraçou e me deu um beijo. O gesto me comoveu, e me deu força.
 
Há momentos na vida em que tudo que mais precisamos é de um abraço e um beijo. Infelizmente, não pude fazer isso por ele.

Vou levar para sempre aquele beijo na minha face, enquanto durar a bruma que também sou.
 
A Romeu Marques Ribeiro Filho,  o beijo e o abraço, saudade e afeto, in memoriam.
 

domingo, 7 de abril de 2013

Nagai Kafu e as histórias da outra margem

Jorge Adelar Finatto
 
 
Nagai Kafu entre mulheres.
Kafu Nagai with strippers @ Asakusa Rokkuza, 1952
Fonte: the setting sun*
 
 
 
Oyuki era uma musa que ressuscitara em meu coração tão cansado imagens de um tempo  distante e saudoso. O manuscrito há tanto tempo abandonado sobre a escrivaninha, não fosse por ela ter aberto seu coração para mim - ou, ao menos, não fosse por eu ter achado que esse coração se me abrira -, já estaria há muito tempo no lixo.¹
                      Nagai Kafu
 
Mais por falta de livros traduzidos do que por outro motivo, no Brasil temos pouco conhecimento da literatura oriental.
 
Mas isso começa a mudar. Na medida em que editoras brasileiras investem na tradução de autores daquele lado do mundo, vamos descobrindo pérolas até aqui escondidas.
 
Ultimamente tenho folheado livros de pintura japonesa, de autores como Hokusai e Hiroshige, e lido textos de escritores japoneses. Não é pouca nem recente a admiração que sinto pela cultura do Japão.
 
Entre os autores daquele país mais conhecidos por aqui, temos Bashô (poesia) e Yasunari Kawabata (prosa, Prêmio Nobel de 1968 ). Mas existem outros de grande qualidade.
 
Acabo de ler Histórias da outra margem, do escritor Nagai Kafu (1879 - 1959), esse da foto com as moças. Trata-se de um livro de 123 páginas, que transita entre a ficção, o diário, a poesia, a crônica e as memórias do autor.

Eu não tinha mais aonde ir. As pessoas que eu queria rever estavam todas mortas.²

O enredo se passa na Tóquio da década de 1930. Tadasu Oe é um escritor de quase 60 anos que vive uma história de amor com uma "mulher da vida", na zona de prostituição do bairro Tamanoi, a leste do rio Sumida.

Oyuki é jovem, pobre, bela, alegre, foi gueixa antes de prostituir-se. Ao conhecer Tadasu Oe, pensa abandonar a zona e casar-se com ele. Oe, por seu turno, encontra na jovem inteligente e cheia de vida um cais cálido onde ancora sua solidão nos fins de tarde.

Ao mesmo tempo em que narra o seu romance, Oe conta detalhes do livro que está escrevendo, no qual um professor aposentado abandona a família. O desenvolvimento é surpreendente.

A história é, em vários aspectos, a história do próprio Nagai Kafu. E de muitos homens e mulheres por este mundo afora.

Histórias da outra margem é um livro com uma curiosa e envolvente construção. Nagai Kafu revela-se um excelente escritor, com uma narrativa que combina técnica esmerada e sensibilidade poética, sem cair em literatices.

Como se isso não bastasse, a obra tem ainda belas ilustrações de Shohachi Kimura (1893 - 1958). Um livro, enfim, pra se ter nas mãos.
 
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¹,²Histórias da outra margem, pp. 109, 117. Nagai Kafu, Editora Estação Liberdade, São Paulo, 2013. Tradução do japonês e notas por Andrei Cunha.
 

quinta-feira, 4 de abril de 2013

As Variações Goldberg ( ou o fantasma da casa demolida)

Jorge Adelar Finatto


Variação Goldberg 13. Fonte: Wikipédia
 

Outro dia encontrei um homem sentado no meio-fio, diante de um casarão que estava sendo demolido. Era viúvo, devia ter por volta de 80 anos e chorava discretamente. Parei e perguntei o que havia.

Ele estava bastante desolado. Disse que o único filho e a nora venderam o imóvel onde vivera por mais de 70 anos. No lugar será erguido um edifício de 30 andares. Trocaram a casa por dois apartamentos e pequena soma em dinheiro.

Era um imóvel dos anos 30 do século passado, com amplo quintal, que ele herdou dos pais. Afirmou que não queria passar o resto de seus dias no apartamento do filho, onde morava agora. Não sabia o que fazer, pra onde ir.

Um homem sensível e educado. Acrescentou que não quis opor-se ao negócio, porque o filho passava por um momento difícil financeiramente. Mas lamentou não ter morrido antes da demolição.

O que dizer? Falei apenas que era importante ele manifestar sua aflição para a família. Conversar sobre o problema é a maneira de começar a enfrentá-lo, seja ele qual for.

A vida e o tempo atropelam tudo pela frente. Aquele homem era o fantasma vivo daquela casa.
 
Quando um casarão como esse vem abaixo muitas coisas desmoronam com ele.

As lembranças e sentimentos dos antigos moradores ficam sem o lastro físico que as sustenta.

O velhos fantasmas são jogados no meio da rua. E levarão muito tempo até encontrar outro lugar, se é que não ficarão vagando para sempre pelas ruas vazias da cidade.

Os ninhos dos passarinhos, nas reentrâncias do telhado, vão para o espaço.

As sombras, por sua vez, ficam sem as paredes e o chão para projetar-se como antes. Somem no ar.

Um mundo passa a habitar o invisível.

A memória é talvez a última morada da qual ninguém pode nos expulsar.

Quando cheguei na minha casa, fiquei feliz ao certificar-me de que ainda estava de pé (graças a Deus). Abri as venezianas do escritório, nos fundos, para o ar fresco, as plantas e árvores do pátio.

Botei as Variações Goldberg, para cravo, de Johann Sebastian Bach (1685 - 1750) pra tocar. Tentei salvar o que restava daquele dia.

Posso dizer que a música do João Sebastião cumpriu com rigor, naquele fim de tarde, a finalidade da arte que é consolar os homens na sua difícil passagem (mil variações) pelo mundo. E foi assim que o sublime compositor alemão, que nada tinha a ver com essa história, passou a fazer parte dela.
 

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Ensaio sobre as remotas cores do outono

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

A trevosa sintaxe da vida.

A escuridão das almas. Fugidias imagens me perseguem. Nos urdimentos do bandoneón, busco outras claridades. Viver longe do abismo, no vero amanhecer, eu busco. Eu, Juan Niebla, venho do neblinoso. (Trouxe o calepino?)

Tenho andado pela vida à procura de luz. Essa que vem de dentro. A escuridão está por toda parte, principalmente nos corações.

As trevas-mestras sustentam o mundo.

Bem-vindo o que vem em paz e desarmado. Os regulamentos da amizade eu cumpro. A minha casa está sempre aberta. Nos enquantos, porque amanhã é escuro. (Anote, por favor.)

A treva foi inaugurada com a luz principial.

Isto é demanda antiga. A velha contradição, o bem contra o mal. A luta imemorial. Mas também o complemento ideal, um não existe sem o outro. Em termos de arriscada filosofia, caminho em beira de precipício.

A maldade não tem sala na minha casa. Sou músico de bandoneón e antiga memória, na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes.

Espero com o ouvido a chegada do invisível trem. Cego desde os 15 anos, sim, senhor. O resto é breu e se dissipa quando toco meu instrumento no velho banco.

A vida é dura? Pra completar, é breve. Somos um ato-falho da criação.

Sou homem de fé, Deus me perdoe. Se vive. Fazemos o que é possível, às vezes muito menos, às vezes pouco mais. Somos ferida em carne viva, vivo sentimento. Vive-se. (Está anotando?)

O certo é que, na vida como na arte, a gente fracassa sempre. Falta aquele grito, aquela palavra certa, aquela revolta, o remate contra a escuridão, aquilo que não foi dito nem lembrado.

O ora-veja na arte só a divina obra tem. Deus é artista caprichoso, no atacado e no miúdo, como outro não há. (Conseguiu escrever?)

Pediram-me um ensaio falado sobre as cores remotas do outono. Mas eu só sei, só vejo isso que sinto.

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Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo desde 1940, na estação de trem abandonada da cidade. Tem 88 anos, é cego desde os 15.
Texto revisto, publicado anteriormente em 23 de março, 2011.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Um poeta voando por aí

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

Nascer em Passo dos Ausentes é uma condenação ao degredo eterno. Essa cidade não está sequer no mapa do Rio Grande do Sul.

Somos seres perdidos no vento.
 
A situação em que eu, Filipe Penaverde, me encontro: abismado e solitário, poeta lírico, 21 anos, lúcido e à margem. Trago perplexidades que não querem silenciar.

Quanto mais eu penso mais eu quero sumir desse lugar. Mas ir pra onde? Viver do quê?

A solidão não é um problema geográfico, eu sei. É no interior da alma que ela habita. Estamos sozinhos em toda a parte. Uma espécie de cósmico exílio.
 
Por aqui não existem outros da minha idade, exceto uns quatro ou cinco beirando os trintanos. Os que não estão muito velhos estão de partida para o além.

Um cansaço existencial viver aqui no fim do mundo.

Muitos abandonaram a cidade em busca de um futuro. Mas que futuro? Eu escolhi ficar nesse ambiente demasiado esconso, demasiado ventoso e perdido, porque tenho medo do lado de lá das montanhas. 

Espero que Deus não me abandone nessa lonjura.

Fica perto de quê, alguém pergunta.  De lugar nenhum.

Passo dos Ausentes é um pueblito no frio. Um cochilo do Senhor na criação do mundo.
 
Se ao menos eu tivesse a coragem que me falta. Fico quando quero partir. Morro quando devia viver.

Estou no meu caminho de angústia voando entre abismos. Don Sigofredo de Alcantis, filósofo-mor, diz que é assim mesmo, mas que depois tudo vai melhorar. Quem me dera.

Peneiro o invisível até encontrar a saída luminosa.
 
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Filipe Guilherme Telles Correa dos Santos Penaverde é jovem poeta e secretário da Sociedade Literária, Filosófica, Artística, Histórica, Geográfica, Astronômica, Antropológica, Musical e Antropofágica de Passo dos Ausentes.