terça-feira, 14 de maio de 2013

Os fascistas

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto



Os fascistas
escolhem sempre
as prisões
à benignidade do sol

mas os poetas
continuarão
violando
as sombras


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Do livro O Habitante da Bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
 

segunda-feira, 13 de maio de 2013

As intermitências da primavera

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


O amor - ou esse sentimento que aproxima pessoas solitárias e desamparadas como ele - inaugurou datas no calendário, pintou de lilás e rosa o coração.

O amor tocou músicas no som do carro e do apartamento. O amor pintou de azul e amarelo as flores do vaso da sala. O amor tornou-o uma pessoa melhor para si e para os outros.
 
Um dia, talvez, ela, que gostava tanto de gatos, regressará da nuvem onde foi habitar. Virá buscá-lo, como sempre fazia, para irem juntos ao cinema, ao café, à livraria, ao Parque Harmonia ver o pôr-do-sol na beira do Guaíba.
 
Ela foi o único ser humano que conseguiu resgatá-lo da remota ilha. Morreu há três anos de uma doença que não vale a pena lembrar, foi embora depois de sorrir e dizer que ele não devia se preocupar, tudo ia dar certo. Perdeu-a pouco antes de irem morar juntos.
 
Sente-se um morto-vivo sem aquela que o salvou da solidão de náufrago.  Ela foi a sua primavera.

Uma colega de trabalho disse-lhe que ele é muito certinho. A vida, não.
 
O fato é que, um dia, ele sonhou ser feliz para sempre. Mas a realidade disse que para sempre é tempo demais.
 
A família que, no passado, foi unida, agora vive dividida, os irmãos quase não se convivem.
 
A mãe, que em vida tecera com dedos de fada os frágeis laços do afeto familiar, também morreu antes do tempo. Ninguém a substituiu na rara arte de evitar e, sobretudo, de colar os cacos. Os cristais se partiram.
 
Ele voltou a viver no ermo distante da ilha. Tornou-se um estrangeiro em sua própria cidade. Os antigos amigos transformaram-se em conhecidos, foram casando, criando filhos, separando, mudando de rua, de bairro, cidade, país.

O seu mundo reduziu-se ao apartamento, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados e às impiedosas tardes e noites de domingo.
 
Teve poucos relacionamentos depois, coisas entediantes, sem nenhuma importância. Não consegue fazer o tipo leve, desses à vontade no mundo. Gosta de pensar, procurar sentidos. E não os encontra.
 
Sexo de ocasião nunca foi pra ele. Tem receio das pequenas e insignificantes memórias que o invadem, quando a dona delas vai embora. O que para muitos é pura diversão, para ele é vertigem. Se ao menos não sentisse as coisas.

O lugar onde vive - a longínqua ilha - só não é uma tapera porque a velha empregada da família aparece duas vezes por semana, dá um ar doméstico ao tugúrio. Os únicos seres vivos ali, além dele, são as hortênsias que cultiva na sala, em dois vasos, um em cada lado da janela.
 
As hortênsias acendem as manhãs de verão, iluminam a casa.
 
A janela é o ponto de referência dele no planeta.
 
Dali pode ver a praça e as pessoas nela, as árvores e a rua, o céu, os outros edifícios.
 
De qualquer parte do universo um observador pode tê-lo como objeto de estudos. Todos os dias, no fim da tarde, está na janela tomando chimarrão. Só.
 
No fundo, nunca a perdoou por tê-lo abandonado no mundo.
 
O medo de amar afeiçoou-se a ele como as heras num túmulo de cemitério do interior.
 
A solidão o faz acariciar o gato invisível, na frente da televisão, até adormecer.
 
Se fez acompanhamento psiquiátrico para esse viver tão desolado? Sim. Mas continua o mesmo homem enclausurado, estranho a si mesmo, sem saber o que fazer com as mãos quando está sozinho.

O outono chegou com um cesto florido de lembranças dela. Vive de memória.
 
Os dias chuvosos, frios, deixam as pessoas entocadas em casa.
 
A praça está vazia agora. Recorda-se dos dias em que caminhavam juntos ali.

A ausência da primavera faz o coração girar louco na ventania.
 
Se ao menos tivesse um gato de verdade.

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Texto revisto, publicado originalmente em 17 de fevereiro, 2010.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Travessia da névoa

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Estou só e escrevo para minha alegria.*
                                               Matsuo Bashô (Japão, 1644 - 1694).
 
Vinha pensando nesse verso de Bashô enquanto ia pra casa, no fim da tarde de outono. Atravessei a ponte no meio da névoa fria, um leve vento nas folhas.

A vida é encontro, mas é também uma constante despedida. Dos outros e de nós mesmos.

O tempo foge a galope, vamos sumindo na bruma.

Alguém notará a minha ausência quando não estiver mais na paisagem de outono? Quando não estiver mais em paisagem alguma? Quem estenderá a mão quando chegar do outro lado da ponte?

Vinha eu pela ponte, pensando esse difícil pensar.

Trazia o calepino e o lápis no alforje. No coração, essas ruminações em torno do inefável.

Mas não é propriamente de solidão que a travessia da névoa fala. Não é bem disso que ela trata.

Há um caminho a percorrer no ermo, ela diz.

O que a ponte espera de nós é o gesto da passagem. O passo corajoso e humilde.

Um movimento além do medo. 

Os poetas constroem pontes através da névoa.

A palavra abre a picada na mata densa e escura. E por ali vamos, colonos do território despovoado, catando o farelo de beleza e mistério.
 
O vento leve toca o sino de bambu.
 
O visível e palpável é apenas um vestígio. Imenso é o que não se vê nem se toca.

Tem dias que habitamos a tapera. Tem dias que brilhamos ao sol.

Por isso gosto dos caminhos do outono, por isso me dei a travessia.

Gosto dessas horas de distância e dispersão.

Escuto a conversa do pássaro no galho invisível.

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*O Gosto Solitário do Orvalho. Matsuo Bashô. Antologia poética. Versões de Jorge de Sousa Braga. Editora Assírio e Alvim, Lisboa, 1986.
O peixe da boca vermelha:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/08/o-peixe-da-boca-vermelha.html
 

terça-feira, 7 de maio de 2013

A casa do anjo

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto. Colonia del Sacramento. Uruguai
 

Antes de começar a chover esta noite, arredaram uns móveis bem pesados lá no céu. Um barulho espesso e arrastado de trovões me fez pensar que era a mudança de um anjo.

Um anjo bom e humano com invisíveis asas de plumas perfumadas, levando com ele seu chapéu, suas estantes de livros, sua bicicleta e outros objetos pessoais.

Um anjo, quando se muda, deve ter muita coisa pra carregar: cartapácios com registros e fotografias de quem ele protege, cadernos de milagres, álbuns de recordações de pessoas que acompanhou um dia, armário onde guarda instrumentos do ofício, um piano, aquarelas com os campos do Senhor.

As roupas e as botas do anjo devem ser brancas como nuvem.

Gostava que o meu anjo da guarda viesse morar mais perto de mim.

Meu coração anda necessitado de amigo com sabedoria e consolação. Ele podia até ficar morando aqui em casa. Quando quisesse olhar o mundo pra ver como vão as coisas, podia subir no telhado e ficar perto da chaminé, lugar calmo e iluminado, de onde se tem uma boa vista.

O meu anjo da guarda. Há de expulsar a solidão que toma assento na sala. E nunca mais nenhum mal vai me acontecer.

Quando de noite o medo se acercar de mim, o anjo me dará sua mão forte. Então eu dormirei como um menino. E vou sonhar outra vez.

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Texto revisto, publicado originalmente em 10 de dezembro, 2010.
 

segunda-feira, 6 de maio de 2013

O amor

 
 
photo: j.finatto



O amor suporta todas as coisas, acredita todas as coisas, espera todas as coisas, persevera em todas as coisas. O amor nunca falha.

                    
                                              1 Coríntios 13:7,8
 

sábado, 4 de maio de 2013

A vida breve dos pássaros

Jorge Adelar Finatto

Saíra-preciosa (Tangara preciosa) photo: j.finatto
 
A observação das aves e das nuvens é uma das atividades que mais me cativam. Nesse sábado, raro leitor, vamos falar sobre eles, os pássaros.

Todos os dias eles vêm à sacada do escritório comer as frutas que lhes sirvo. Às vezes reúnem-se vários ao mesmo tempo nos galhos das árvores que quase encostam na casa. Em seguida, vão aos potes. Nunca contei, mas são dezenas durante o dia.

De vez em quando, tenho de repor as porções. No entorno, há árvores frutíferas que também fornecem alimento para eles.


Sanhaço-cinza (Thraupis sayaca) photo: j.finatto

As aves que visitam os potes no escritório preferem a banana. Não há entre elas uma só que não goste. Apreciam também mamão, maçã, cáqui, laranja, figo, melão, etc. Mas banana tem que ter sempre e é a que mais sai.

Ter pássaros por perto é um encanto. A observação cotidiana desses seres é fonte de lições e inspiração. Por exemplo, aprendi que eles são felizes ao natural. Vivem com o que tem e sentem-se bem assim. Não querem mais do que a natureza lhes oferece. Existem. A vida é breve. Ponto.

Saí-azul fêmea (Dacnis cayana) photo: j.finatto

Não permitem que a metafísica e as encucações lhes roubem instantes preciosos.

A vida, para os pássaros, é bela demais para se perder com preocupações menores, raivas, angústias desnecessárias, invejas, ruminações sem sentido.

Pouco antes de amanhecer, eles soltam os primeiros gorjeios. Ao clarear, vão-se ao mundo. De ramo em ramo, de flor em flor, de fonte em fonte, de céu em céu, cuidam de viver.

Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus) photo: jfinatto

Pode ser que tenham lá seus momentos de reflexão em torno da finitude do ser, da consumação do tempo, da origem e da finalidade da existência. Mas isso não deve durar mais que o  breve momento de descanso num galho, no intervalo do vôo.

Saí-azul macho photo: j.finatto

Os pássaros tratam de viver, ao contrário de nós, ocupados demais com a morte.

Eu bem que tentei olhar a vida como eles, mas ainda não consegui. Talvez porque me faltam asas.

Saíra preciosa photo: j.finatto

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Identificação das aves: Clube de Observadores de Aves de Porto Alegre, ao qual agradeço.
 

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O cavaleiro invisível

Jorge Adelar Finatto


Dom Quixote e Sancho Pança, por Gustave Doré (1832 - 1883)


Um homem só, caseiro, beirando os cinqüentanos, cansado da vida pequena e vazia na qual nada acontece, resolve ir ao mundo em busca de aventura, justiça e amor.

A vida que vive não é a venturosa vida dos livros, é outra, enfadonha e triste. O melancólico senhor, habitante da região de La Mancha, na Espanha, mergulhou nas histórias de cavalaria, a elas dedicou seu tempo e sua alma, de tal modo que esqueceu o mundo real.

Vendeu até mesmo parte de suas terras, que não eram tantas, para comprar volumes e mais volumes de livros de cavaleiros andantes.

O valoroso fidalgo, de modestas posses, alto e seco de carnes, revolta-se: é preciso espelhar o sonho na realidade, plantar uma flor no solo ressequido da realidade.

Alonso Quijano vai ao mundo à procura daquilo que mudará o imóvel destino, quer reviver em si as lendas da cavalaria, e tecer outras, delas extraindo glória, reconhecimeno e o amor de sua amada, a não menos inventada Dulcineia del Toboso.

O que nos diz o Quixote é que a vida cotidiana é insuficiente. Falta vida à vidinha.


Dom Quixote, por Gustave Doré

A figura imortal criada por Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1615)¹ é o resumo da alma humana em suas maravilhas, esperanças, desesperos, contradições e tragédias.

O Cavaleiro da Triste Figura saiu pelas estradas poeirentas e bosques da Espanha para resgatar os oprimidos, dar ânimo aos infelizes, levantar os desvalidos, socorrer os caídos, lutar contra todas as injustiças, e para salvar a si mesmo.

Montado no magro Rocinante ele vai, armado cavaleiro andante, com escudo, espada e lança, tendo por companheiro Sancho Pança, meio louco e meio sensato como o amo, montado em seu jumento.

A vida tal como é não basta. É necessário inventar outra, erguer a aurora da escuridão. É preciso viver intensamente os dias que passam velozes e irrecuperáveis.

Viver com a urgência de quem se despede. Viver como quem morre. 

"Eu, Sancho, nasci para viver morrendo."²

Ninguém no mundo terá jamais autoridade para censurar Dom Alonso pelo desvario e fracasso da louca odisséia. Só os secos de espírito o fariam.

Não será essa busca o anelo secreto que habita o coração de tantos homens e mulheres na difícil jornada através do mundo hostil e trevoso, sonhando e lutando por uma outra existência, que faça valer a pena ter nascido?

Há talvez um Dom Quixote adormecido e invisível em cada um de nós, à espreita da hora da rebeldia.

"Cada qual é artífice de sua ventura"³, ensinou-nos o Quixote.

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¹ Dom Quixote de la Mancha. Miguel de Cervantes Saavedra. Edição ilustrada por Gustave Doré, três volumes. Tradução de Almir de Andrade e Milton Amado. Ediouro Publicações S.A, Rio de Janeiro, 2002.
² idem, terceiro volume, p.307.
³ idem, ibidem, p. 379.
Fonte das ilustrações: Wikipédia.Texto revisto, originalmente publicado em 14 de julho, 2012.