quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Os esquecidos e os lembrados

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto.Aparados da Serra, RS.
 


Integração
 
tem dias que me sinto
tão em tudo
que me parece que não vou morrer
construo-me a cada instante
no próprio ar que respiro
me pouso longe
tranqüilo
onde no olho do pássaro
o vôo já está completo
onde no pouso do pássaro
fica vibrando a distância
que a ave traz inserida
ao repentino do vôo
duma iminente partida
são as pequenas coisas
que fazem a nossa vida
eu vivo o que deslimito *
 
                            Heitor Saldanha
 
Nunca entendi bem os motivos que fazem de certos escritores ilustres desconhecidos. Embora tenham um bom trabalho literário, permanecem na sombra. Ao passo que outros, com pouco ou nenhum mérito, são convidados para almoçar todos os dias no Olimpo dos deuses das letras e  ocupam generosos espaços nos meios de comunicação.
 
O livro, na minha visão, é um objeto espiritual, antes de qualquer coisa. Quanta ingenuidade! Na visão dominante, livro é negócio como outro qualquer. Existe uma luta de facão, no mundo editorial, para impor autores no mercado. Tudo ou quase tudo passa pelo departamento comercial.

O que se vê é que não há mais divulgação desinteressada em jornais, revistas e meios eletrônicos. Tudo tem um preço. A começar pela colocação de livros nas livrarias, onde cada setor tem um valor, dependendo da localização. Provavelmente existem exceções, poucas.

Torna-se cada vez mais comum ver detentores de espaços escritos/falados/televisados, na imprensa, propagandearem, sem nenhum pudor, suas próprias produções, de forma insistente. Apropriam-se dos veículos de informação como se fossem algo pessoal e não social.

Claro que há escritores de qualidade que conseguem furar o bloqueio. Mas o sistema em vigor é altamente excludente e privilegia a homogeneidade autoral em vez da diversidade. Trocam-se os nomes dos escrevinhadores, mas o texto é sempre o mesmo.

A tal ponto a mesmice se instalou, que dificilmente veremos surgir, hoje ou no futuro próximo, no Brasil, um escritor com a sintaxe genial de João Guimarães Rosa. O ambiente é totalmente desfavorável à literatura enquanto invenção.
 
Criadores de talento, em todas as áreas, amargam na úmbria do anonimato. O fenômeno não começou agora. Mas atualmente está muito pior do que há 20 anos.

O tempo, às vezes, faz justiça e resgata alguém que ficou esquecido na álgida furna. Mas o tempo é um senhor muito velho, de longas barbas de nuvem, e tem lá seus muitos lapsos de memória.

O que restou de democrático, no fim das contas, é a internet, pelo menos enquanto não vier um marco civil criando uma internet ruim para pessoas comuns como nós e uma outra, rápida e poderosa, para os grandes meios de comunicação.

Na literatura, como na vida, uma atitude é essencial: persistência. Um escritor apenas razoável talvez não se torne um escritor brilhante. Mas, com trabalho e coragem para evoluir, poderá melhorar muito o resultado de sua escrita.

O que importa é não publicar qualquer coisa, e não desistir nunca. Além disso, temos a eternidade pela frente, porque ninguém se importa mesmo.

Não falo essas coisas por mim, que já fui inscrito no livro-tombo do esquecimento em vida, escritor interiorano, cronista de temas pastorais, correspondente do fim do mundo. Falo por autores de real importância que não têm voz. E pelos leitores que não os conhecerão.

Lembro alguns deles, aqui do Rio Grande do Sul, mas existem outros: Jorge Jobim, pai de Tom Jobim; Heitor Saldanha, Henrique do Valle e Paulo Corrêa Lopes, todos excelentes poetas, todos encobertos pela névoa da indiferença.

Se você leu ao menos um deles, parabéns. Se não, procure descobrir em algum livro-velheiro, pois não são editados há muitos e muitos anos (já falei sobre cada um deles no blog). O que escreveram é da melhor qualidade, mas nenhum escritor, crítico, professor ou jornalista se ocupa deles (com raríssimas exceções). Por quê? Eu me pergunto e não sei a resposta. Simplesmente não estão entre os eleitos. Habitam a caverna dos esquecidos.

Alimento meu coração de leitor e minhas estantes com o que vasculho nos sebos. E que as musas não nos abandonem nunca.

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*A Hora Evarista, Heitor Saldanha. Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1974. p. 18.
 
Escrever em língua portuguesa:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/05/escrever-na-lingua-portuguesa.html
 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Itaimbezinho: beleza e perdição do abismo

Jorge Adelar Finatto

Itaimbezinho. photo: j.finatto

Há muitas verdades entre o céu e a Terra que não se encontram nos livros. Revelam-se no silêncio da floresta.
 Balduino Rambo ¹

O silêncio é tão grande, às vezes, que tenho a impressão de que, se chamar por Deus, Ele ouvirá e responderá em meio aos eternos paredões de basalto erguidos no vento. Mesmo os que não crêem são levados a pensar nessa possibilidade, diante da majestade do espetáculo da natureza no Itaimbezinho.

Estive na quinta-feira passada (19/9)  visitando o Parque Nacional dos Aparados da Serra, onde está o cânion do Itaimbezinho, encravado nos Campos de Cima da Serra. Os paredões verticais chegam a 700 metros de altura.

As cercanias das bordas do abismo, o qual se prolonga por quase 6 quilômetros, são formadas por suaves percursos de campo que acabam em quedas escarpadas.

Os campos de fato são "aparados", isto é, cortados como a fio de faca, terminando sem transição na aba dos precipícios. ²

A origem do nome vem do Tupi: ita significa pedra, e aimbé, cortada. No interior do cânion, existem cursos de água, abundante vegetação, animais, fendas e cascatas que se derramam sobre o leito rochoso.

Essa região fica a nordeste do Rio Grande do Sul e faz fronteira com Santa Catarina. O lugar é de um vigor extraordinário. O Parque Nacional da Serra Geral, onde se encontra o cânion Fortaleza, está ao lado. Ambos os parques são administrados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.³

O Parque Nacional dos Aparados da Serra foi criado em 1959. Nasceu da inspiração e do grandioso trabalho do notável pensador, escritor, cientista e padre jesuíta gaúcho Balduino Rambo (1905-1961). Situa-se no município de Cambará do Sul, um dos lugares mais frios do Estado. A chegada até o cânion é íngreme por uma estrada de chão e pedra, numa extensão de 17 quilômetros.

Há uma beleza inaugural no lugar. Uma visão que vem das origens do mundo. Entre aqueles espessos e altos paredões correram as águas do Dilúvio.

 A jóia mais preciosa de todas as paisagens dos aparados rio-grandenses é o Taimbezinho. 4
  
Trata-se de um dos cenários mais bonitos do Brasil. A vista do cânion é estonteante, no duplo sentido de bela e, ao mesmo tempo, vertiginosa. Um encanto visceral misturado com um vestígio de angústia.

A paisagem fascina pelo alumbramento que produz no espírito. Uma beleza inesquecível.

O Itaimbezinho representa uma presença física e estética esmagadora da natureza.

Itaimbezinho. photo: j.finatto

O belo grandioso é aquele sentimento estético que, de um lado, abala o espírito em sua pequenez diante das forças da natureza e, do outro lado, compensa tais abalos pela consciência íntima da realeza humana sobre todas as forças naturais. 5

Há, de fato, no Itaimbezinho, um apelo ao belo que é verdadeira perdição, isto é, a ele não podemos resistir. Mas existem, também, riscos aos quais o visitante deve estar atento.

Fiz a Trilha do Vértice, a mais curta, que se estende por cerca de 1400 metros (ida e volta), com três ou quatro pontos de observação. O último deles sem nenhum belvedere para a parada dos visitantes. Fica-se à beira do precipício, separado deste apenas por um singelo fio de cabo de aço que mal se levanta do chão e nada protege. Além disso, o espaço é muito pequeno. Qualquer descuido ali pode ser fatal.

A outra trilha é a do Cotovelo, que tem cerca de 6 quilômetros e se aprofunda mais no parque. Existe ainda uma terceira, a Trilha do Rio do Boi, que dá acesso ao interior do cânion e cuja entrada é do outro lado, pela cidade de Praia Grande, em Santa Catarina. É um caminho para fazer com guias experimentados.

Itaimbezinho. photo: j.finatto

Não são raros os casos de pessoas que se perderam e até morreram no local nas últimas décadas. Existem situações de morte acidental e outras por suicídio. Numa rápida pesquisa, verifiquei a ocorrência de alguns desses casos neste ano. No último, um rapaz está desaparecido desde o dia 27 de julho passado. Sua mochila foi encontrada na margem do despenhadeiro. Ninguém sabe o que aconteceu. As buscas resultaram infrutíferas e estão suspensas.

São milhares de visitantes todos os anos. Nem todos têm o cuidado necessário para transitar em semelhante ambiente. Por isso, as visitas mais seguras são as guiadas.

Algumas pessoas esquecem que o perigo ronda todo abismo. Por desconhecimento, excesso de confiança ou simples falta de noção metem-se em situações de risco.

Por outro lado, é visível a necessidade de melhorar a infraestrutura do parque, com mais investimentos para contratar pessoal, melhorar as instalações, a orientação dos visitantes, a sinalização dos caminhos, e para construir novos mirantes seguros de observação.

Não obstante o esforço da administração e dos funcionários, falta mais gente e faltam equipamentos para tornar o parque mais aproveitável, principalmente para os estudantes. Afinal, são 13.060 hectares de área de Mata Atlântica e Floresta de Araucária que merecem toda atenção.

Itaimbezinho. photo: j.finatto

A atração pelos abismos é uma inclinação que trazemos dos ancestrais. O ser humano tem encanto atávico por este tipo de formação natural.

Vale a pena conhecer os Aparados da Serra, com a contemplação cuidadosa e o respeito que os precipícios exigem de nós.

Do passeio só devemos trazer boas recordações e fotografias.

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¹Pe. Balduino Rambo. A pluralidade na unidade. Memória, religião, cultura e ciência. Vários autores. Editora Unisinos, São Leopoldo, 2007. contracapa.
²A Fisionomia do Rio Grande do Sul, ensaio de monografia natural, Balduino Rambo, 3ª edição, 2ª reimpressão, Editora Unisinos, São Leopoldo, 2005. p. 389.
³Instituto Chico Mendes
http://www.icmbio.gov.br/portal/o-que-fazemos/visitacao/ucs-abertas-a-visitacao/729-parque-nacional-de-aparados-da-serra.html
4 idem à nota 2. p. 385.
5 idem. p. 429.
  

sábado, 21 de setembro de 2013

O navegador de estrelas

Jorge Adelar Finatto
 
Nebulosa do Camarão. Autor: Observatório Europeu do Sul
 

A Nebulosa do Camarão é considerada pelos astrônomos uma efervescente maternidade de estrelas. Um grande número desses astros ali nasce e se aninha calidamente entre as nuvens de gás. A imagem mais nítida dessa região do espaço, situada a 6.000 anos-luz da Terra, foi divulgada na quarta-feira (18/9) pelo Observatório Europeu do Sul.
 
As fotografias foram feitas pelo Survey Telescope (Telescópio de Rastreio) um dos mais potentes do mundo, na localidade de Paranal, ao Norte do Chile, onde se situa o observatório. Naquele lugar estão os maiores telescópios em atividade no planeta.

O Survey Telescope tem 2,6 metros de diâmetro e foi construído em torno da câmera OmegaCam, que é capaz de produzir fotografias em resolução bastante alta, de até 268 megapixels.
 
Recém-nascidas, quentes, brilhantes, candentes, assim são as estrelinhas que a nebulosa dá à luz, fazendo daquele recanto do universo um verdadeiro berçário.

Não sou especialista no assunto, longe disso, mero navegador de estrelas nesta estação de fim do mundo que é Passo dos Ausentes, lugar tão longínquo e pouco freqüentado como aquele território perdido no espaço. Mas acho que a Nebulosa do Camarão é lugar dos mais ternos e alegres que existem, com suas inumeráveis estrelas bebês.

As infantas se espreguiçam, fazem graça, ensaiam primeiras palavras e movimentos no aconchego da imensa nuvem azul.

A distante maternidade, situada na Constelação de Escorpião, brilha na vastidão do cosmos.

As estrelinhas irradiam pó de luz no breu frio do infinito que a tudo separa e devora. São elas que iluminam a alma do viajante do espaço quando, solitário e fatigado, passa naquelas paragens em sua nave.

De olhar o céu não me canso. Seria bom que as pessoas olhassem mais para as estrelas. Astrônomo feito a facão, habitante dos Campos de Cima do Esquecimento, tenho às vezes impressão de ouvir as risadas e as vozes das pequenas criaturas no sopro do vento estelar.

Enquanto isso, a bordo do telescópio caseiro, rastreio o universo à procura da estrela que um dia fugiu dos meus olhos, desapareceu e nunca mais.

Quem sabe ainda nos encontraremos numa outra constelação.
 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Um barco atravessa a alma da cidade

Jorge Adelar Finatto
 
photos: j.finatto
 
No sábado saí pelo Guaíba de barco. Esse rio é a alma de Porto Alegre. Entre a cidade e o rio, uma coleção de embarcações, pequenas ilhas e crepúsculos.
 
Poucas cidades têm um rio assim para espelhar-se, matar a sede e tomar banho. Mas o esgoto é uma página difícil que teima em não se resolver.
 
As gaivotas povoam a solidão, voando sobre os navios que partem no rumo do mar. São cerca de 300 quilômetros de água doce que remetem Porto Alegre ao Atlântico pela Lagoa dos Patos.
 

Fiquei um tempo olhando o azul do céu, sentindo o balanço das ondas, avistando o continente ao longe. Na altura da antiga chaminé, no Parque Harmonia, muita gente caminhava, corria ou andava de bicicleta pela via que margeia o rio (nos fins de semana interrompe-se ali o tráfego de veículos). Alguns biguás sobrevoavam o espelho.
 

A luz de começo de outono se derrama sobre a paisagem. A delicadeza das cores espalha-se no enlace de céu, vela e cais.
 
Tenho a impressão que fico alguns anos mais moço toda vez que navego pelo Guaíba.
 

Os aguapés divagam solitários, soltos e vivos nas águas.

Eu sou o efêmero capitão de um barco que atravessa o cartão-postal.
 

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Texto revisto, publicado originalmente em 4 de abril, 2011.
 

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Noturno da minha rua

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

 
Essa é a hora em que os olhos se fecharam e todos dormem. Só eu não dormi na minha rua. Não posso dormir. Existe muita coisa calada querendo falar. 

No edifício da esquina uma luz se acende, não sei se numa sala ou num quarto. Talvez seja outra insônia igual a minha. Talvez uma sede em busca de um copo dágua. Talvez uma saudade da infância. Talvez um remorso. Talvez um medo. Talvez uma perda (isso que eu e meu silêncio conhecemos bem a essa hora).
 
Há uma luz que nunca se apaga no edifício daquela colina do outro lado. Pode ser alguém doente naquele apartamento, ou alguém conversando com fantasmas, ou que ficou só e acontece que não consegue dormir sozinho.
 
Muitas coisas eu vejo da minha janela noturna.

Uma mulher atravessa a rua fumando, a brasa vermelha flutua na escuridão em direção ao desconhecido, desaparece.

O olhar tem vida efêmera na furna.

As únicas realidades da noite que são belas e não têm fim são os sonhos das crianças.
 
Eu sinto uma falta absurda de alguma coisa que não está mais aqui. Queria de volta o meu anjo da guarda pra conversar nessa hora despida e inerme, em que não há defesa possível, porque estamos muito sós, já é muito tarde, e todos na casa e na rua dormem. Como falar dessas coisas com alguém, se nem ao menos sabemos do que se trata? 
 
Vou até a janela velar a estrela que brilha solitária acima da minha rua. Peço a ela que não me deixe sozinho na furna fria.
  

sábado, 14 de setembro de 2013

Blobfish, a melancolia de um rosto

Jorge Finatto

photo: blobfish. Greenpeace/Rex Features

A Sociedade de Preservação dos Animais Feios (Ugly Animal Preservation Society*) fez um concurso pela internet para escolher o bicho mais feio do mundo em 2013.

O objetivo dessa sociedade inglesa é chamar a atenção para animais pouco visíveis, pouco conhecidos e nem tão bonitos assim, que, no entanto, desempenham seu papel no ecossistema, merecendo, como os ursinhos panda que todos acham lindos e fofos, ser protegidos.

Participaram da eleição mais de 3 mil votantes. O eleito no curioso certame foi blobfish, ou peixe gota, com nome científico de psychrolutes marcidus. Ele habita as profundezas do Oceano Pacífico, e agora é o mascote da UAPS.

Blob tem aparência de gente. Tem um ar inteligente, tímido, mimoso e melancólico.

A expressão taciturna é de alguém desamparado no mundo. Mais que isso, percebo nele a tristeza dos que a sociedade rotula, não sem crueldade, de estranhos ou feiosos.

Procuro entender o que vai na alma de BLOB. É visível que ele não gosta da situação criada à sua volta, incomoda-o a exposição a que está sendo submetido.

Seu semblante parece dizer-nos: me deixem em paz, detesto sensacionalismo ecológico, principalmente este que está sendo feito em relação à minha discreta pessoa.

Julgar alguém pela aparência é um hábito leviano e prepotente que leva, não raro, a erros grosseiros. Imperdoáveis injustiças cometem-se em nome das aparências. Nós, os que não somos lindos, nos ressentimos com isso. Por isso entendo o sentimento de indignação de Blob.

Fazer julgamento pelo aspecto exterior é coisa de néscios e brutamontes, os quais, infelizmente, tomam conta do planeta desde sempre.

Não será este, por certo, o caso da Sociedade de Preservação dos Animais Feios, cujo objetivo, ao que parece, é justamente proteger de maus-tratos e da extinção criaturas da natureza pouco atrativas esteticamente, isto é, feias na visão do senso comum (quantas barbaridades se cometem com base no tal senso comum!).

O senso comum tem feito misérias ao longo da história. Hitler chegou ao poder e fez o que fez com base no senso comum da Alemanha da época. As ditaduras sul-americanas, mas não só, idem.

Uma pessoa jamais pode dar-se o direito de não pensar. Do contrário há sempre o risco de outros o fazerem por ela e, em seu nome, cometerem grandes desatinos e crimes. O espírito crítico é fundamental em qualquer situação, pena de aceitar-se o horror como algo normal e o mal como coisa banal.

Continuando. No que concerne aos padrões de beleza normalmente aceitos, são em geral vazios, mesquinhos, privilegiando a crosta dos viventes mais que o conteúdo. Coisa tola.

Mas, afinal, o que é feio e o que é bonito, não é, Blob? Acaso existirão o feio e o belo absolutos? Não haverá nisso uma margem de subjetivismo, de nuvem e de negociação?

Por causa da ditadura das aparências, um dia, na tentativa de evitar comparações estéticas com outros seres, e os sofrimentos daí decorrentes, os ancestrais de Blob resolveram habitar o fundo profundo do oceano.

Adaptaram-se com o passar do tempo, vivendo no silêncio e na solidão das águas de profundeza, onde poucos resistem. Os marcidus suportam bem grandes pressões no corpo gelatinoso. Acima de tudo, acho que eles queriam ficar longe da maldade humana, dos julgamentos desumanos. Mas não adiantou muito, infelizmente, pois os parentes de Blob continuam sendo alvo de pesca predatória.

Frotas de traineiras que utilizam redes de arrastão, na Austrália e Nova Zelândia, ameaçam de extinção a família blobfish. Na ânsia de pescar sem limites, acabam capturando peixes como ele, que sequer é comestível. Em princípio, portanto, não interessa à pesca, mas é preso no embalo das redes.

Blob não entende, e eu muito menos, por que, sendo tão parecido com os humanos, foi justamente ele escolhido como animal mais feio do mundo.

- Mas como?, pergunta ele incrédulo. - Será que as pessoas não gostam de se olhar no espelho, será que têm vergonha de sua aparência, não se acham suficientemente belas? A autoestima do ser humano anda assim tão baixa?

Difícil entender, amigo Blob. Creio que a maioria não atenta para o que realmente importa, que está no coração e nos valores de cada um, e não na fachada. Triste mundo. Mas se serve de consolo, Blob, digo que, pra mim, tu és um dos seres mais bonitos que eu já conheci.

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*Ugly Animal Preservation Society
http://uglyanimalsoc.com/

Biodiversidade
http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL1463377-5603,00.html

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Um Van Gogh guardado no sótão

Jorge Adelar Finatto

Pôr-do-sol em Montmajour. photo: Reuters
 
Nesta segunda-feira (9/9), o Museu Van Gogh¹, de Amsterdam, anunciou a descoberta de mais um quadro de Van Gogh (1853-1890). Trata-se de Pôr-do-sol em Montmajour (Sunset at Montmajour), pintado pelo artista em Arles, sul da França, em 1888.

A pintura revela uma natureza abundante, colorida, com plantas retorcidas e a ruína de uma parte da vetusta abadia de Montmajour, ao alto, situada a poucos quilômetros de Arles, onde o pintor gostava de ir. A cena se passa ao entardecer, sob um céu em que predominam os tons claros.

A obra foi apresentada pelo diretor do museu, Axel Rüger (à esquerda na foto abaixo). Ele disse que um achado desta importância ainda não havia ocorrido na história do museu (inaugurado em 1973), tratando-se de um acontecimento raro.

A pintura pertence a um colecionador particular, que prefere não se identificar. Mede 93,3 centímetros de comprimento por 73,3 de altura. Será exibida ao público no MVG a partir de 24 de setembro próximo.

photo: apresentação do quadro no Museu Van Gogh
fonte: AFP

A informação mais curiosa que li é que o quadro estaria guardado no sótão da casa do proprietário. Segundo divulgado, um industrial norueguês teria adquirido a obra nos anos 1970. Ela chegou a constar do catálogo de Theo Van Gogh, irmão do artista. Submetida a exame nos anos 1990, sua autenticidade foi rejeitada pelo MVG.

Agora, porém, ao refazer o estudo, dois peritos da instituição analisaram a pintura durante dois anos, numa pesquisa aprofundada que levou em conta o estilo do pintor, o material por ele utilizado, a técnica, bem como sua correspondência com Theo.

Nas numerosas cartas, ele sempre abordava com Theo os trabalhos que estava desenvolvendo. Numa missiva de 5 de julho de 1888, Van Gogh descreve ao irmão o cenário que a tela ora descoberta mostra:

"Ontem, ao pôr-do-sol, estive num matagal pedregoso em que cresciam carvalhos muito pequenos e retorcidos, tendo ao fundo uma ruína sobre a colina, e campos de trigo no vale. Uma cena que não poderia ser mais romântica, à la Monticelli, o sol despejava seus raios muito amarelos sobre os arbustos e a terra, numa verdadeira chuva de ouro (tradução livre)."² Na mesma carta, o pintor diz ter feito um estudo pictórico do local, mas que ficou abaixo do que desejava fazer.
 
Conforme o MVG, a obra se insere num período muito importante, considerado por alguns o auge de sua produção, no qual compôs quadros como Os girassóis, O quarto e A casa amarela.
 
Van Gogh não tinha ateliê nem alunos. Era um artista solitário e errante, andava para cima e para baixo com sua caixa de pintura às costas. Costumava levantar cedo para o trabalho (queria aproveitar a luz) e nada na sua vida importava mais do que pintar. A pobreza sempre esteve a seu lado. Ironicamente, hoje seus quadros estão entre os mais caros do mundo e museus importantes sonham em realizar uma exposição com seu trabalho.
 
Autorretrato com chapéu de feltro, 1888

Morto aos 37 anos, num suposto e nunca esclarecido suicídio³, em Auvers-sur-Oise (cidadezinha perto de Paris), Van Gogh trazia o arco-íris dentro do peito. Em sua breve passagem pela Terra, revelou ao mundo a beleza das cores, as quais libertou em força e luz. Na sua mão, as formas e sentimentos ganharam outra dimensão.

O traço de Van Gogh é único como única foi sua solidão e sua dedicação à arte. Uma vida profundamente sofrida que, no entanto, só retribuiu com felicidade.
 
Em cada obra que nos legou, Van Gogh entregou um pedaço de seu coração.
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1.Museu Van Gogh:
http://www.vangoghmuseum.nl/vgm/index.jsp?page=330698&lang=en
2.Carta:
http://www.vangoghletters.org/vg/letters/let636/letter.html
3.O último quarto de Van Gogh (The last bedroom of Van Gogh)
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2009/12/o-ultimo-quarto-de-van-gogh.html