quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A Liga da Orquídea

 Jorge Adelar Finatto

Fachada da Sociedade Histórica, Antropofágica e Literária de Passo dos Ausentes
photo: j.finatto
 

Em Passo dos Ausentes, de onde escrevo essas longínquas linhas, não há registro oficial de morte motivada pelo frio. Apesar das peculiares condições atmosféricas, que impõem ventos polares, chuvas, neblinas e neves em boa parte do ano, por aqui de frio ninguém morre. 

Datam do tempo da fundação da cidade, em 1759, por índios guaranis e padres jesuítas fugidos da destruição de São Miguel das Missões, os primeiros agasalhos de lã tecidos nos Campos de Cima do Esquecimento. Grossos capotes, palas, ponchos, meias, calças, vestidos, ceroulões, casacos, blusas, luvas e mantas de lã crua fazem parte da indumentária da Terra dos Ausentes.  

Se de frio ninguém padece, o mesmo já não se pode dizer daqueles que sofrem nas geleiras da solidão. 

Há entre nós relatos que entraram para a literatura médica mundial, de vidas que foram salvas de morrer de solidão e de ausência de afeto. Os casos foram descritos com detalhes pelo único médico existente em Passo dos Ausentes, Dr. Fredolino Lancaster, que, aos 98 anos, ainda exerce a medicina, na falta de substituto. 

Em memorável palestra na Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Geológica, Astronômica, Teatral, Antropológica e Antropofágica de Passo dos Ausentes, Fredolino Lancaster abordou o tema Da solidão glacial dos viventes e dos moribundos. Eis alguns trechos da fala do nosso venerando esculápio: 

- A prova de que o abandono e a falta de afeto também adoecem e podem até mesmo levar à morte eu recolhi em pelo menos 30 casos hoje considerados clássicos. Apresentei este estudo em 1980, em Londres, durante encontro internacional de médicos especialistas na alma humana. Trago apenas um resumo.

- Antes de prosseguir, um calicezinho de graspa, por favor. Assim, assim está bem. Obrigado, Mocita de La Vega.

- É importante atentar para os sintomas. Persistentes tremores de frio acompanham o indivíduo desde que acorda até adormecer. Ocorrem independente da temperatura que faz no ambiente. A temperatura do corpo fica mais baixa do que o normal. Palpitações, suor frio, olhos e boca secos, mãos instáveis, vontade de não sair da cama ou de casa, e uma acentuada atração pelo abismo são alguns dos sinais.

- Na situação descrita, os pacientes perderam laços afetivos importantes, passaram a revolutear em volta das perdas como mariposas ao redor da lâmpada. A solitude persistente, intocável com palavras, o vazio, o frio interior, compõem o quadro de uma doença impiedosa e cruel, que precisa ser identificada logo no início. Pode apresentar quadro agudo, mas costuma ser crônica, e é deveras traiçoeira.

- O tratamento para evitar o trágico desfecho - a morte física ou, pior ainda, a morte interior, também conhecida como morte em vida (indiferença profunda diante de tudo e de todos) - é a terapia do urgente abraço. 

- Povos antigos utilizavam o abraço tribal para prolongar a vida de seus moribundos, o que acontecia às vezes por muitos dias, meses e até anos. Adaptei o abraço tribal para nossa álgida realidade,  nessas alturas dos Campos de Cima do Esquecimento. Tenho casos de pacientes que sobrevivem há dez, vinte ou mais anos, mesmo com graves doenças, valendo-se do abraço amigo.

- Desde que passei a utilizar a terapia, nunca mais perdi um doente de solidão. É preciso cercar o enfermo com atenção e ternura. Um abraço prolongado, duas vezes por dia, é o tratamento indicado para os casos leves. Para casos mais graves, abraços de três em três horas, em casa, na rua ou no local de trabalho, são fundamentais.

- É necessário identificar os possíveis abraçadores, que podem ser parentes, cônjuges, amigos, vizinhos e até mesmo desconhecidos, desde que instruídos para o nobre mister. 

- A Liga da Orquídea, que atualmente presido, sob a cálida inspiração de Alberta de Montecalvino, a Senhora da Biblioteca, faz um trabalho notável de visitas e apoio aos doentes de solidão com seu grupo de voluntários e voluntárias. 

- A solidão dos moribundos é, de longe, a pior solidão. Até um macróbio como eu tem medo da morte. E a pior morte é a morte solitária, sem carinho. 

- O abraço, portanto, é remédio sem igual para enfrentar a solitude e o medo de morrer. Prolonga a existência e revigora o coração. É tratamento sem igual para a saúde física e para o espírito. Não há novidade nisso, pois, no passado, em São Miguel das Missões, terra dos nossos ancestrais, já era utilizado. Obrigado.

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Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html
 

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Quintana e a Feira do Livro de Porto Alegre

Carlos Alberto de Souza
 
Mario Quintana. photo: Daniel de Andrade Simões*
 
 
Mario Quintana foi, por muitos anos, um frequentador assíduo da Feira do Livro.
 
Não faltavam razões para ele se esgueirar por entre as bancas que ano a ano foram se multiplicando e rompendo os limites da Praça da Alfândega.
 
Quintana era escritor, além de tradutor e crítico cuja opinião era abundantemente demandada por novos autores; portanto, a feira era um habitat natural para ele.
 
Quintana era poeta, e os poetas gostam de praças.
 
Quintana morava no Centro (habitou o Majestic, o Presidente, o Royal e o Porto Alegre Residence) e a proximidade desses hotéis com a feira também facilitava a ida reiterada do velho pedestre e fumante a cada edição do maior evento livreiro do Estado.
 
Quintana trabalhava no Centro, no Correio do Povo, contíguo à praça da feira, e os serviços que prestava à Editora/Revista do Globo deviam levá-lo ao quartel-general da empresa, na Rua da Praia, onde ficava a histórica livraria de mesmo nome.
 
Quintana era solteiro, não tinha família, pelo menos um núcleo familiar sólido - vale lembrar a dedicada presença da sobrinha Helena no fim da vida do tio querido. Ir à feira, onde teve a esperá-lo uma bela Bruna Lombardi, também era uma forma de fugir da solidão do quarto de hotel. Na praça e em outros lugares públicos, o poeta era admirado, festejado, abordado, acolhido, reconhecido. A rua sempre foi para ele uma espécie de antítese da Academia Brasileira de Letras.
 
Enfim, não faltavam razões para Quintana ir à feira. E, uma delas, convém não esquecer, a condição de leitor, de consumidor de livros, de remexedor de baús.
 
Jamais Mario Quintana foi à Feira do Livro, penso eu, “porque ele nos últimos anos era um velhinho folclórico...”, como disse, com rara infelicidade, o patrono da atual edição da feira, Luís Augusto Fischer, em entrevista a Zero Hora (caderno Cultura, pág. Central, 12/10/2013). Nessa, o dono da coluna Pesqueiro da própria ZH se enredou na linha do pensamento e das palavras e fez feio.
 
O bom professor tem a chance de se redimir homenageando Quintana no seu discurso de abertura da feira. Afinal, foi com a presença constante e pertinente de figuras como o poeta que a feira se fez e é o que é.
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Carlos Alberto de Souza é jornalista em Porto Alegre.
smcsouza@uol.com.br

domingo, 13 de outubro de 2013

Seco

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto




Secos pássaros dormem em ressequidos ninhos. Secas folhas de plátano se agitam contra o azul. Manhã silenciosa, bailarina morta na caixa de música, seca. Enferrujado relógio de parede, retratos na gaveta, tudo seco.

Secas as lágrimas na face do vento.

Coração seco, boca seca, mãos secas. Secas palavras. Secas pétalas de camélia vermelha dispersas no chão. Secos dedos dedilham secas cordas de violino. Seco, seco.

Secos abraços unem os amantes. Secas velas movem as faluas do Tejo.

Secos olhos olham o pôr-do-sol no Guaíba. Secos, secos.

Secos homens invadiram as ruas da cidade, cometeram tristes barbaridades.

O milharal, tão seco, pegou fogo.

Sentimento e pensamento, secos. O sexo, sem ternura, seco, seco. As páginas do livro de poemas por escrever, secas, secas.

Seco olhar observa no fundo do espelho.

A esperança, um rio seco dentro do coração, talvez volte a amanhecer.
 
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Texto revisto, publicado em 23, maio, 2011.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Conversa de amigo

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


O leitor do blog é companheiro de viagem. Conversamos na jornada como o vento conversa com os pinheiros e a Lua na tarde de Passo dos Ausentes.
 
A idéia de que a internet cria um ambiente de convivência e troca é estimulante. Um lugar onde todos podem ser ao mesmo tempo leitores e escritores. Emissores e receptores de mensagens, sem a atitude meramente passiva que assumimos diante de um jornal, revista, meios eletrônicos, etc.
 
Por outro lado, ninguém deve ficar tempo demais diante do computador, esquecendo a vida real em nossa volta. Isso nos levaria ao isolamento e sua multidão de fantasmas. Somos gente e necessitamos da presença física do outro.
 
Precisamos de convívio, encontro real com pessoas reais.
 
Não sei quantas pessoas estão do outro lado da tela, mas isso não importa. A qualidade de quem lê é que faz a diferença.
 
As manifestações dos leitores são escassas, é verdade, quase não existem. Mas às vezes tenho a impressão de ver um leve movimento na cortina da janela virtual, anunciando que alguém parou e, por um breve instante, deu uma olhada para o interior da sala.
 
A grande arte, a arte superior e civilizada é, sem dúvida, a leitura. Ler é traço de humanismo, empatia, generosidade, curiosidade. Eu me considero, antes de tudo, um leitor, um leitor esforçado que encontra recompensa no seu esforço. Além de estar sempre com um livro por perto, tenho descoberto bons blogues, com riqueza de informação, análise, imagens e criação literária.

A palavra bem escrita tem espaço garantido no coração do leitor, independente do meio onde esteja veiculada.
 
Ler e escrever são a prova acabada de que o ser humano foi criado para ser convivente nessa curta passagem existencial.
 
O filósofo Jean-Paul Sarte (1905-1980) disse: "o inferno são os outros", com sabedoria. É este outro, algumas vezes tão diferente e outras tão parecido conosco, quem, afinal, no ato de nos "infernizar", nos completa, nos dá sentido, nos faz querer ser melhores do que somos.
 
Esta prosa me lembra um poema de Robert Frost (1874-1963), grande poeta norte-americano que viveu perto da natureza e que apreendeu, como poucos, a poesia transcendente que dimana das coisas simples. É com os versos de Frost que digo até logo, desejando uma boa sexta-feira a todos.
 
Hora de conversar*
  
Quando da estrada um amigo me chama
Refreia seu cavalo e anda a passo
Não fico parado e olho à volta
Para todas as colinas que não capinei
E grito de onde estou: “O que é?”
Não, não como se houvesse um tempo para conversar.
Enterro minha enxada na terra fofa
A lâmina para cima a cinco pés de altura
E ando: vou até o muro de pedra
Para uma conversa de amigo.
 
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*Poemas Escolhidos. Robert Frost. Editora Lidador Ltda. Rio de Janeiro, 1969. Tradução de Marisa Murray.
 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Somos todos de uma distante galáxia

Jorge Adelar Finatto
 
Imagem da galáxia espiral NGC 1637*

 
A idéia de que alguém na Islândia, na China ou na galáxia espiral NGC 1637, a cerca de 35 milhões de anos-luz da Terra (na constelação do Rio Erídano), está lendo estas linhas dá o que pensar. Revela o poder da palavra na internet, capaz de estreitar distâncias, suavizar o tempo, mitigar solidões.

Se é verdade que somos todos estrangeiros neste estranho universo, resta ao menos a esperança de encontrar pelo caminho pessoas pra partilhar a vida, tornando a viagem menos solitária.

Escrever num blog, raro leitor, é como escrever com lápis de cor numa nuvem. Ninguém sabe no que vai dar, mas é bonito ver as letras coloridas no fundo branco.

A palavra impressa passa o sentimento físico de permanência, ao contrário do ciberespaço, no qual domina a sensação de extrema fugacidade.

Estamos acostumados a pensar no papel como se nele a palavra estivesse a salvo do tempo, do desaparecimento.

Mas a impressão de perenidade não deixa de ser uma quimera.

A imensa maioria dos livros está condenada ao esquecimento por falta de leitores. Sobrevivem alguns fisicamente nas estantes, mas é uma existência sem brilho e sem alma. Na verdade, vivem no escuro e no pó. A luz de olhos humanos não ilumina suas páginas fechadas.

Só está vivo o texto (virtual ou impresso) quando encontra um leitor que o descobre e retira do claustro.

O resto é silenciosa espera na biblioteca (ou na nuvem da internet).

O blog é uma esquina invisível onde amigos se reúnem pra conversar. Um meio de comunicação aberto a todos, lugar de encontros, região de claridades.
 
Escrever na nuvem, portanto, é uma maneira de resistir. Uma ilusão, quem sabe, mas ajuda a viver.

Estou falando essas coisas talvez porque é madrugada, o outono chegou nos Campos de Cima do Esquecimento. Faz frio lá fora e eu olho para o céu pontilhado de cintilações, tentando descobrir uma janela aberta, com alguém debruçado nela, na NGC 1637.
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*Imagem produzida e divulgada pelos astrônomos do Observatório Europeu do Sul, no norte do Chile,  em 20 de março, 2013.
Texto revisto, publicado em 23 de março, 2013.

domingo, 6 de outubro de 2013

Monsieur Jardin du Bonheur

Jorge Adelar Finatto
 
 
estação de trem no dia da chegada de M. Jardin. photo: j.finatto


Du Bonheur, Monsieur Jardin du Bonheur. É natural de uma colônia do interior de Gramado. Vem de uma nobre linhagem de espantalhos da região do Valais, nos Alpes suíços. No Brasil, os Bonheur fixaram-se na Serra gaúcha no fim do século XIX.

Ele desembarcou na estação de trem de Passo dos Ausentes no final dos anos 1940, pouco antes da melancólica desativação do transporte ferroviário em nossa região, os Campos de Cima do Esquecimento. Estranhável pela roupa velha, amassada e colorida, pelo chapéu de palha desfiado nas extremidades e pelo sotaque que mistura português, alemão e francês, logo na chegada atraiu muitos olhares.

Com uma surrada mala de couro na mão, caminhava com as finas pernas em arco e com os ombros levantando e baixando, alternadamente, feito gangorra. Assim que desceu do trem, foi em direção a Juan Niebla, o músico cego que tocava bandoneón na gare para alegrar os passageiros. Indagou se sabia onde podia encontrar trabalho, esclarecendo que era espantalho profissional. Niebla indicou a minha casa. Desde então ele vive aqui comigo.

Nunca precisei de um espantalho. Niebla me encaminhou Jardin para fazer troça comigo, e divertiu-se muito com a situação.

Percebi nos primeiros dias que Jardin jamais seria um espantalho convencional. É, na verdade, um subversivo do ofício. Não veio ao mundo para assustar aves em plantações e jardins, nem tampouco pessoas, estas por natureza tristes e sofridas.

Jardin é um espantalho vivo e alegre. Veio ao mundo para fazer graça às crianças e espantar a tristeza dos mais velhos.

Contemplativo, revela-se amigo do livre pensar e dos livros, que lê tanto de pé como sentado no jardim e no quintal, encostado na vetusta carreta coberta de vasos floridos. 

É bom conversador e tem livre acesso à minha pequena biblioteca.

Gosta de chá de maçã com canela. Vem ao escritório três ou quatro vezes por semana para pôr a conversa em dia e beber seu chá. Costuma observar demoradamente o Vale do Olhar. É quando sinto certa nostalgia no claro azul daqueles olhos. Às vezes, na minha ausência, ele se recosta na poltrona de couro marrom perto da janela, cobre-se com a manta de lã e dorme feito um menino.
 
À noite, quando a solitude e o frio pedem lareira acesa e aconchego, vamos para a sala dos fundos, de onde se avista, muito longe, o Contraforte dos Capuchinhos. Dali se vêem as muitas faces das estrelas que rebrilham a anos-luz de distância.

É quando mais gosto de ouvir as histórias do meu amigo, que emigrou da mansidão da colônia para o meu singelo jardim e, sobretudo, para o meu coração.
 
Jardin é meu confidente e também o é dos pássaros. Leva a vida a folhear seus livros e fazer anotações debaixo do pinheiro-mor. De vez em quando, assume a missão de seus ancestrais. Vai para o meio do jardim, estende os braços horizontalmente e abre um largo sorriso.

Nesse momento recebe a visita de muitos pássaros que lhe pousam nos braços e no chapéu. Para atraí-los traz sempre nas mãos grãos de alpiste.
 
A barba por fazer, as botas escuras, uma espiga de milho em cada bolso do casaco, a camisa quadriculada com retalhos coloridos e a gravata-borboleta azul dão-lhe um aspecto jovial. Uma capacidade de observação além do comum faz de Jardin um ser diferente. 
 
Um dia comentei que sua aparência lembrava a figura de um poeta antigo ou talvez um filósofo.
 
A comparação trouxe-lhe certo encanto: 
 
- Vivo longe das vaidades desse mundo, existo modestamente, em contato com a natureza, tagarelando com os pássaros que me visitam em busca dos farelos que trago sempre nos bolsos e nas mãos. Por isso amo a poesia.
 
Antes de sair do escritório, Jardin abriu a estante e pegou O Caminho do Campo *, obra do filósofo existencialista alemão Martin Heidegger (1889-1976), famoso habitante da Floresta Negra.
 
Leu estas linhas em voz alta:
 
“O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo o que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente ambas as coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz. Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu destino.”
 
Acrescentou Monsieur Jardin:
 
- Essa é a parte boa do pensamento heideggeriano, em oposição à outra, sombria e inaceitável, que se envolveu com o nazismo, o que é simplesmente grotesco para um filósofo (e para qualquer ser humano dotado de um pouco de sensibilidade e inteligência), manchou-lhe a biografia. Triste.

O controvertido filósofo, digo eu, concordando com meu amigo, nunca veio a público dar explicações (que devia) e nem desculpou-se. Nunca pediu perdão. Silenciou. Isto é trágico para um pensador.

Monsieur Jardin despediu-se, sumindo na escada, deixando no ar um aroma de ervas silvestres.

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Sobre o problema do ser. O Caminho do Campo. Martin Heidegger. Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1969. Tradução de Ernildo Stein.
 

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A fala de Arlequim

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. A mascarada. Veneza


Querer eu quero, e o querer é tudo. Cumpro os regulamentos do invisível.

De silêncio em silêncio, as difíceis passagens. Eu sinto no calado.

Os comedimentos. A pessoa sonhada tem certos jeitos. De não se deixar ver, nem tocar, nem sentir, nem sonhar. Os caprichos do ser amado.

As magnólias me doem no inverno de tão belas. Eu lírico. Os tormentos do amador. A musa é do tipo nem aí. Não sabe de mim.

Arlequim ao relento eu sou. Os rigores da lira me dilaceram. Vivo no austero das horas. Sinto no meu segredo.

Ela não me vê. Eu a vejo. Amador.
 
A musa é só o motivo. Eu sou o seu adamastor.

O que dorme no banco da praça. O que mora dentro do casaco e da manta. O do chapéu ridículo. O que fala algaravias no café. O que não suporta gritos. O que senta no cais a olhar as faluas e gaivotas.

Caminho à beira dos meus penhascos.
 
Ruínas são coisas que habitam no íntimo da pessoa. O que se fala e o outro não entende. Um diz aurora, a musa entende anoitecer. As palavras, tonterias.

Sentimento é o ora-veja da vida. Cultivo distância, alimento paciência. A musa e seu mistério e seu desdém.

O ser sonhado tem certos olhares. A musa vive num jardim secreto que eu mesmo inventei. A trança de linho desce pelo muro escarpado do castelo. Eu romântico.
 
A vida gira no esconso das horas cinzas.

Os trapos coloridos do meu coração ao vento.

Amador, amador.
 
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photo: Cena veneziana. Veneza, 2011.
Texto revisto, publicado em 30 de outubro, 2010.