sexta-feira, 8 de novembro de 2013

António Zambujo vale um banquete

Carlos Alberto de Souza
 
António Zambujo. photo: Rita Carmo*
 
António Zambujo vale um banquete, mas saiu por quilo de alimento não perecível na gostosa noite da quinta (7/11) no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os que foram assisti-lo saíram nutridos com o que de melhor a música pode oferecer. Cantor maravilhoso, repertório maravilhoso, músicos maravilhosos.
Em algumas canções, Zambujo lembrou Caetano, pela afinação, beleza vocal e gorjeios. Mas também lembrou Chico, de quem cantou Valsinha, um dos grandes momentos do espetáculo, curtido por representantes da colônia portuguesa de Porto Alegre. E até as onomatopeias de João Bosco se insinuaram na voz do gajo do Alentejo (por sinal, onde fica a Portoalegre deles).
Zambujo é de primeiríssima grandeza, mas, pelo que se viu no palco e após o espetáculo, nos autógrafos do seu CD Outro sentido, desprovido de estrelismo. Dividiram a cena com ele os virtuoses Ricardo Cruz (contrabaixo) - da estatura de um Jorge Helder -, Bernardo Couto (guitarra portuguesa), José Miguel (clarinete) e João Moreira (trompete). Todos tiveram o demorado e reconhecido aplauso da plateia, que quase lotou o espaço.
O brincalhão Zambujo disse esperar que tenha sido a primeira de outras apresentações na capital gaúcha. Tomara. Assim também devem pensar o simpático Wiliam, que veio especialmente de Santos (SP) para o espetáculo, e o casal Verissimo e Lucia, que aplaudiu o artista português.
Para terminar, vale dizer que no segundo e último bis, António Zambujo cantou Foi Deus, de Alberto Janes, acompanhado apenas do contrabaixo de Ricardo Cruz. Caiu-lhe bem o verso “...Foi Deus que me pôs no peito um rosário de penas que vou desfiando e choro ao cantar / Fez poeta o rouxinol / Pôs no campo o alecrim / Deu as flores à primavera / Ai... e deu-me esta voz a mim”.
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photo do site oficial do artista:
 Carlos Alberto de Souza é jornalista em Porto Alegre.
smcsouza@uol.com.br

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Anotações de primavera

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto




Aqui na Serra as flores começam a dar o ar da sua graça, e que graça elas têm! As mais vistosas, nesse momento, são as hortênsias e as rosas.

Obra de arte é a que nasce da intervenção humana. Mas se abstraímos esse fato, podemos dizer que existe arte na natureza. Uma beleza que sempre se renova e nem todos percebem. Não entendo como algumas pessoas conseguem ficar sem olhar as flores.

Em cidades grandes, a ocupação desordenada do espaço e a redução drástica de áreas verdes tornam essa observação mais difícil. Uma possível saída é cultivar flores e hortaliças em apartamentos (sem colocar vasos nas janelas, que podem cair e machucar alguém).

As flores são exemplo, por excelência, da arte natural. Mas há muito mais, as paisagens, as matas, os pássaros, as nuvens, o sol, as estrelas fixas e as cadentes, os animais, as águas dos rios e oceanos, as borboletas, os ninhos e tanta coisa.

Claro que estou falando da face suave, deixando de lado o feio portentoso. Não estou considerando a destruição do meio ambiente e a rude indiferença em relação à natureza (como se pudéssemos viver sem ela).

photo: j.finatto

Estou conversando, portanto, em meio aos destroços, tecendo levezas de primavera num cenário de desolação. Provisoriamente lírico. Não consigo viver sem esses vôos minimalistas. O excesso de realidade é um grande estraga-prazeres, derruba qualquer rasgo contemplativo.

Mas o fato é que, apesar de tudo, ainda encontro felicidade no traço delicado de uma flor, no seu perfume, na sua cor.

A Terra é um delicado jardim azul vagando no espaço.

E um dia talvez vamos descobrir que o ser humano é a mais bela das obras criadas, não só em beleza exterior como, principalmente, em atributos éticos. Isto acontecerá quando o dinheiro, a vaidade e o poder não forem mais a medida de todas as coisas.
 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O espantalho no milharal

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto

 
Se parar de escrever na casa do labirinto, nesta difícil procura de claridade, se o silêncio e o medo crescerem ao meu redor como um vasto milharal habitado por estranho espantalho vestido de negro, com grossas lentes nos óculos que não ampliam a progressiva e asfixiante pequenez das coisas, esse tal que desistiu do ofício de espantar, sendo ele próprio o contumaz espantado no oblíquo território da existência, se os amigos esquecerem de me visitar nas ermas noites de inverno, se um pássaro soltar o canto no galho da araucária diante da minha janela, se essas palavras que escrevi servirem, ao menos, pra distrair o leitor (?) do problema da morte e da inefável falta de sentido da vida, eu sentirei que valeu a pena.

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Araucária vista da janela, Passo dos Ausentes.
Texto revisto, publicado em 13 de abril, 2011.
 

domingo, 3 de novembro de 2013

El largo viaje de placer

Jorge Adelar Finatto
 

Um livro cativante, intenso do início ao fim, dos melhores que li nos últimos anos. A Longa Viagem de Prazer, contos do escritor uruguaio Juan José Morosoli (1899-1957), publicado em outubro de 2009 pela editora L&PM, com tradução de Sérgio Faraco, é dessas obras que lastimamos não ter conhecido mais cedo. São nove  pequenas histórias que tratam da vida solitária e comum de homens e mulheres que vivem no interior do Uruguai.

A grandeza humana e dramática que encontramos nesses personagens é a mesma presente nas grandes obras da literatura universal. A poesia pulsa em cada um desses relatos povoados de densa humanidade, nos quais nós, habitantes deste mundo ermo e estranho, nos reconhecemos como diante de um espelho.
 
A maestria literária de Morosoli coloca-o ao lado de importantes autores do continente americano, como Julio Cortázar, Juan Carlos Onetti, Borges, Guimarães Rosa, Steinbeck, García Márquez, Dyonelio Machado.
 
Conforme salienta, com rara sensibilidade, o editor, crítico literário e ensaísta uruguaio Heber Raviolo, no excelente prólogo que escreveu para esta edição, os seres morosolianos "se radicam num lugar, num pago, num pueblo, ou andam pelos caminhos sem destino, sem saber o que buscam e nem se de fato buscam, numa espécie de contemplação de si mesmos ou de sua própria condição. El drama del hombre de este tiempo es tal vez  el haber perdido la facultad de sentirse vivir, disse Morosoli, e no tempo estancado, que é o tempo de sua obra, suas personagens parecem empenhadas, obstinadamente, em sentir-se vivas, aferradas, sem o saber, a certas categorias humanas elementares e por isso mesmo essenciais. Viventes de um tempo morto, ou condenado a morrer, é o que poderíamos dizer dos seres morosolianos." (pág. 13). 
 
Ainda segundo Raviolo, o escritor deixou uma obra pequena, "mas sólida e absolutamente pessoal", centralizada nos relatos breves.
 
Juan José Morosoli nasceu na interiorana cidade de Minas e dela nunca saiu. Cedo abandonou os estudos para trabalhar. Entre outros ofícios, foi atendente de livraria e bazar, dono de dois cafés e teve um armazém e depósito de mercadorias.
 
Resta esperar que outros títulos de Morosoli sejam vertidos para o português e lançados no Brasil. E quem viajar ao Uruguai não esqueça de trazer na bagagem ao menos um livro deste grande autor.
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A Longa Viagem de Prazer, Juan José Morosoli, tradução de Sérgio Faraco, Coleção L&PM Pocket, Porto Alegre, 2009. Resenha publicada em 6 de setembro, 2010.
 

sábado, 2 de novembro de 2013

Os últimos acendedores de lampiões


Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 

No entardecer, quando o sol morre atrás do Contraforte dos Capuchinhos, os dois acendedores de lampiões saem às ruas para dissipar a escuridão. Érico tem 80 anos e Dyonelio, 85. São os últimos remanescentes da Companhia de Iluminação de Passo dos Ausentes.
 
Inauguram a luz com seu gesto, esconjuram as trevas.
 
A nostálgica claridade noturna de nossas 20 ruas é invenção de 80 lampiões nelas espalhados. É assim desde 1925. A cidade parou no tempo a partir de então.
 
Érico e Dyonelio exercem o ofício desde a adolescência, quando ingressaram na companhia como aprendizes. Com a aposentadoria dos acendedores mais velhos, e diante do brutal esvaziamento da cidade (os jovens muito cedo vão-se embora à procura de estudo, trabalho e aventura; os velhos acabam morrendo e mudam-se em definitivo para os campos da ausência), não houve renovação dos iluminadores.

Somos uma cidade perdida no tempo e no espaço. Somos poucos. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.
 
Os últimos acendedores de lampiões fizeram um pacto. Trabalharão até o dia da morte para não deixar a cidade entregue ao breu profundo. Eles acreditam que quando não mais saírem às ruas para acender os lampiões forças malignas tirarão proveito da escuridão e expulsarão nossa cidade do sistema solar.
 
Precisamos evitar a todo custo que se cumpra o presságio do padre Eleutério Ombra, enunciado em 1755, de que uma nova São Miguel das Missões se ergueria perto das nuvens, sobre altas montanhas, com graça e fulgor.
 
Advertiu, todavia, o velho sacerdote, que uma grossa sombra rondaria sempre esse lugar e poderia devorá-lo. Os filhos partiriam cedo para o mundo e não voltariam, deixando os pais envoltos nas eternas brumas da solidão.
 
photo: j.finatto

Depois que exércitos espanhóis e portugueses destruíram São Miguel, em 1756, alguns padres jesuítas e índios guaranis, sobreviventes do massacre, fugiram e fundaram Passo dos Ausentes.
 
Uma grande angústia, hoje, toma conta das pessoas por aqui. Vivemos numa cidade condenada ao desaparecimento. Cada um é insubstituível. Nem ao menos figuramos no mapa do Rio Grande do Sul, não há reconhecimento oficial por parte do governo.
 
Na capa do processo que tramita há quase duzentos anos no túnel burocrático, no qual postulamos elevação à condição de cidade, está escrito: burgo de fantasmas, vila mal-assombrada. Assim o governo nos trata.
 
O tempo, em Passo dos Ausentes, é uma ferida que não pára de sangrar.

Somos poucos. Somos invisíveis. Somos habitantes dos Campos de Cima do Esquecimento.

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Do livro A cidade perdida: as origens. Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2003.
Texto revisto, publicado no blog em 22 de janeiro, 2011.

 

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Drummond e a máquina de costura

Jorge Finatto


Carlos Drummond de Andrade¹

Uma antologia de poesia brasileira e uma máquina de costura. Que relação têm essas coisas? Nenhuma aparentemente. Mas foi através desse inusitado encontro que li, pela primeira vez na vida, um poema de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987).

Neste 31 de outubro faz 111 anos que nasceu o grande poeta brasileiro.

Gosto de lembrar e contar essa história. Numa casa de gente pobre como era a nossa, livro raramente entrava, era artigo de luxo. Eu tinha 15 anos e minha mãe comprou a máquina de costurar pra cuidar das roupas da família.

Por feliz iniciativa do fabricante (ou da loja que vendia o produto, nunca soube), junto com a máquina vinham duas antologias: a de poesia brasileira e uma outra de poetas portugueses. Os dois volumes eram pequenos e grossos (trago-os até hoje na estante, são os livros que estão comigo há mais tempo).

A força viva da palavra apresentou-se diante de meus olhos quando li Cantiga de viúvo do bardo de Itabira. Algo estremeceu dentro de mim, uma porta se abriu e nunca mais fechou.

Como podia alguém escrever aquelas coisas, daquele jeito?

Havia tanto sentimento e beleza naqueles versos que me emocionei com a viuvez do poeta. Drummond tinha só 28 anos quando publicou Alguma Poesia, em 1930, seu primeiro livro, no qual está incluído o poema. Ele não era viúvo, pelo contrário, estava na flor da juventude e trilhava o caminho do conhecimento amoroso. A comovente história do poema tinha brotado da imaginação e da sensibilidade do escritor.

O texto drummondiano transmutou invenção em realidade na alma do adolescente leitor que eu era. Me tocou fundo a solidão do homem perplexo e sofrido ante a perda do seu amor.

Concluí que, se era possível dizer tais coisas com palavras tão simples, então valia a pena escrever. Despertar emoção e capacidade de sentir dor e alegria faz parte da missão dos poetas.

Fiquei para sempre com aquela impressão de força e limpeza da expressão escrita do poeta mineiro, confirmada depois de travar conhecimento com sua obra.

Drummond é uma lição perene de poesia.

Cantiga de viúvo²

A noite caiu na minh'alma,
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.

Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.

Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada...
                                 acabou.

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¹Foto colhida na internet. O crédito será dado tão logo conhecido o autor.
²Poema do livro Alguma poesia, da antologia Reunião, 10 livros de poesia de CDA. Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1977.

Também sobre Drummond: A memória do Coração:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/04/memoria-do-coracao.html

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Porta aberta

Jorge Adelar Finatto


imagem de livro. fonte: jornal Público, Portugal.
 
 
Leio que o mundo dos blogues está à beira do precipício. Um escritor que costumo ler escreveu que estava pensando em abandonar o seu blog por falta de leitores, achava melhor fazer outra coisa.

Faz tempo que ele não publica um texto novo e eu, como seu leitor, sinto falta. Há uma espécie de velório antecipado deste meio de comunicação, democrático por excelência. Eu detesto velórios.

Prefiro as salas de espera das maternidades.
 
Muitas pessoas que têm blog (a maioria, acredito) não dispõem de outra opção, isto é, não têm onde publicar seus textos nos meios impressos tradicionais. Os blogueiros, com não muitas exceções, estão fora da era de Gutenberg, de onde foram expulsos pela falta de interessados em seus escritos. Faço parte deste time. 
 
Acontece que tem gente escrevendo e fazendo boas coisas nesse "velho e moribundo" mundo dos blogues. Não estamos falando, portanto, de falta de páginas interessantes.
 
Eu vim para a blogosfera impelido pela oportunidade que a internet proporciona, fazendo do indivíduo seu próprio editor, independente de intermediários. Nenhum outro meio é tão instantâneo e livre. Me acostumei ao novo modo de publicar, que além de tudo dispensa a derrubada de árvores para fazer papel e é extremamente acessível a todos em qualquer lugar do planeta.
 
Isso não significa que abandonei os livros de papel. Pelo contrário, cada vez amo mais os meus livros. Sou um fantasma do mundo de Gutenberg.  Enquanto publico no blog, meu espírito vagueia por sebos e livrarias como alma penada.

Gosto de sentir a textura do papel entre os dedos, o cheiro inefável das folhas. Aprecio levar o livro aonde vou, sinto falta de tocar no objeto.
 
A minha biblioteca caseira está cheia e quase não tem mais espaço para novas aquisições. Os da família se entreolham toda vez que chego em casa com um novo volume. Devem se consolar, talvez, pensando: ao menos ele não tem outros vícios (que se saiba).
 
Os livros e a leitura são uma doce e vital cachaça. Como disse Drummond, no poema Explicação, todo mundo tem sua cachaça. Não sou avesso a novidades e estou pensando a sério em comprar um leitor eletrônico de livros.
 
Não sei se a era dos blogues está no fim. Mas uma coisa eu sei: leitores não vão deixar de existir. Onde houver bom conteúdo haverá leitores por perto.

Mesmo um blog primitivo como este, só de textos e fotografias, encontra alguns interessados. Então, enquanto existir alguém aí do outro lado, estarei por aqui com a porta aberta.