domingo, 29 de dezembro de 2013

Um blogue de capa e espada

Jorge Adelar Finatto

Guy Williams, como o Zorro, década de 1950


Um dia desses alguém escreveu que os blogues fazem parte da pré-história da internet. É sempre assim, pensei com meus três botões. Quando acredito que estou fazendo algo novo e diferente, esse algo não existe mais ou já saiu de moda.

Pensando bem, porém, acho que os blogues têm ainda algum interesse. Se tiver um conteúdo honesto e for transparente, pode atrair leitores. Uma apresentação visualmente agradável ajuda.

Um leitor enviou um e-mail. Observa que meu blogue é primitivo, não tem efeitos visuais, filmes, sons, nem recursos técnicos que o tornem mais atrativo. Os textos não comentam fatos do momento nem são de autoajuda. Um blogue insosso, sem nenhuma graça, enfim. Tem razão o nobre leitor.

O que sei fazer, mal e mal, é publicar algumas linhas acompanhadas de fotos. As matérias tratadas não destacam temas específicos nem obedecem a critérios de atualidade, nascem da subjetividade e do caos mental e/ou espiritual do autor. No mais, não sei ou não quero fazer outra coisa.

Um autêntico blogue de capa e espada, portanto, desses que acreditam na luta do bem contra o mal e na vitória da bondade ao final, da beleza contra a fealdade, do sentimento e do pensamento contra a brutalidade e a indiferença, bem ao estilo do velho, incomparável e invencível Zorro, interpretado pelo grande ator americano Guy Williams (photo).

As pessoas não vêm aqui para saber as últimas notícias nem para ler a minha opinião sobre elas. Uma razão que não alcanço faz com que os leitores visitem esta página rude. De qualquer forma, a presença deles é um estímulo para eu continuar traçando palavras e caçando imagens.

O notebook, pra mim, é uma velha máquina de escrever com luzinhas dentro que algum ET esqueceu aqui na Terra. Mas o fato é que gosto mesmo de escrever à mão, e só depois digito no computador. Um escritor das cavernas.

A internet tem um lado obscuro, pelas armadilhas e violências que esconde. Mas é, sobretudo, uma alternativa democrática, uma janela que se abre para a comunicação entre indivíduos e para a liberdade de expressão. O que é bom permanece pela qualidade que agrega à vida das pessoas; o ruim desaparece no buraco da própria ruindade que semeia.

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Texto atualizado, publicado em 16 de maio, 2012.

sábado, 28 de dezembro de 2013

É preciso recomeçar tudo

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto
 

É preciso recomeçar tudo
traçar o novo amanhecer
nas ruas da cidade

é preciso enterrar os mortos
varrer os destroços
abrir as portas para o sol
fazer seu trabalho

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Poema do livro O Fazedor de Auroras. Jorge A. Finatto. Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A claridade do coração

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


 A trevosa sintaxe da vida. Nas almas a escuridão cativa.

Fugidias imagens me perseguem. Nos urdimentos do bandoneón, busco outras claridades. Viver longe do abismo, no vero amanhecer, eu busco.

Eu, Juan Niebla, venho do neblinoso. Trouxe o calepino?

Tenho andado pela vida à procura de luz. Essa que vem de dentro. A escuridão está por toda parte, principalmente nos corações.

As trevas-mestras sustentam o mundo.

Bem-vindo o que vem em paz e desarmado. Os regulamentos da amizade eu cumpro. A minha casa está sempre aberta ao que chega sem falsidade. Vivo os bons momentos da minha música. Nos enquantos, porque amanhã é escuro no alto e no fundo. Anote, por favor.
 
A treva foi inaugurada com a luz principial.

Isto é demanda antiga lá do céu. A velha contradição, o bem contra o mal. A luta imemorial. Mas também os complementos, um talvez não existe sem o outro. Sei lá o que digo. Estou exausto disso tudo. 
 
Em termos de arriscada filosofia, caminho em beira de precipícios.

A maldade não tem sala na minha casa. Sou músico de bandoneón e antiga memória, na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes.

Espero com o ouvido a chegada do invisível trem. Cego desde os 16 anos, sim, senhor. O resto é o breu e se dissipa quando toco meu instrumento no velho banco.
 
A vida é dura? Pra completar, é breve. Somos um ato-falho da criação.

Sou homem de fé, Deus me perdoe. Se vive. Fazemos o que é possível, às vezes muito menos, às vezes pouco mais. Quase tudo é retórica para o distinto público. Quem nas alheias falas se reconhece.

Somos ferida em carne viva, vivo pensamento. Se vive. Está anotando?
 
O certo é que, na vida como na arte, a gente fracassa sempre. Falta aquele grito, aquela palavra, aquela revolta na hora certa, o remate contra a escuridão, aquilo que não foi dito nem lembrado.

A expressão clara, pura emoção. Os impossíveis.

O ora-veja, em assunto de arte, só a divina obra tem. Deus é artista caprichoso, no atacado e no miúdo, como outro igual não há. Conseguiu escrever?
 
Pediram-me um ensaio falado sobre as cores remotas do outono. Mas eu só sei, só vejo o que sinto.


photo: j.finatto
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Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo de músico municipal desde 1943. Toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade. Tem 87 anos, é cego desde os 16.

Texto atualizado, publicado anteriormente em 23 de março, 2011.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Natal, luz para todos

Jorge Adelar Finatto 

Aglomerado de estrelas. photo da Nasa
 

Jesus, como filho primogênito, antes da vida na Terra, foi auxiliador de Deus na tarefa de criar o mundo. 
 
A Bíblia refere-se a Cristo como sendo a luz capaz de iluminar as trevas da existência. No Evangelho de João, Jesus diz: "Eu sou a luz do mundo. Quem me segue, de modo algum andará na escuridão, mas possuirá a luz da vida."(João 8: 12)

O que se reverencia no Natal, atualmente, nada tem a ver com essa Luz, mas com papai noel, gnomos, imagens, presentes, publicidades mil, comércio furioso. A tal ponto o consumo invadiu esta data que muita gente não sabe ou olvida seu verdadeiro sentido.
 
Alguns se sentem muito infelizes por não ter condições de dar ou receber presentes. A maioria das pessoas esquece que o grande presente, o maior de todos, é o nascimento e a palavra de Jesus.
 
O evangelista João relaciona Cristo, essencialmente, com a palavra. Logo nas primeiras linhas de seu evangelho: "No princípio era a Palavra (Verbo, em algumas traduções), e a palavra estava com o Deus, e a palavra era (um) deus. Este estava no princípio com o Deus. Todas as coisas vieram à existência por intermédio dele, e à parte dele nem mesmo uma só coisa veio à existência." (João 1-3
 
A Palavra é Jesus, "um Deus", isto é, um poderoso ser espiritual (que tem capacidade de poder), por intermédio de quem todas as coisas vieram à existência.

Jesus, como filho primogênito, antes da vida na Terra, foi auxiliador de Deus na tarefa de criar o mundo. Única criação direta de Deus, a Palavra é vida e é luz.
 
Por que Jesus é chamado de Palavra? Segundo o Estudo Perspicaz das Escrituras, assim o é por atuar como a Boca ou Porta-Voz de Deus, seu Pai. "Ele era a Palavra de comunicação de Deus para transmitir informações e instruções aos outros filhos espirituais e humanos do Criador".*
 
Que o Natal nos traga iluminação espiritual através da Palavra, que é pura luz.

Bom Natal com saúde, fé e esperanças a todos!
 
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*Estudo Perspicaz das Escrituras, volume 3, p. 163. Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, São Paulo, 1992.
 

domingo, 22 de dezembro de 2013

Arte do grafite e a difícil paisagem

Jorge Adelar Finatto

imagem do filme Cidade Cinza
 
A arte do grafite é uma forma de expressão que ganhou força nas últimas décadas. Continua sendo motivo de discussões e incompreensões. Muitos aceitam, outros a rechaçam, por entender que suja a cidade e polui visualmente.
 
A primeira pergunta que pode ser feita, no meu entender, não é propriamente quem faz e por que faz grafite, mas por que se permite tanta parede e tanto muro, de forma desorganizada e desumana, em nossas cidades.

O grafite é a ocupação gráfica e lúdica do espaço público tomado pelo cinza medonho dos edifícios e do concreto, pela dureza dos muros e construções, pela frieza das intermináveis avenidas, pelo perigo, pelo ruído e fumaça dos veículos, pelos acachapantes painéis de publicidade.

A grande cidade é um lugar inóspito pra se viver. Vive-se do jeito que dá, porque, como as baratas, somos indestrutíveis.
 
Os imensos paredões verticais, túneis e viadutos sufocam e remetem a um sentimento de prisão no enorme labirinto. Câmeras espalhadas por todo lugar vigiam os movimentos dos viventes.

A agressão aos sentidos é constante. A violência e o crime tornaram-se banais. As vítimas são só um número nas estatísticas. Parece não haver saída. Como no livro 1984, de George Orwell, viver é mera concessão do Grande Irmão que a todos governa e persegue. Não há outra possibilidade além de calar e adaptar-se.
 
Os fazedores de grafite, em geral, exprimem a sensibilidade acuada e ferida. Querem deixar sua marca, um traço que ecoa como um grito na paisagem difícil. Desde uma rude linha até uma composição figurativa elaborada e reflexiva. Estão aí.

grafite em P. Alegre. photo: j.finatto

É claro que nem tudo é arte nesse universo que tem nas ruas seu ambiente natural. Há riscos e signos de tal forma caóticos e agressivos que aumentam, ao invés de diminuir, a sensação de soledade e isolamento. A pichação, via de regra, tem esse efeito e é muito pobre. Pichar é rabiscar qualquer coisa que colabora para a poluição visual, tal como ocorre com a maior parte dos anúncios publicitários colocados na via pública.

grafite em travessa de P. Alegre. photo: j.finatto

O grafite artístico adquiriu status não faz muito tempo e veio depois de muito debate e confusão. No início era tratado como caso de polícia e já configurou conduta passível de reprovação penal. Atualmente, o parágrafo 2º do art. 65 da Lei nº 9.605/98 descriminaliza, em certa medida, o grafite, enquanto manifestação de arte:

"Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional. (Incluído pela Lei nº 12.408, de 2011)"

grafite dOs Gêmeos em São Paulo

Penso que a lei penal não é a melhor maneira de tratar do assunto, nem o processo penal o lugar mais favorável para refletir sobre este tipo de conduta. Medidas administrativas deveriam ser suficientes. O debate dever ser cultural, ambiental, antropológico e sociológico, estimulado no âmbito da União, Estados e Municípios com a comunidade interessada.

Cartaz do filme Cidade Cinza

A tendência de criminalizar condutas que a rigor não precisam deste tratamento torna a vida em sociedade mais complicada do que já é, e não resolve situações de conflito. A norma penal não substitui o indispensável diálogo.

O documentário Cidade Cinza, em cartaz em Porto Alegre, trata da questão na cidade de São Paulo. Mostra que houve uma evolução no entendimento do grafite por parte das autoridades, que em alguns casos já o aceitam e respeitam como forma de arte. Principalmente a partir do reconhecimento internacional de grafiteiros como Os Gêmeos (autores do grafite no alto do post), Nunca e Nina, entre outros. 

Mas ainda há muita incompreensão sobre o tema. De acordo com o filme, equipes da prefeitura paulista saem às ruas para apagar aqueles traços que não consideram arte. São pessoas sem qualquer formação na matéria que decidem entre o que fica e o que vai ser eliminado. De resto, nem sempre é fácil discernir sobre o que é grafite e o que é pichação. Certamente não podem ser pessoas despreparadas, sem informação, a decidir o que apagar, se é que se deve apagar (salvo casos excepcionais). Em geral, o apagamento é um convite a nova pichação.

Imagem do filme Cidade Cinza

De qualquer forma, cada vez mais se autorizam espaços públicos e particulares para a prática do grafite nas cidades brasileiras, o que é sempre recomendável. Representa uma compreensão superior dessa manifestação, além de trazer colorido e beleza para o sofrido cenário urbano.

O grafite é perecível por natureza, constantemente exposto a fatores como sol, chuva, vento, poluição. A seu favor, o fato de ser arte democrática, a todos acessível nas nossas ruas, e que se presta à expressão de pessoas de diferentes idades, origens e condição social. Tem o mérito de quebrar um pouco o cinza, o duro concreto, o insuportável vazio, a rigidez das almas, a indizível solidão da cidade.


grafite em rua de Porto Alegre. photo: j.finatto


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Basquiat:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/11/basquiat-anjo-caido-expoe-em-paris.html
A arte das ruas:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/12/a-arte-das-ruas.html
 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Ilhas do tempo

Jorge Adelar Finatto


Ilha das Pedras Brancas. photo: j.finatto


O barco passa diante da Ilha das Pedras Brancas, entre Porto Alegre e Guaíba. Um lugar tão bonito com um passado tenebroso: ali, durante a ditadura militar (1964 -1985), funcionou um presídio para presos políticos. Quem dissentia do poder, e demonstrava isso por palavras ou ações, tinha grande chance de ir para o claustro. Alguns morreram por não concordar, por dizer não. Tempos tristes. 
 
O que parecia eterno, para quem viveu na pele aquela escuridão, passou como tudo passa. Mas durou muito e deixou marcas profundas. No meu caso, e no de muitos, durou o tempo da juventude.

A democracia é o menos ruim dos regimes políticos, já se disse, pois possibilita que a sociedade participe da escolha dos que vão ter o poder nas mãos e dirigir o Estado. Sistema perfeito não existe, uma vez que o próprio ser humano longe está da perfeição (longe, muito longe). A democracia é o que temos de melhor em política.

Ditaduras, sejam elas de direita ou de esquerda, são o inferno. Por mais que seus líderes digam que querem o bem da humanidade, o que eles querem mesmo é o máximo bem para si mesmos, para os familiares, amigos e correligionários.

Nada autoriza a permanência no poder pela força bruta. O apelo à violência, seja de que lado for, é um grave erro. Gente como Mahatma Gandhi mostrou que é possível lutar sem dar um tapa e muito menos um tiro.

É outra coisa viver num lugar onde os direitos e garantias individuais e coletivos são respeitados, no qual os cidadãos têm deveres a cumprir. Ao menos existe esperança.

Poder sonhar e trabalhar por um melhor amanhã é a única coisa que justifica sair da cama todos os dias. Senão, é preferível ficar deitado.

photo: j.finatto.  Guaíba, visão da saída para a Lagoa dos Patos

Mas falemos de coisas amenas nesses dias tão quentes. Fiz essas imagens na travessia de Porto Alegre para a cidade de Guaíba a bordo do catamarã. O tal barco anda bem rápido (dura cerca de 30 minutos o percurso). Por mim até podia ser mais lento.  O mundo todo podia ser mais lento. Mas, afinal, está certo, não é embarcação de passeio, mas de transporte público.

Esse rio Guaíba é tão largo, volumoso e extenso que até parece um mar.

Olhando o mapa se vê: depois do Guaíba vem a Lagoa dos Patos, esta sim conhecida como Mar de Dentro. Um mar de água doce que se estende por quase 300 km até o Atlântico Oceano. Em longos trechos da Lagoa não se avistam as margens, só água.

Peixe, muitos peixes, vento, gaivotas e ilhas. Navios afundados também.

Gosto muito de navegar em barco e avião (sou um bicho das águas e do ar). Mas nada se compara ao sentimento de, ao final, pisar em terra firme outra vez.

Voltar para casa, reencontrar as tralhas, os objetos e recantos caseiros, mergulhar outra vez nesse território minimalista. Ainda é a melhor parte de qualquer viagem.

Somos uma pequena ilha no mar do tempo.

Da mínima ínsula miramos as estrelas, as águas, os céus, os seres.

Ir ao encontro de outras ilhas é a mais bela e difícil aventura. A verdadeira missão do navegante.

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O barco mais triste do mundo:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/11/basofias-o-barco-mais-triste-do-mundo.html

Brasil, árvore frondosa
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/10/brasil-arvore-frondosa.html

Cuba e os direitos humanos:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/03/cuba-e-os-direitos-humanos.html

Ilha das Pedras Brancas:
http://ilhapedrasbrancasguaiba.blogspot.com.br/p/quem-somos.html
 
Texto revisto e atualizado, publicado antes em 16 de janeiro, 2013.
 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Os passos do andarilho

Jorge Adelar Finatto


photo: Maria Fumaça. Autor: Almir Dupont
fonte: Secretaria de Turismo de Bento Gonçalves*


Meus olhos já não sabem
senão contemplar dias
e sóis perdidos. Ouço
rodar velhas charretes
nas ruas de Sinera!
                                Salvador Espriu


A condição de leitor - o que essencialmente sou - se parece com a do viajante de trem. Sou feliz quando entro num vagão ou num livro e saio por aí a conhecer pessoas, lugares, histórias. De face em face, lugar em lugar, página em página.

Um observador amoroso do mundo é como me sinto. Calado embora, quase invisível.
 
Uma vez embarquei no trem que vai de Lisboa a Paris. Um trem do tempo antigo, que não é de alta velocidade (o que eu acho muito bom). Andar de trem é para olhar a paisagem, não voar.

A viagem começou às quatro da tarde, durou toda a noite e se estendeu pelo dia seguinte com troca de trem na Espanha. Como aquelas viagens que eu fazia, quando menino, de Passo dos Ausentes a Porto Alegre: uma eternidade, mas uma eternidade boa.

O comboio, como dizem os portugueses, pára em várias cidades lusitanas, espanholas e francesas. Eu não dormi a noite toda. Fui admirando as paisagens noturnas.

Chegar numa cidade estrangeira de trem, de madrugada, tem um gosto especial. As ruas dormem. Um ou outro vivente aparece na esquina, na calçada. Um cachorro atravessa a rua. As luzes dos postes iluminam as cercanias. Silêncio, vida recolhida. Realidade submersa.

As estações quase desertas. Nenhum sino toca. O relógio gira lentamente nas paredes das gares. A vida gira lentamente.


photo: j.finatto
  

Na condição de andarilho de livros e cidades, acabo de descobrir - ó felicidade - o poeta espanhol Salvador Espriu. Um encontro desses não se esquece.

A insônia, às vezes, verte luz na escuridão.

Um dia desses dias perdi o sono. Devia ser por volta das 4 da madrugada. Chovia. Últimos dias de dezembro que se arrastam feito uma carreta velha por estrada de chão.

Resolvi ligar a televisão no canal espanhol (acho que foi na tv educativa deles). Passava um programa sobre o poeta Salvador Espriu (1913-1985), de quem nunca ouvira falar, com depoimentos dele próprio, de leitores e estudiosos.

Um ator e uma atriz diziam poemas. Aqueles versos e as declarações do poeta produziram em mim tal encanto que lamentei muito não tê-lo conhecido antes.

Ouçamos algumas coisas que consegui anotar, ditas pelo catalão Espriu, que celebrou em sua obra a amada Arenys de Mar, cidadezinha a 40 quilômetros de Barcelona, de onde sua família era originária e que nos seus poemas se transfigura em Sinera, o nome da cidade escrito ao contrário:

 
"A principal qualidade de uma pessoa não é a inteligência, mas a bondade."

"Sou um artesão da linguagem, simples aprendiz."

No seu exílio interior, com suas memórias e seu existencialismo, partilhado com filósofos como Sartre, o poeta escreve visceralmente e nos comove.

Contemplo
calmos ciprestes no amplo
jardim do meu silêncio.

No outro dia, telefonei para a livraria e me disseram que o único livro de Espriu traduzido no Brasil (diretamente do catalão, que é bem diferente do espanhol) é a coletânea 4 poetas da Catalunha, com organização e tradução de Luis Soler (espanhol radicado em Florianópolis), publicado pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina em 2010. Uma breve mostra. Retirei da antologia os versos aqui transcritos. Os outros poetas são Joan Maragall, Carles Ribas e Joan Oliver (Pere Quart).
 
Ando agora atrás de livros de Salvador Espriu em espanhol. Um poeta rigoroso no viver e no escrever, que não usa falsos enfeites de poeta, e que tem tanto a dizer e disse. Grande, generoso, humilde. Um caso sério - mais um - de poesia e humanismo da velha Espanha.

Pois eu morro
sem nenhuma ciência,
rico somente em passos
de perdido andarilho.

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