sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Manuel Alegre, Pastéis de Belém, Elétrico 28

Jorge Adelar Finatto
 
Vista do Mosteiro dos Jerônimos, Lisboa, 23.01.2014. photo: j.finatto
 
Auschwitz

Olhar vazio esqueletos em pé
mortos-vivos caminhavam sem rumo.
E a quem lhes falava de Deus
eles apontavam a chaminé:
fumo.
                                 Manuel Alegre

Além de gastar o Elétrico 28 (bonde) andando pelas colinas e a baixa de Lisboa, tirei o dia de ontem, que estava azul e ensolarado, não obstante frio, para ir a Belém, esse bairro arejado e alegre.
 
Acho um lugar suave, com muitas opções culturais, como o Mosteiro dos Jerônimos e o Centro Cultural de Belém, bom de estar e ficar, na beira do Tejo, de onde partiam as caravelas ao Oceano a descobrir mundos. Bebi a costumeira taça de café com leite e comi dois pastéis doces que tanto me apetecem nos Pastéis de Belém.
 
Visitei amigos nesses dias portugueses, ouvi mais do que falei (porque nisso, pra mim, reside a graça), perambulei. Fui a livrarias em busca dos livros que fazem parte de uma lista de autores portugueses que não encontro no Brasil. Um nome, contudo, não tinha anotado: Manuel Alegre (1936).
 
Uma descoberta dessas vale uma viagem. Na terceira livraria do dia, na Praça do Rossio, descobri o livro Nada está Escrito, de Manuel Alegre (Publicações Dom Quixote, 2012, Lisboa). Tinha ouvido falar que se tratava de um político português, do Partido Socialista, que viveu anos no exílio durante a ditadura e que também era escritor, poeta.
 
Peguei o volume na estante e folheei-o com desconfiança. Políticos poetas são coisa rara. Li alguns poemas e vi que estava diante de uma exceção. Continuei a leitura no quarto de hotel, li quase todo.
 
Manuel Alegre é um senhor poeta. Não tenho qualquer idéia de seus feitos ou mal-feitos na política. Mas nesta obra constatei que tem muitos acertos como fazedor de versos. Pelo que escreve, deve ser um ser humano com um rico coração que leva para a política o melhor de si.
 
Encontrar uma pessoa sensível e que faz poemas para os semelhantes é um clarão na alma.
 
Daqui a algumas horas parto de Portugal, vou para longe, rumo ao norte. Vou feliz, com tantas coisas boas vividas nos últimos dias.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Ninguém é dono do poeta Fernando

Jorge Adelar Finatto

Fernando Pessoa ( à direita) com amigo no Café Martinho da Arcada, Lisboa
 

 Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho
como sempre tenho sido,
sozinho como sempre serei.¹
                                                    Fernando Pessoa
 
Nos últimos tempos tenho notado um aumento de animosidade entre alguns estudiosos da obra  e da biografia de Fernando Pessoa (1888-1935). Há como uma disputa que vem crescendo com o passar dos anos. Uma busca de afirmação pessoal a partir da maior visibilidade da obra do autor.

Existe uma briga de foice no escuro entre os que querem ser os únicos donos do Fernando e não admitem novos sócios na firma. Li textos que beiram a agressão em páginas de livros e revistas. Apontam coisas como, por exemplo, falhas na interpretação da letra do escritor que geraram escolhas supostamente equivocadas a comprometer seus textos.
 
Há evidente excesso no tom dessas manifestações, que prejudica não apenas a cordialidade do debate como a qualidade da discussão.

Precisa ficar claro que ninguém é nem será dono de Fernando Pessoa. Todo mundo sabe ou devia saber que a pátria dele é a língua portuguesa.

Minha pátria é a língua portuguesa,  escreveu no Livro do Desassossego, trecho 259.

Ele vive no idioma uma existência espiritual, a única em que encontrou um pouco de felicidade em sua vida cheia de limitações materiais, solitária e sacrificada.
 
Qualquer tentativa de apropriação de sua verdade mostra o lado pequeno de quem toma esse caminho. Lá na sua residência atual, no Mosteiro dos Jerônimos, no bairro de Belém aqui em Lisboa, o poeta deve rir-se quando toma conhecimento dessas besteiras em torno de si.

Para quem morreu sem reconhecimento, que não foi nada na vida (mesmo tendo escrito uma obra universal, sentido tudo e sido muitos em um só), há uma grande ironia nisso tudo. Disse ele:

Um dia talvez compreendam que cumpri, como
nenhum outro, o meu dever nato de intérprete
de uma parte do nosso século; e quando o
compreendam, hão-de escrever que na minha época
fui incompreendido, que infelizmente vivi entre
desafeições e friezas,
e que é pena
que tal me acontecesse.²
                                       Fernando Pessoa

Fernando Pessoa merece que o amemos pelo que é, independente de faniquitos e interesses pessoais de seus intérpretes. Dispensa proprietários.
_______________

Casa Fernando Pessoa, Lisboa, Portugal
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=4287

¹-² Textos de Fernando Pessoa. Ponto M - 2013. 

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Oceanário de Lisboa

Jorge Adelar Finatto 
 
Oceanário de Lisboa, 21.01.2014. photo: j.finatto
 
Não houvesse outros motivos para vir a Portugal (há e muitos), este por si só justificaria a aventura de atravessar o Atlântico e visitar esta terra: o Oceanário de Lisboa.

photo: j.finatto. 21.01.2014
 
A terça-feira amanheceu chuvosa, convidando a ficar em casa. De modo que o itinerário que pretendia fazer pelas colinas e parte baixa de Lisboa com os elétricos (bondes) foi adiado. No oceanário fiquei impressionado com a beleza da vida que acontece abaixo e acima das águas marinhas, a variedade dos seres com suas ricas formas, tamanhos, cores, gêneros. Um mundo silencioso, abissal, encantador.

 
photo: j.finatto, 21.01.2014

É difícil resistir à graça e pequenez (cerca de 5, 6 cm) do peixe-palhaço em suas ligeiras evoluções entre os fios coloridos das anêmonas, com as quais vive em saudável (para ambos) associação.

É impossível não se deslumbrar diante da diversidade de centenas de espécies, passando por tubarões, arraias, até peixinhos quase invisíveis. Sem esquecer as medusas, os pingüins, gaivotas, tartarugas, estrelas-do-mar, papagaios-do-mar e tantos outros.

Esse universo é cuidado com zelo constante pela equipe da instituição, como se vê pela foto abaixo, em que presenciei o momento em que o "peixe-homem" trabalhava num dos inúmeros aquários existentes.

photo: j.finatto, 21.01.2014


O oceanário é a prova de que um mundo absolutamente fabuloso existe, quase como que numa outra dimensão, ao qual não estamos habituados, raramente vemos e temos pouca consciência de sua importância e da maravilha que representa.

Um ambiente do qual o homem só deve se aproximar com humildade, sabedoria e delicadeza para entender, preservar e extasiar-se.


photo: j.finatto, 21.01.2014
 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Maldita classe econômica

Jorge Adelar Finatto

Chafariz, Praça do Rossio, 20.01.2014. photo. j.finatto

 
O sujeito que inventou a classe econômica nos aviões pode não saber, mas o inferno, para ele, é certo. Vai direto para aquele sítio, se é que ainda não foi, pelo mal que causa aos viajantes menos afortunados, entre os quais me incluo. Não existe a menor possibilidade de que receba a benesse de uma transição para o purgatório e muito menos ao paraíso.
 
Como castigo passará o resto da eternidade sentado num desses torturantes assentos que criou para o sofrimento dos outros. Aqui fez, no inferno pagará.
 
Já o cara que criou o banheiro da classe econômica levará uma grande temporada no purgatório. Durante muitos e muitos anos terá de fazer suas necessidades naquele cubículo, encolhido, segurando-se nas paredes, equilibrando-se para não ir ao chão enquanto se alivia, ouvindo o rumor de gente apertada que aguarda a vez no corredor.
 
O passageiro da classe econômica viaja de teimoso. É, antes de tudo, um forte, lembrando o que disse Euclides da Cunha em Os Sertões a propósito do sertanejo.

O importante é não fazer parte da classe dos pobres de espírito deste mundo. Amar a poesia e a travessia. Estar sempre perto de Deus, que está em toda parte e é presença indispensável nas viagens de avião, por todas as razões.

Vista da janela

Tejo ao fundo, 20.01.2014. photo: j.finatto

Do meu quarto de hotel vejo uma nesga do Tejo entre os edifícios. O melhor lugar do mundo para olhar o mundo, se calhar, é a janela do quarto de hotel. Tudo na vida é passageiro e circunstancial como no quarto de hotel. Somos seres em viagem, absurdamente transitórios. O que nos salva é o sentimento. As cidades permanecem.

Levantei de madrugada e fui até a janela. Havia um silêncio denso, uma imobilidade. Logo mais o teatro de viver recomeçaria. Somos atores improvisados, atrapalhados com o roteiro mal escrito. Andamos aos tombos. Mas andar pela vida vale a pena, sempre. É um milagre.

A cidade de Lisboa é bela, não falta o que ver e fazer. Escolhi o dia de amanhã para andar de elétrico (bonde) pelas colinas e pela Baixa.

Elétrico(bonde).20.01.2014. photo: j.finatto
 
 A diáspora continua

O assunto da hora, em Portugal, é a fuga de cérebros do país. Sem oportunidade em sua terra, devido à crise econômica, os jovens são levados a pensar no aeroporto como única saída. É a velha e conhecida diáspora, apenas com outro recorte.

Atinge os mais novos, os que precisam "fazer a vida", construir sua história. O caminho de saída é tresloucado. Cabe aos mais velhos transmitir aos moços o conhecimento, a memória, para que possam assumir a história, o destino individual e coletivo. A isto chamamos tradição em qualquer sociedade.

A falta de perspectiva para os jovens é um sério problema em muitos países, inclusive no Brasil. A questão não se limita, portanto, a Portugal, embora aqui seja talvez mais sentida pelas características do país.

A diáspora da juventude, aqui e acolá, não é boa solução, longe disso. O futuro que o diga.
 

domingo, 19 de janeiro de 2014

Lisbon Revisited

Jorge Adelar Finatto

Amanhece sobre o Atlântico. 19/1/2014. photo: j.finatto
 

O avião pousou às 10h40min deste domingo em Lisboa. Tão delicado foi seu pouso, tão correto o vôo de mais de dez horas desde Porto Alegre, que os passageiros aplaudiram vivamente o comandante da TAP, com grande justiça.
 
O que posso dizer? Cheguei moído e insone como sempre acontece. Vi o noticiário, algum outro programa no sistema de bordo, mas sobretudo vim escutando o fado. Sim, o fado, essa maneira tão portuguesa quanto universal de estar no mundo.
 
Lisboa revisitada, como no título do belíssimo poema de Fernando Pessoa de 1923. O frio é intenso, a umidade está no ar. Dormi à tarde no quarto de hotel. Antes fui até a banca de revistas e comprei o Público. Depois, no fim do dia, um prato de bacalhau com o vinho Mina Velha, que não sou de ferro.

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!

                                     (trecho de Lisbon Revisited, Fernando Pessoa)
 
 Volto a Lisboa como quem volta a si mesmo.
 
Após umas quatro horas de sono, assisto na RTP a um programa musical com o grande nome do fado Carlos do Carmo. Ele canta canções de diversos autores, entre os quais Ary dos Santos, José Afonso, Alexandre O'Neill, Manuel de Freitas. É uma reprise de algo que aconteceu há 15, 20 anos atrás. Só papa-fina.

Alguém poderá pensar que ando em Lisboa atrás do passado, porque gosto do fado e de caminhar na beira do Tejo (tão calmo como o vejo na ampla janela do quarto neste momento). Sim, Portugal tem um passado. Mas o fado? O fado é futuro.

O compromisso dessa viagem é um evento sobre o poeta Rilke do qual vou participar na Suíça. Mas não poderia deixar de vir a Lisboa de Fernando, esse poeta absoluto e genial. E, na Espanha, tenho encontros com Ortega y Gasset e Miguel de Unamuno. São visitas que compensam muito sofrimento dessa vida.

Um encontro com a maravilha.

Anotei o nome de escritores que vou buscar nas livrarias: José Cardoso Pires, Manuel António Pina, Alexandre O'Neill, Daniel Jonas, Herberto Helder, Jorge de Sena e mais o que esqueci e vou lembrando. E tenho amigos para rever, como o António Sousa no Martinho da Arcada, lugar marcante na vida de Fernando.

O pássaro pousou. Começa o vôo.

 Mar Português

                           Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!


Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.


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O barbeiro de Fernando Pessoa:
http://ofazedordeauroras.blogspot.pt/2010/04/o-barbeiro-de-fernando-pessoa.html
 

sábado, 18 de janeiro de 2014

Milonga del Ángel

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto

 
Habitamos entre nuvens. Os ventos nos açoitam aqui nos Campos de Cima do Esquecimento em sua louca debandada em direção ao sul do continente. 

Juan Niebla fez o convite para ouvi-lo tocar seu bandoneón. Estamos agora na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. O concerto intitula-se Milonga del Ángel, música de Astor Piazzolla, leitmotiv da reunião.
 
Talvez porque hoje é sábado, e domingo costuma ser um dia agonizante, celebramos a vida escutando músicas que tocam fundo nosso coração.

Niebla é cego, guardião da memória da cidade junto com Don Sigofredo de Alcantis.

Estamos no Café dos Ausentes que é o que restou da velha estação. Fechamos os olhos, sentimos  a melodia que emana dos dedos magros e ágeis.

As mãos do cego apalpam o invisível, ressuscitam sonhos e emoções.

Iniciamos a nossa charla após o concerto, como de costume.
 
Diz Niebla:

- Imaginem uma cidade espiritual, em que os ancestrais vagueiam em silêncio pelas casas e ruas, vivem nos antigos retratos, nas cartas guardadas no fundo de gavetas, sobrevivem na memória dos poucos que ficaram. Isso é Passo dos Ausentes.

- Para onde nos levam os caminhos entre as estrelas, Juan? - indaga Don Sigofredo, piscando o olho em minha direção.

- Não pense que não percebi a piscadela, quimérico amigo. Nunca duvide das antenas deste velho morcego. Mas já que pergunta, na verdade não sei aonde levam aqueles caminhos. Tu és o filósofo, esforçado tradutor do intangível.

- Sou só um cego numa estação de trem abandonda esperando o comboio fantasma que vai levar-me um dia por trilhos desconhecidos. Por enquanto é música e é fraterno encontro, estamos todos vivos, graças a Deus.

- Também ando pela vida à procura de respostas -, continuou Niebla. - Ouçamos o que nos disse o nunca suficientemente lembrado poeta e filósofo Hölderlin, no seu Fragmento de Hipérion*:

"Interrogo as estrelas e elas permanecem mudas. Interrogo o dia e a noite, mas eles não respondem. De mim mesmo, se me interrogo, entoam apenas sentenças místicas, sonhos sem interpretação".

A solidão é o que mais nos aproxima nessas reuniões. Estamos sós na beira dos penhascos. Caminhamos para o oblívio nesse esquecido fim de mundo.

Acreditamos em anjos, nos consolamos. Entre nuvens.

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* Hipérion ou O Eremita na Grécia. Friedrich Hölderlin. Tradução, notas e apresentação por Marcia Sá Cavalcante Schuback. Forense, Rio de Janeiro, 2012.

Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo desde 1940, na estação de trem abandonada da cidade. Tem 89 anos, é cego desde os 15.

A cidade perdida: as origens:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/cidade-perdida-as-origens.html
 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Navegações

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 
Não existem chegadas
e partidas definitivas
rijos itinerários nascidos
na rota turbulenta
dos abismos

o que há é esta
necessidade de navegar
que começa não sei
em que rio

ou fundão
e depois se expande

um dia toda busca
cristaliza
e se pode, enfim,
recolher as velas
no porto do outro
mundo

_______

Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.