domingo, 13 de abril de 2014

Um dirigível para as estrelas

Jorge Adelar Finatto
 
ilustração: Maria Machiavelli

Essa mania de escrever para ninguém é mesmo uma coisa de doido, difícil de compreender, algo que se prestaria a estudos profundos sobre as razões últimas que movem o ser humano.

Escrever para a nuvem, como se faz num blog, é mais ou menos como mandar uma carta para o espaço dentro de uma garrafa. Provavelmente não estaremos aqui para receber a resposta, quando e se vier.

Um arqueólogo da internet, daqui a alguns séculos (ou segundos, do jeito que as coisas andam depressa), escavará a superfície tênue da blogosfera atrás de registros feitos por antigos blogueiros em cavernas virtuais. Talvez encontre este texto.

O fato é que hoje, nestes confins de abril, por força de um gelado outono (ou invencível melancolia), o cronista escreve para a nuvem e não consegue traçar a primeira palavra do texto de amanhã.

Não há leitores à espera destas mal-traçadas. Acho que nem haverá além dos arqueólogos da internet. As pessoas têm mais o que fazer, vida difícil, tempo escasso, passam bem sem leituras virtuais.

O problema, se é que existe, é do cronista nefelibata, que não encontra a primeira palavra. O tempo é de acender a lanterna em busca do caminho.

Enfim, a questão é que as palavras estão hibernando nos dicionários. A inspiração é só um estado de espírito e escrever é mais do que isso.

Vivemos um tempo de secas esperanças, mas é preciso seguir em frente.

Como tarda amanhecer quando a escuridão é tamanha!

Nessa hora erma e côncava, vou mesmo é sair por aí no meu dirigível amarelo, deslizando entre nuvens, numa viagem pra fora do planeta.  Quero ir subindo, subindo, numa longa curvatura de silêncio em direção às estrelas.

Carrego comigo um novo caderno para escrever (como da primeira vez).

No meu dirigível para as estrelas.
 

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Heráclito e o espelho

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto. vôo sobre o Guaíba


Heráclito de Éfeso (540 - 480 a.C) disse que ninguém entra ou se banha no mesmo rio duas vezes. A aguda percepção de pensador, que não só pensava como vivia o pensamento, referia-se ao fato de que tudo muda incessantemente, o homem, o rio e todas as coisas.
 
Para o filósofo, tudo está em movimento. O mundo é a unidade dos opostos. Dia e noite, sol e chuva, doença e saúde, agudos e graves, macho e fêmea, inverno e verão, guerra e paz, fazem parte de um todo.
 
Heráclito acredita, porém, que um pensamento sábio governa tudo. Há uma justiça no cosmos que orienta o destino dos seres e dirige a vida. Os eventos ocorrem na hora certa.
 
Nós não somos sempre os mesmos, mudamos, conforme o velho e bom filósofo. O nosso corpo muda constantemente através das células, o pensamento ganha altura por meio da contemplação, da meditação e da ação.

No que me concerne, diante das minhas notórias limitações, espero que as mudanças me levem a ter mais sabedoria e mais bondade (que a maldade está sempre de prontidão e agindo em toda parte).
 
O rio não é o mesmo. O tempo escorrendo, eterna mutação, areia descendo na ampulheta.

Alteridade sempiterna das águas, o vôo premonitório das aves.
 
Nada é o mesmo. Não cessamos de mudar. (Só na morte não há transformação.) O outro que vai ali sobre a antiga carcaça somos nós depois de um F5.
 
Às vezes, diante do espelho, pergunto quem é aquele que me observa do outro lado. Será mais feliz do que todos os que vieram antes dele? Estará mais só? Terá as mesmas dúvidas? Ainda quer mudar a vida, fazer coisas novas?

Ninguém se vê duas vezes do mesmo modo no espelho, caro Heráclito. É sempre outro que está lá.
 
Essa manhã, quando mirei o espelho, o estranho nem sequer me olhou nos olhos. Tomou café, escovou os dentes, fez a barba automaticamente, passou a mão nos cabelos, arrumou a gravata e foi por seus caminhos. Passou o dia distante de mim. Longe, longe. Um perfeito estranho mora no meu espelho.
 
Num momento em que ele se distraiu, olhei através da janela do gabinete e vi um pássaro atravessando o céu sobre as águas do Guaíba.

E vi também belas nuvens brancas cruzando o rio. À medida que passavam, sua forma, sua cor e seu interior foram mudando, até que veio a chuva. O outro sentiu desalento. Eu fiquei feliz, porque a chuva me dá felicidade.
 
É impossível deter esse rio, essas nuvens, esse pássaro, esse outro que me escapa no fundo do espelho e teima em me levar por caminhos onde não quero ir.

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Informações sobre Heráclito em Dicionário dos Filósofos. Denis Huisman. Livraria Martins Fontes Editora Ltda. São Paulo, 2004.
Clique sobre a imagem e veja mais detalhes. Texto publicado em 7, fev, 2013.

terça-feira, 8 de abril de 2014

A volta do Cavaleiro da Bandana Escarlate

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 

Vulto na praça. A luz amarela seria poética, não fosse o perigo dos assaltos. Um observador oculto espreita entre as buganvílias.

Quem vem lá? Difícil saber na escuridão sem trégua. A noite de domingo até podia ser romântica. Mas há indivíduos dormindo nos bancos da Praça Maurício Cardoso em Porto Alegre. Dois bêbados urinam sob a pérgula.

A cidade não tem piedade dos seres delicados. Mas há que vencer o mal com o bem. É essa a hora do menestrel, do cavalo companheiro fiel, da capa, da espada e do alaúde.

Eis que surge da treva tremenda o Cavaleiro da Bandana Escarlate, montado no seu cavalo branco. Vem galopando desde muito longe, desde os Campos de Cima do Esquecimento, desde o fim do mundo. Vem para a batalha final.

Atravessa a praça no garboso corcel de arado, cuidando aqui e ali pra não amassar as flores. Um cara passa correndo atrás de outro pela rua afora, gritando coisas impublicáveis.

O cavaleiro veste a capa de seda preta. A máscara negra não permite lhe descubram o segredo. Traz o antiquíssimo alaúde a tiracolo.

O mimoso instrumento pertenceu a um seu trisavô que veio fugido da Itália, aqui se estabeleceu no ramo dos embutidos e depois também mourejou em negócios obscuros.

O cavaleiro tem genealogia, portanto. Mas o que passou, passou.

Neste momento ele cruza pro outro lado da rua e estaciona o alvo eqüino (com trema, por favor) debaixo do balcão da Meiga Donzela Dionéia (com acento, por favor, não obstante o desastrado (des) acordo ortográfico).

(Não levamos fé no tal contrato ortográfico, por isso lutaremos até o fim desta história para salvar da morte cruel o vero escrever de João Guimarães Rosa deste lado do Atlântico como fazem por seu turno nossos aliados na Terra de Camões e Lobo Antunes.)

O nosso herói saca com grande donaire o lustroso instrumento.

Dedilha então os primeiros acordes nas cordas do formoso alaúde ancestral. A melodia acorda a Musa que, entre estremunhada, descabelada e furiosa, vai até a janela do balcão saber do que se trata. Não acredita no que vê.

- O que quereis, ó, Cavaleiro do Alaúde em Riste? - pergunta com voz sinistra. - Acaso não percebeis que são altas horas? Não vos dais conta do ridículo? Estamos em 2018, please!

E prossegue a Incontornável Musa:

- Deixai-me dormir, ó, Misterioso Mascarado. Amanhã é dia de pegar no batente outra vez, voltar pra dureza inglória da vida. Retornai ao vosso castelo de areia e vento, ó, Romântico Senhor, poupai-me. Do contrário, obrigar-me-ei a chamar os homens da lei para vos untarem com grosseiros afagos, que é o que deveras mereceis.

O Cavaleiro da Bandana Escarlate silencia o mimoso instrumento. Parece não acreditar no que acaba de ouvir. Cavalgou durante dias por estradas cheias de rudes caminhões e automóveis. Mais de uma vez viu-se forçado a jogar-se no matagal com o esbaforido e lácteo corcel.

Para não comprometer ainda mais o idílio, decide retirar-se. Num gesto de rara nobreza, joga uma rosa branca ao balcão. Depois ergue bem alto o alaúde na mão esquerda, empina o pangaré e grita:

- Eu voltarei na primavera, ó, Estressada Dionéia, Musa Minha Indomada. A rejeição é uma refeição que se come fria. Mas jamais esfriará este esgualepado coração.

Ao proferir essas altaneiras palavras, escorrega do gentil animal e estatela-se na fria calçada, magoando a triste cabeça que a escarlate bandana - agora rasgada - antes cobria.

Aos poucos recompõe-se o Nobre Cavaleiro. Junta o alaúde, apruma-se sobre o valoroso eqüídeo (nessa altura, tanto faz como tanto fez o trema) e parte no trote.

Enquanto cruza de volta a Praça Maurício Cardoso, algum insensível abre uma janela num edifício próximo e manda:

- Vá tomar no seu caju (aqui é suprimida a expressão original pela fruta, a fim de manter o mínimo decoro).

Assim que, sem perder a altivez, o nosso Ilustre Menestrel Medieval desaparece na noite escura da grande cidade.

Um bêbado atira uma pedra e quebra a luminária da praça. Fim.
 
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Texto revisto e atualizado, publicado no blog em 27 de abril, 2010.

domingo, 6 de abril de 2014

Um galo na aurora

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto, 5.4.2014

 
                          Um galo sozinho não tece uma manhã:
                          ele precisará sempre de outros galos.
                                                            João Cabral de Melo Neto¹

O silêncio é tão profundo que dá para ouvir a névoa se espalhando no jardim, entre as rosas.

Quatro e meia da madrugada de domingo. Ele adormeceu no sofá do escritório.

Não quis atravessar a casa e ir pro quarto. Madrugada fria nos Campos de Cima do Esquecimento.

As pinturas e os retratos na parede, a luz branca e opaca na escada.

O sobrevivente escreve para habitar o território do amanhecer.

Ler já era estar banhado em luz. Escrever é um clarão.

(A treva não dá trégua.)

O vento lambe a face das montanhas cobertas de verdes pinheiros e basalto.

O som imemorial do vento cortando os contrafortes.

Abril costuma ser um tempo de desolação.² Seria preciso acender fogueiras em todas as esquinas da cidade, convocar os amigos

fazer vigília e beber até que a manhã se erguesse no horizonte e se derramasse nos telhados.

Um galo canta na aurora.

O sobrevivente dorme no sofá enrolado na manta xadrez.

A única coisa que se ouve agora, no silêncio, é o canto do galo.

Um canto anunciador e translúcido, na antessala do dia.

Por um momento ele ouve o canto. Mas não abre os olhos. Se enrola mais ainda na manta, afunda no sofá. O livro caído no tapete.

O canto do galo vai sumindo, distante, sumindo.

Ele caminha por uma estrada de chão batido, silenciosa, vai andando, sumindo, andando, sumindo até desaparecer na aquarela ao lado da estante.

No jardim, lá fora, só se escuta a névoa.

photo: j.finatto
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¹Do poema Tecendo a manhã. Poesias Completas, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1979.
²Um suspiro, um silêncio
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/03/um-suspiro-um-silencio.html

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Cais

Jorge Adelar Finatto

 
photo: j.finatto
 

Tem dias em que saímos
com o corpo nu
para alojá-lo na primeira copa de árvore
e chorar longe dos homens

dias em que os desejos
até os mais secretos
sucumbem apagados
na penumbra

tempo de total privação
da carne e do sonho
tardes em silêncio reveladas
intervalo entre dois mundos

olhamos o céu
no quadrado da janela
esperando ver a face de Deus
procuramos Deus
no íntimo da alma e das coisas
precisamos repousar no colo de Deus
sentir suas mãos nos olhos
para amparar a lágrima quente
que por ali verte

tem dias em que estranhamos
o próprio olhar
que amanheceu mais seco
não reconhecemos a rua
onde tantas vezes inventamos o amor
na sombra dos cinamomos

as melhores viagens
ficaram sonhando no cais
enquanto navios partiam
repletos de homens decididos
em busca de cidades felizes

onde andará o menino
que nos visitava nos dias
em que tudo em volta
parecia desabar?

em que gare deserta
perdeu-se o guarda-chuva melancólico
com que meu avô ia à cidade
buscar a porção diária de pão
esperança
e jornal?

tem manhãs em que apesar do sol
não habitamos o claro sentido
de existir
mal percebemos a luz
acalentando o corpo

manhãs em que o carteiro
extravia a carta que irá nos salvar
a notícia tão esperada
que nos revelará
um mundo desconhecido
onde pandorgas falam
e o arco-íris é uma escada
que nos retira do poço

não compreendemos
as mãos cansadas
a boca amarga
com que damos bom-dia aos vizinhos
cumprimentamos os superiores

tem dias em que o isolamento
é tão assombroso
que sentimos tristeza em tudo
principalmente na alegria ingênua
das velhas fotografias
uma dor inevitável
diante dos sonhos da infância

dormimos em quartos de aluguel
projetamos ataúdes de aluguel
as dívidas invadem a porta
os poros

o amanhã ficou torto
na cordilheira dos dias
sem luz

a cidade parou no escuro
sufocou nossos melhores anos
inundou o rio
com seus maus óleos
seu excremento

não merece um verso
sequer uma notícia fugidia
em página de jornal

talvez careça uma bomba
um terremoto
talvez uma flor
povoando o asfalto

estamos um pouco mais tristes
e calados
(um pouso só)

trazemos um gosto de sol
entre os dentes
um resíduo de primavera
na palma da mão
uma promessa de encontro
nos olhos

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Do livro O Fazedor de Auroras, Jorge A. Finatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
photo: Cais de Porto Alegre, j.finatto

terça-feira, 1 de abril de 2014

Blobfish, a melancolia de um rosto

Jorge Adelar Finatto
 
photo: blobfish. Greenpeace/Rex Features
 
A Sociedade de Preservação dos Animais Feios (Ugly Animal Preservation Society*) fez um concurso pela internet para escolher o bicho mais feio do mundo.

O objetivo dessa sociedade inglesa, segundo se diz, é chamar a atenção para animais pouco visíveis, pouco conhecidos e nem tão bonitos assim, que, no entanto, desempenham seu papel no ecossistema, merecendo, como os ursinhos panda que todos acham lindos e fofos, ser protegidos.

Participaram da eleição mais de 3 mil votantes. O eleito no curioso certame foi blobfish, ou peixe gota, com nome científico de psychrolutes marcidus. Ele habita as profundezas do Oceano Pacífico, e agora é o mascote da UAPS.

Blob tem aparência de gente. Os traços do rosto não desmentem o parentesco com o restante da humanidade. Tem um ar inteligente, tímido, mimoso e desprotegido.

A expressão tristonha é de alguém desamparado no mundo. Mais que isso, percebo nele a melancolia dos que a sociedade rotula, não sem crueldade, de estranhos ou feiosos.

Procuro entender o que vai na alma de Blob. É visível que ele não gosta da situação criada em sua volta, incomoda-o a exposição a que está sendo submetido.

Seu semblante triste parece dizer-nos: me deixem em paz, detesto sensacionalismo ecológico, principalmente este que está sendo feito em relação à minha discreta pessoa.

Julgar alguém pela aparência é um hábito leviano e prepotente que leva, não raro, a erros grosseiros. Imperdoáveis injustiças cometem-se em nome das aparências. Nós, os que não somos lindos, nos ressentimos com isso. Por isso entendo o sentimento de indignação de Blob.

Fazer julgamento só pelo aspecto exterior é coisa de brutamontes, os quais, infelizmente, tomam conta do planeta desde sempre.

Não será este, por certo, o caso da Sociedade de Preservação dos Animais Feios, cujo objetivo, ao que parece, é justamente proteger de maus-tratos e da extinção criaturas da natureza pouco atrativas esteticamente, isto é, feias na visão do senso comum (quantas barbaridades se cometeram e cometem com base no tal senso comum!).

Mas, afinal, o que é feio e o que é bonito, não é, Blob? Acaso existirão o feio e o belo absolutos? Não haverá nisso uma margem de subjetivismo, de negociação?

O senso comum tem feito misérias ao longo da história. Hitler chegou ao poder, e fez o que fez, com base no senso comum da Alemanha da época, lembram? As ditaduras sul-americanas, mas não só, idem. O senso comum se manifesta não só pelo apoio explícito de uma maioria, como também pelo silêncio e pela omissão de muitos.

Uma pessoa jamais pode dar-se o direito de não pensar. Do contrário há sempre o risco de outros o fazerem por nós e, em nosso nome, cometerem grandes desatinos e crimes. O espírito crítico é fundamental em qualquer situação, pena de aceitar-se o horror como algo normal e o mal como coisa banal.

Continuando. No que concerne aos padrões de beleza normalmente aceitos, são em geral vazios, mesquinhos, privilegiando a crosta dos viventes mais que o conteúdo. Coisa tola. E triste, não é, Blob?

Por causa da ditadura das aparências, um dia, na tentativa de evitar comparações estéticas com outros seres, e os sofrimentos daí decorrentes, os ancestrais de Blob resolveram habitar o fundo profundo do oceano.

Adaptaram-se com o passar do tempo, vivendo no silêncio e na solidão das águas de profundeza, onde poucos resistem. Os marcidus suportam bem grandes pressões no corpo gelatinoso. Acima de tudo, acho que eles queriam ficar longe da maldade humana dos julgamentos desumanos. Mas não adiantou muito, infelzmente, pois os parentes de Blob continuam sendo alvo de pesca predatória.

Frotas de traineiras que utilizam redes de arrastão, na Austrália e Nova Zelândia, ameaçam de extinção a família blobfish. Na ânsia de pescar sem limites, acabam capturando peixes como ele, que sequer é comestível. Em princípio, portanto, não interessa à pesca, mas é preso no embalo das redes.

Blob não entende, e eu muito menos, por que, sendo tão parecido com os humanos, foi justamente ele escolhido como animal mais feio do mundo.

Mas como?, pergunta ele incrédulo. Será que as pessoas não gostam de se olhar no espelho, será que têm vergonha de sua aparência, não se acham suficientemente belas? A autoestima do ser humano anda assim tão em baixa?

Difícil entender, amigo Blob. Creio que a maioria não atenta para o que realmente importa, que está no coração e nos valores de cada um, e não na fachada. Triste mundo. Mas se serve de consolo, Blob, digo que, pra mim, tu és um dos seres mais bonitos que eu já conheci.

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*Ugly Animal Preservation Society
http://uglyanimalsoc.com/

Biodiversidade
http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL1463377-5603,00.html
Texto revisto, publicado em 14, set, 2013.

domingo, 30 de março de 2014

O prisioneiro da Ilha de Patmos

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

 
A rua São João era a nossa Ilha de Patmos. Ali todos eram prisioneiros de um tempo e de um lugar e o nosso destino era comum: afundar no esquecimento.

Exilados do mundo, todos alimentavam o sonho secreto de um dia fugir. Fugir para sempre, para qualquer lugar, ainda que fosse o último ato da vida.

A família espiritual de A eram os livros. Os poucos que havia na casa, quando era menino, e depois os outros, que foi amealhando feito formiga, migalha a migalha, com tenacidade e alumbramento.

A família dos livros tinha uma vantagem. Nenhum de seus membros morria ou desaparecia como acontecia com frequência com os familiares de carne  osso.

Os livros retirados da biblioteca pública, por empréstimo, eram parentes longínquos. Traziam a aura de quem passou por muitas casas, iluminando solidões diurnas e noturnas. Guardavam o cheiro misturado dos ambientes que tinham freqüentado.

Na casa antiga, havia muitos silêncios. Vultos moviam-se calados. Um relógio velho de parede tentava acompanhar a passagem do tempo, mas nele as horas tinham enlouquecido.

De uma espécie particular de eternidade eram feitos os livros.

O mundo de tinta e papel espantava os fantasmas que habitavam o sótão. O menino sabia que, mais dia, menos dia, acabaria só, como todos.
 
Havia um gato na casa, porque gatos gostam de histórias assombradas. No porão gelado e sombrio, coisas velhas eram esquecidas.

Um retrato de Getúlio Vargas, "o pai dos pobres", ocupava o centro da parede da sala de jantar.

A janela do quarto de dormir olhava o mundo e o mundo era um lugar muito distante.

João era o nome do apóstolo que teve as visões na Ilha de Patmos, no mar Egeu, onde esteve exilado por falar de Deus e dar testemunho de Jesus. Nela escreveu o livro bíblico Apocalipse (Revelação).

A rua São João era a ilha do nosso apocalipse.


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Texto revisto, publicado no blogue em 27, out, 2011.