domingo, 3 de agosto de 2014

Elegia 1975

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 

O vento não traz
notícias de longe

todos foram dormir
depois do vinho
 
só nós permanecemos
incomunicáveis
debaixo das estrelas

e do frio

um que outro fantasma passa
fugitivo na calçada
não perguntamos pela vida
passada ou futura


habitamos cada momento
com olhos de prisioneiros violentados

escutamos o silêncio que vem do rio


a fome imensa de liberdade
que nos anima e nos faz fortes
na tempestade que nos enlaça
nos joga contra a parede

nosso rosto parece

ao de toda gente
mas trazemos

segredos inviolados
noites de lobos feridos

olhamos a cidade morta
nenhum anjo nos acalanta

estamos vivos
e nunca doeu tanto


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Do livro Claridade, coedição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Composição

Jorge Adelar Finatto 
 
Van Gogh (Girassóis, 1888)
Van Gogh Museum, Amsterdam, 20 digital highlights
 
O anjo tombou morto
na terra alheia de uma tela


Van Gogh imagina Gauguin
asfixiando o anjo no jardim
com as mãos queimadas de sol

Dali encoberta a face de granito
com o manto de brilhantes
os brilhantes despojados do anjo

Di Cavalcanti entristece: era uma mulata
o anjo assassinado nas cores do jardim?

Portinari retira-se melancólico
Picasso adentra a gruta de um olho

A noite cai pesada de remorso

Nesse instante todos dão-se as mãos
e cantam a canção predileta do anjo
em volta do corpo estendido no chão


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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

The last bedroom of Van Gogh
O último quarto de Van Gogh
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2009/12/o-ultimo-quarto-de-van-gogh.html

 

quarta-feira, 30 de julho de 2014

A expedição da Nasa a Passo dos Ausentes

Jorge Adelar Finatto 

photo: j. finatto

 
Condições atmosféricas peculiares fazem de Passo dos Ausentes uma estação climática e astronômica única no planeta. Estranhos fenômenos costumam ocorrer nesse longínquo lugar ao sul do mundo.

 
Esta foi uma das conclusões do relatório assinado pelo cientista norte-americano John Joseph de la Rosa, que comandou memorável expedição científica a nossa cidade em 1959.

Uma cópia do documento está arquivada na Sociedade Artística, Literária, Filosófica, Histórica, Geográfica, Astronômica, Geológica, Antropológica e Antropofágica de Passo dos Ausentes.

A expedição foi organizada pela Agência Espacial Americana (Nasa) por razões que nunca foram esclarecidas. A equipe de seis cientistas ficou hospedada durante 40 dias na pensão Ao Viajante Solitário, conforme consta dos registros daquele estabelecimento.

As coisas se passaram de maneira obscura, a começar pela forma como aqui chegaram os viajantes ianques. Vieram num enorme dirigível da força aérea dos Estados Unidos.

Num dia de maio, o objeto voador azul-marinho com uma águia branca desenhada surgiu da bruma e pousou o cesto com a tripulação do lado do coreto da Praça da Ausência, amassando um luminoso canteiro de margaridas amarelas.

Segundo se apurou na ocasião, o dirigível teria partido de um navio de guerra ancorado na costa gaúcha, na altura do Farol da Solidão.

A população reuniu-se na praça para saber o que acontecia. De la Rosa apresentou suas credenciais a Don Sigofredo de Alcantis, nosso filósofo-mor, presidente da SALFHGAGAA. Pediu-lhe permissão para fazer estudos espaciais, astronômicos e atmosféricos nas cercanias da cidade.

Don Sigofredo indagou se tinham autorização do governo para entrar no espaço aéreo de Passo dos Ausentes, o qual, como devia saber o comandante, pertencia ao território brasileiro.

O americano esboçou um sorriso irônico e devolveu:

- O senhor tem certeza de que este lugar pertence ao Rio Grande do Sul e ao Brasil? Não vimos nada no mapa nem identificamos qualquer registro oficial. Viemos em paz, Don Sigofredo, não existe razão para envolver as autoridades brasileiras nisso. Estamos em missão científica. Viemos com espírito desarmado e em secreto. Não vamos levar nada, não queremos fazer nenhum mal. Pedimos sua compreensão para que evitemos formalidades desnecessárias que só atrasariam importantes descobertas para a humanidade. 

- Não vou discutir o assunto da nossa invisibilidade oficial com o senhor - disse com voz grave e calma Don Sigofredo. - Já nos bastam os problemas que enfrentamos, há mais de cem anos, com a burocracia do governo, que insiste em não conceder existência jurídica a nossa aldeia. Se vêm em paz, podem ficar o tempo que quiserem. Apenas um aviso: façam por merecer a nossa hospitalidade.

Sobre os acontecimentos que sobrevieram e como aquela expedição mudou a vida da nossa esquecida cidade trataremos em breve.

Convém recordar que tramita desde o final do século XIX, nos órgãos burocráticos do Estado do Rio Grande do Sul, o processo que trata do pedido de reconhecimento de Passo dos Ausentes como cidade. Até hoje nada conseguimos.

O último parecer da comissão foi ofensivo à nossa pretensão. Afirma-se no tal documento que a Equipe de Estudos Antropológicos para Verificação da Existência de Comunidades não conseguiu sequer subir até nosso lugar de viver, ante as péssimas condições de acesso por córregos, imensos paredões de pedra e estradas de chão a pique, quase verticais em alguns trechos, culminando em densas nuvens de neblina e neve, com austeras trovoadas consequentes a raios que explodem ameaçadoramente perto dos forasteiros que se aproximam.

Os medrosos e pouco diligentes funcionários públicos não chegaram, ao menos, perto do Contraforte dos Capuchinhos. Assustaram-se com as alturas e clima hostil.

Não satisfeitos com o fracasso da incursão, puseram uma placa absurda no início da Estrada da Ausência, 90 km a leste e 100 km acima de São Francisco de Paula, escrevendo em letras vermelhas sobre fundo branco os dizeres:

Passagem temerária.
Valhacouto de fantasmas.

Habitamos entre nuvens.

Somos voláteis e invisíveis para o mundo oficial. Nenhum registro, nenhum apontamento. Não figuramos nos mapas, nos roteiros turísticos, culturais e históricos do Rio Grande do Sul. Os jovens muito cedo vão-se embora em busca de oportunidades.

Somos poucos. Sobrevivemos por pura teimosia neste fim de mundo, agarrados à memória e a uma inexplicável esperança.

Somos uma página caída no desvão do tempo, escrita à mão pelo Criador num momento de distração e enfado com as coisas tristes desse mundo.

O Senhor cultivava um instante de poesia quando desenhou estas montanhas perdidas nos Campos de Cima do Esquecimento.

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Texto revisto, publicado antes em 1º de agosto de 2011.
 

segunda-feira, 28 de julho de 2014

O dia, a dádiva

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto
 
Um dia desses não se encontra todo dia no calendário. Céu azul, sol amarelo, frio, um cálido frio de blusa e casacão. A praça tem muita gente e pouco cachorro (criaram um cachorródromo ali, até que enfim).
 
É um dia pra se guardar num cartão-postal no álbum da memória. Pra recordar num daqueles momentos em que tudo em volta parece triste e sem sentido.

Vou caminhando pela tarde azul.

photo: j.finatto
 
À beira do Guaíba, a cidade se deixa embalar - às vezes até sonhar - nas ondas. Vista assim desde a margem, é uma fotografia que emerge de um tempo antigo com personagens de chapéu, bengala, vestido comprido, sombrinha. E faetontes flutuam nas ruas.

Agora é outra coisa. Cimento e vidro, avião furando nuvem, janelas abandonadas, lixo (muito lixo). Solidão.

instalação de Nuno Ramos. photo: j.finatto
 
Vamos em frente.

A cidade e seus sobreviventes. A cidade e seus barcos. A cidade e seus sonhadores no fim da tarde. A cidade e seus ciclistas que resistem. A cidade e seu cais. A cidade e seus ais.
 
Depois uma esticada até a Fundação Iberê Camargo, o bonito edifício branco brilha na tarde de sol, à
beira
do
rio. 

instalação de Nuno Ramos. photo: j.finatto

Mas o famoso arquiteto Álvaro Siza, que projetou o moderno prédio, esqueceu que janelas foram feitas pra sonhar e admirar e, reduzindo-as a pouco e poucas,  sonegou do olhar, na falta de outras finestras, a amplidão das águas, a face clara da cidade, as gaivotas, o pôr-do-sol.


restam
nesgas.

O que é puro desperdício de beleza (na modestíssima opiniãozinha deste anônimo transeunte).
 
A instalação do artista Nuno Ramos¹, no último pavimento, Ensaio sobre a dádiva, é a possibilidade de poesia e construção de sentidos no imaginário do observador.
 
A arte é dádiva. A cidade é dádiva. A janela é dádiva. O olhar é dádiva.  A mão estendida,
o silêncio
são
dádivas.

A troca humana imanente, urgente. A oferta e a recepção do que não tem preço em dinheiro.

"Um cavalo por um pierrô. Um violoncelo por um copo dágua."²
  
vídeo da instalação de Nuno Ramos. photo: j.finatto
 
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¹.² Ensaio sobre a dádiva. Instalação de Nuno Ramos na Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre. Para maiores detalhes, acesse:
 
Foto de abertura do blog: vista da Fundação Iberê Camargo. As fotos de abertura mudam a cada dois dias, em média.
 

domingo, 27 de julho de 2014

O pintor do pôr-do-sol

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
Quantos lápis de cor são necessários pra pintar o pôr-do-sol?

Não tenho idéia. Mas uma coisa eu sei: que há uma grande arte nas mãos de quem o faz, lá isso há. Tamanho engenho, arte tamanha.

Estava pelo entardecer quando olhei em direção às montanhas. Aqueles traços e cores me invadiram o coração.

Na ilusão - sempre ela - de aprisionar aquele efêmero instante de luz e forma, peguei a velha Coruja e fui até a varanda do escritório fotografar. O caçador de imagens em busca de novas e urgentes revelações do Grande Artista.

O sol caía atrás das nuvens. Os últimos pássaros retornavam aos ninhos.

A breve hora do adeus de mais um dia.


photo: jfinatto


As imagens, sem qualquer retoque, aí estão.

O mérito de tanta beleza é de quem inventou o cenário e pinta diariamente as cores do crepúsculo. Um artista caprichoso e único.

Em todos os finais de tarde ele senta-se diante da tela com seus lápis, régua, compasso, esquadro, pincéis e tintas e constrói as linhas e as cores de mais um pôr-do-sol.

O Grande Artista distribui sua arte amorosamente para quem quiser e souber ver, pobres e ricos, felizes e infelizes, bons e maus.

Observadores fugazes e privilegiados, a inefável pintura penetra fundo nosso espírito, nos sentimos parte de algo maior e mais belo. Salve o Grande Artista!

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Texto revisto, publicado em 19 de dezembro, 2012. 

sábado, 26 de julho de 2014

Ariano, um sábio sem ostentação

Jorge Adelar Finatto
 
Ariano Suassuna. autor: Eder Chiodetto. Folhapress
 
 
Em seu blog Interesse Público, da Folha de São Paulo, o jornalista Frederico Vasconcelos, repórter especial da Folha, reproduziu o texto que publiquei aqui sobre Ariano Suassuna. Na matéria, é transcrito trecho da notícia que deu origem ao poema.
 
É uma honra ser lembrado no espaço democrático e cidadão deste grande jornalista brasileiro. Eis o acesso:
 
Sob o título “Ariano”, o juiz e poeta Jorge Adelar Finatto, do Rio Grande do Sul, publicou em seu blog (“O Fazedor de Auroras“) a seguinte homenagem a Ariano Suassuna:
 
 

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Ariano

Jorge Adelar Finatto
 
Ariano Suassuna. fonte: www.paraiba.com.br
 

Em 1985, recebi um telefonema do grande Ariano Suassuna, falecido nessa quarta-feira (23/7/14), aos 87 anos. Motivo: ele recebera o meu livro Claridade, que lhe enviara alguns dias antes. Queria manifestar seu agradecimento pelo poema que lhe dediquei.
 
Fiquei feliz com o gesto. Passei a admirar ainda mais o autor do Romance da Pedra do Reino, um clássico brasileiro que figura entre os melhores romances publicados na Terra de Vera Cruz no século passado e em todos os tempos.
 
Um livro impressionante em invenção, criação de linguagem, sintaxe, desenvolvimento. Penso que não exagero colocando-o ao lado do Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Dois monumentos de língua portuguesa com raiz brasileira.
 
O poema que escrevi dá conta dos impasses que o atormentavam e que ele revelou em notícia publicada na Folha de São Paulo em 1981. Ao lê-la fiquei desolado e impactado com sua idéia de abandonar a escrita. Logo ele, autor de obras tão reveladoras do Brasil. Felizmente, o momento de desalento foi superado e o escritor trabalhava com entusiasmo quando conversamos.

Seja nos textos para teatro, seja em obras como a Pedra do Reino, o que encontramos é uma literatura impregnada com uma rica visão de mundo a partir de vertentes fortemente sustentadas no modo de ser, sentir, pensar e criar dos brasileiros do nordeste. Ariano era paraibano e foi morar com a família em Recife, Pernambuco, em 1942.
 
Uma parte de sua obra foi vertida para televisão e cinema, tornando-o um autor conhecido e respeitado em todo o país. 
 
Ele foi um dos poucos que souberam ver o Brasil real e o imaginário, o país profundo com longas raízes na cultura popular.
 
Não tive o prazer nem a ocasião de assistir a uma de suas famosas aulas-espetáculo, que tanto deliciavam quem as assistia pelo saber e pela alegria que transmitiam. Com grande simplicidade e um intenso sentimento pelas coisas do nosso povo, ele foi um professor caminhando ao lado dos alunos, nunca acima, e um sábio sem ostentação.

Eis o poema, tendo por epígrafe a notícia que lhe deu origem:
 
Aos 54 anos, o escritor se despede "para tentar reunir os estilhaços" em que se despedaçou com o passar do tempo, na tentativa de "ver se ainda é possível recompor com eles alguma unidade". Longe dos livros - "sobretudo dos melhores" - e também das cartas, jornais, revistas, televisões, dos amigos e da própria família, Suassuna tentará livrar-se dos "sonhos, quimeras e visões às vezes até utópicas da vida e do real", que o atormentam há algum tempo. (Folha de São Paulo, 16.8.1981)

Abro o jornal de manhã
com aquela notícia: Ariano Suassuna
calou-se pro mundo

o silêncio enche os corações
lota os teatros
embrenha-se entre as anotações
invade as estantes

felino
enovela-se a um canto da sala
gotejando sangue pelos ouvidos

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Poema do livro Claridade, Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.