quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Os sapatos da primavera

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
Da minha janela eu vejo a rua. A rua é um pedaço do mundo. É só uma rua entre tantas.

O mundo é um rio largo e fundo. O tempo dos galhos secos cessou. A claridade de setembro invade a sombra.

Escuto na calçada o som de passos que vêm de muito longe. Mas não há ninguém lá fora nessa hora erma. O vento sacode as folhas nas árvores.

A carroça cheia de flores dobra a esquina, para no meio da quadra, debaixo do poste de luz. Na manhã que se aproxima, as pessoas encontrarão a carga suave e perfumada.

Enquanto escrevo, coisas luminosas acontecem em silêncio. Da janela observo esse ponto pequeno e obscuro do universo, que chamo minha rua, onde todos agora dormem. Mãos desfalecidas nada podem segurar.

Nenhum grito assola a hora nua. O sonho levanta do escuro.

Os sapatos da primavera cantam na calçada.
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Texto revisto, publicado antes em 30 de agosto, 2010.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Celebro a vida que virá

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
Un petit espoir très féroce: c'est moi.
Robert Lalonde
 
Ainda não nasci
sequer faço parte da paisagem
escuto uns gritos do outro lado: não estou

a sombra é apenas o começo
do previsível caminho
que vai dar na aurora

ainda não nasci
no entanto, é para breve

celebro a vida que virá
rompendo a escuridão
explodindo em alegria
como a primavera depois do inverno

sei onde isso terminará:
flor no extremo do ramo
beleza enchendo o vazio

faço do silêncio
um grande bosque
onde borboletas passeiam
pássaros inventam a claridade
com seu canto

imagina uma faísca que, súbito, paira no ar
uma palavra procurando um oco de boca
uma pequena luz que cresce: sou eu

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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

*Uma pequena esperança feroz: sou eu. Da obra Une belle journée d'avance., de Robert Lalonde. Éditions du Seuil, Paris. 1986.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Boa primavera a todos

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

Repousando sobre o galho pensador, meu amigo resolveu fazer uma pausa pra descansar e admirar o Vale do Olhar neste início de primavera. E cantou um pouco, também,  sobre o ramo da jovem caneleira no seu momento de solidão e meditação.
 
A vidinha do meu amigo não anda nada fácil. Conheço-o desde que, ainda menino, passou a freqüentar as árvores diante da janela do escritório. Agora ele tem família e precisa garantir o sustento dos filhotes e da companheira no ninho que não fica longe daqui. 
 
Já não existe muito alimento disponível na natureza para eles. As cidades avançam ferozmente sobre as matas e áreas verdes. Vivemos num país de 200 milhões de habitantes onde não se respeitam os direitos elementares das pessoas. Se para os seres humanos está ruim, imaginem para os pássaros e outros seres vivos.
 
Por dia, mais de 50 pássaros como o meu amigo vêm à varanda do escritório para comer as frutas que sirvo para eles. A maioria pega o pedacinho da fruta e leva para o ninho. Depois volta.
 
Que nesta primavera, que começa hoje no hemisfério sul, tenha mais justiça, beleza e alimentos para todos.
 

domingo, 21 de setembro de 2014

Receita para velhos

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
Enquanto tomava um cappuccino no café da livraria, folheando um livro, duas jovens sentaram à mesa ao lado e começaram a conversar. Ouvi a seguinte passagem, não por abelhudo, mas porque o som da conversa invadiu sem cerimônia o meu espaço aéreo. 
 
- As minhas duas velhas tias estavam desanimadas quando as visitei um dia desses, na casa onde moram, que não fica longe do meu apartamento. Falavam mal da idade, dos problemas de saúde, da voragem do tempo que tudo devora.
 
- Ai, que triste!
 
- Mas aí eu disse: vocês têm que ver as coisas boas que podem fazer: ler livros, viajar, sentar na varanda.
 
Eu, que estou sempre aprendendo, principalmente com os mais moços, guardei o conselho que poderá ser muito útil quando eu ficar velho qualquer dia.

Não sei exatamente o que vou fazer com a parte de sentar na varanda. Mas pela convicção com que a moça falou, deve haver algum consolo e uma insuspeitada alegria nisso.
 

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A originalidade na arte

Jorge Adelar Finatto

Quinces, lemons, pears, grapes. Van Gogh, 1887, Van Gogh Museum
 
Estive pensando sobre o que me fascina na obra de certos artistas e escritores. Van Gogh, por exemplo, já que tenho falado nele nos últimos tempos.

Na pintura que ilustra este texto (Marmelos, limões, peras e uvas, de 1887), o artista não se resumiu ao espaço da tela, transbordou a imagem para a moldura como se quisesse prolongar ao infinito a felicidade do ato criador.
 
E cheguei a uma singela conclusão ou, melhor dizendo, a uma intuição. Descobri que o que me encanta nas suas obras não são as pessoas, os objetos ou as paisagens que ele retratou.
 
Não é aquilo que os olhos do pintor viram, mas sim como a alma de Van Gogh os traduziu. O motivo da pintura é secundário.
 
O que realmente me interessa e seduz é como o artista sentiu e pensou esse motivo.
 
Aquele cenário, aquele rosto, aquele objeto animado ou inanimado só têm relevância porque foram apreendidos e transformados em arte pelo traço revelador de Van Gogh. E o que ele nos revela?
 
Revela a interioridade do pintor diante da tela, os seus sentimentos, a sua visão de mundo, o seu lirismo, a sua tristeza. Revela tudo o que a vida fez com ele até aquele momento, e como ele reagiu diante dos sofrimentos (muitos) e venturas (poucas).
 
Os frutos de Van Gogh não se parecem a quaisquer outros já pintados. Assim os seus girassóis, as suas árvores, os seus jardins, as suas estrelas, as suas casas, as suas pontes, as suas nuvens e campos. Tudo que fez é único. Somente ele, e ninguém mais, poderia ter realizado aquela obra. A isso podemos chamar originalidade, o modo pessoal e intransferível.
 
Essa característica, a singularidade, se faz presente nas obras dos grandes artistas e escritores. É a impressão digital do autor que nos marca. Em alguns, essa marca é mais sentida do que em outros.

Um quadro de Van Gogh é reconhecível à primeira vista em qualquer lugar do universo, destaca-se como o sol, tal a sua força expressiva. Da mesma forma que um texto de Guimarães Rosa. São inconfundíveis. E belos. E a pintura e a literatura são melhores porque eles existiram.

Ser original significa encontrar a própria voz. Não para ser diferente dos outros e aparecer mais do que eles, mas para ser igual a si mesmo. E, sendo aquilo que se é, dar o seu melhor, seja qual for a atividade.
 

terça-feira, 16 de setembro de 2014

A escada

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto, 2007.
 
A explosão e a subversão das cores e das formas, na pintura, foi ele quem inventou. Nunca antes o amarelo foi tão belo nem as outras cores tão livres e entusiasmantes. Nunca alguém pintara assim antes dele. Precisou Vincent Willem Van Gogh (1853 - 1890) vir ao mundo para nos dar essa alegria e essa liberdade. Isso só já justificaria plenamente sua existência (viveu apenas 37 anos).

Mas fez mais: foi um poeta e um pensador profundo no meio da tempestade que foi sua vida. Além da pintura, leu muitos autores importantes da época e escreveu com uma impressionante clareza e desenvoltura sobre temas como solidão, arte, morte e Deus, conforme vemos no livro de suas cartas ao irmão Theo. Conhecia a Bíblia de perto.

Terá sido, a par disso, uma pessoa de muito difícil convivência, com temperamento forte e impositivo. Em parte devido aos traumas familiares, às dificuldades de realizar sua obra e à escassez de afeto das pessoas com quem conviveu.

No fundamental, no mais secreto de si, um homem de coração sensível, cheio de ternura, bondade e vontade de ser feliz. Como artista, foi um gênio que se construiu a duras penas em meio à pobreza.
 
Sua vida foi sofrimento e incompreensão. Mas seu espírito só nos legou beleza (mais de 800 pinturas em menos de 10 anos de produção). Van Gogh, do alto de sua angústia e de seu gênio, foi um mistério.
 
Nos últimos dias de vida (em torno de 70), na pequena Auvers-sur-Oise, distante cerca de 40 km de Paris, mais ou menos a uma hora de trem atualmente devido ao traçado da estrada de ferro, pintou com profusão.

Estive mais de uma vez naquela cidade e visitei seu obscuro quarto no Auberge Ravoux, estalagem na qual viveu aqueles dias,  e onde acabou sendo velado sobre uma mesa de bilhar, após morrer em circunstâncias até hoje pouco esclarecidas.

A escada sombria da photo acima (que leva até o melancólico quartinho sem janela, apenas com uma clarabóia) é a visão material e simbólica do quão difíceis e solitários foram seus caminhos.

photo: j.finatto, 2007. o último quarto

A arte foi a verdadeira escada que o retirou do negro calabouço e lhe proporcionou a alguma felicidade que teve em sua rápida passagem pela vida. Todo seu amor se concentrou na sua obra e na pessoa do irmão mais novo Theo, que o sustentou. Devastado com a morte do amado Vincent, seis meses depois Theo veio a morrer. Ambos estão enterrados no pequeno cemitério, na parte alta de Auvers, um ao lado do outro. Ali ao lado Van Gogh pintou, dias antes, o magnífico Trigal com Corvos.

Sobre o período em que Van Gogh viveu à margem do rio Oise, publiquei aqui dois textos com diversas imagens, aos quais remeto o leitor.*

Também recomendo o livro Van Gogh, A vida, de Steven Naifeh e Gregory White Smith, publicado em 2012 no Brasil pela Companhia das Letras, com ótima tradução de Denise Bottmann. Um trabalho de fôlego (1095 páginas), ricamente documentado e que lança novas luzes sobre a vida e a obra do gênio holandês. Este livro afasta, por exemplo, a versão do suicídio do artista com base em percuciente análise.

photo: j.finatto, 2007

Duas coisas gostaria de lembrar para finalizar este breve artigo. No livro em questão, é descrita a forma vexatória e às vezes grotesca com que Van Gogh foi tratado por alguns adolescentes de Auvers, que viam nele a figura de um louco desagradável. Faziam coisas para vê-lo atarantado e humilhado. Sua figura chamava a atenção pela roupa desconjuntada, pelos modos esquisitos e por estar sempre vagando com seu equipamento de pintura na jornada diária de trabalho.

Isso me recordou a péssima impressão que tive de alguns jovens locais quando estive pela primeira vez na cidade, em 2002, em pleno Dia de Natal. Ao perceber um turista idoso caminhando pela rua, diante do prédio da prefeitura, um grupo de adolescentes passou a imitá-lo e a zombar dele, sem nenhuma razão (não usava chapéu de palha, não carregava o cavalete nas costas nem tinha roupas muito velhas como Vincent). Vendo a situação, fui para o lado do cidadão e comecei a conversar com ele, enquanto olhava para os adolescentes, que, diante disso, acabaram desistindo da zombaria. Estranhei muito aquele comportamento gratuito e agressivo.

Sempre entendi que Deus se comunica com a humanidade através da obra de Van Gogh (como, em geral, penso que acontece com os grandes artistas). Vincent chegou a cogitar alguma vez em desistir do trabalho e tentar ser um pouco feliz num outro tipo de vida, tal a miséria material e o isolamento que o acompanharam. Mas seguiu em frente.

Ele acalentava, em meio às mil provações, a idéia de uma outra vida além desta, que possibilitasse um recomeço, uma segunda chance, um mundo onde poderia se libertar da "estupidez vazia e da tortura sem sentido da vida", como se lê nas páginas 997/998 do referido livro. Para encerrar, esta passagem tão bela quanto visceral:

"Sinto cada vez mais que não devemos julgar Deus a partir deste mundo. É apenas um estudo que não saiu. O que você pode fazer com um estudo que deu errado? - se você gosta do artista, não encontra muito o que criticar - refreia a língua. Mas você tem o direito de pedir algo melhor". (pág. 998)

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*O último quarto de Van Gogh (The last bredroom of Van Gogh):
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2009/12/o-ultimo-quarto-de-van-gogh.html

O silêncio de Van Gogh (The silence of Van Gogh):
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/12/o-silencio-de-van-gogh.html

Van Gogh Museum, Amsterdam:
http://www.vangoghmuseum.nl/en

domingo, 14 de setembro de 2014

Aos que dizem que tudo é possível

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

 
Aos que dizem que tudo é possível, eu digo sim, tudo pode via a ser. Mas que venha logo, sem demora, sem mentiras, que desperte, enfim, a luminosa manhã.

A treva tomou conta do Brasil, da cidade, da minha rua, entrou na minha casa.

Fugir pra onde? Se tudo em volta suspira e dói.

Se tudo é possível, que venham as pequenas alegrias, as inesperadas ternuras, os abraços escondidos, as urgentes mudanças, as mãos dadas.

Se tudo é possível, um casal dançará um fado rasgado em plena calle deserta.
 
Se tudo é possível, abrirei o guarda-chuva e sairei pela noite em busca de açucenas em setembro pra deixar na tua porta.

E se tudo for mesmo possível, vamos enfrentar o problema do medo de viver e de abraçar o nosso irmão

(a morte, essa coisa numerosa e fria, está em toda parte e não faz mais espanto).

Dizem eles que tudo é possível.

Que venha então depressa essa ventura.

Que não nos falte mais o amanhecer dos corações.

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Texto revisto, publicado antes em 28 de abril, 2011.