segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Presença

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
Me tens aqui lutando
com secas palavras
para iluminar a treva
que nos reúne
em torno do lume
do poema

me tens aqui solidário
beirando a primavera
beirando os trintanos
com raros bens materiais
e nenhum privilégio
de credo ou classe

às vezes louco
às vezes patético
com poucos seres humanos
pra repartir
alguma coisa

me tens aqui poeta
num país injusto e sofrido
caminhando à beira de um rio

a sujeira flutua nas águas
os pobres equilibram-se
em perigosas palafitas

me tens aqui poeta lírico
cada dia mais lúcido

como a primavera
eu invado de repente
a sala adormecida
o coração desabitado

não tenho uma saída
para os dramas
que andam por aí

sequer possuo soluções
plausíveis
para os atrapalhos
cotidianos

o que posso oferecer
e ora ofereço
é essa canção discreta
para dissipar a sombra

um braçada de flores
no inverno

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Cuando Dios hizo la luz

Jorge Adelar Finatto

Colonia del Sacramento, Uruguai. photo: j.finatto
 
Cuando Dios hizo la luz, yo ya debía tres meses.
(Quando Deus fez a luz, eu já devia três meses.)

A maneira espirituosa de ver a vida é o que distingue a calma do desespero. Ante uma situação difícil (elas acabam chegando), o melhor é tentar manter a serenidade e buscar as possíveis saídas (que sempre existem).

O desespero é mau conselheiro, timoneiro de um navio enferrujado, carregado de tristeza e melancolia, que navega torto pelo mar afora rumo ao inevitável abismo.

O bom humor ajuda manter a alegria de existir (essa coisa que começamos a perder ao nascer) e, com ela, a saúde.

A procura da leveza é um belo caminho na luta contra os tombos da vida.

A grande arte: levantar depois de cair.

Essa frase sobre Deus e a luz é mais um dos grafites montevideanos que recolhi na minha última viagem ao Uruguai.

Grafites como esse levam a rir e pensar. Promovem uma reflexão irônica (sem ser amarga) sobre a vida nossa de cada dia. Não vendem coisa alguma, apenas comunicam algo que influencia positivamente o nosso estado de espírito.

Sim, podemos encontrar algum encanto, alguma graça, no ato de viver, apesar das dificuldades.

A tragédia é quando já não conseguimos rir das coisas. 

Fiquei olhando aquele grafite num muro da Ciudad Vieja e pensei: é bom estar vivo, andar a esmo por essas ruas, sem desesperar em relação ao que vem por aí. Ninguém tem o controle de nada.

Depois fui até o café da esquina. Abri o livro que tinha comprado do poeta uruguaio Mario Benedetti e nele anotei a frase com a caneta esferográfica azul.

A tarde estava quase completa, agora molhada pela garoa que começava a cair. Ficou plena com a chegada da taça de café com leite e do pão com manteiga.

Sim, é bom ir vivendo assim dia a dia, hora a hora, café a café, livro a livro, cada instante a seu tempo. Como se tivéssemos essa sabedoria, como se nos tocasse viver a eternidade toda pela frente. Como se não soubéssemos da dor de estar vivo.
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Texto revisto, publicado antes em 05/12/12
Hay vida antes de la muerte?
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/12/hay-vida-antes-de-la-muerte.html
 

Homenagem à Amália


No mês em que se assinalam 15 anos sobre o desaparecimento de Amália Rodrigues, o Museu do Fado (Lisboa) apresenta o concerto de Camané e Mário Laginha - um tributo evocativo do repertório mais emblemático da artista - que terá lugar no dia 9 de Outubro, pelas 21h00.


Museu do Fado (Lisboa) homenageia Amália Rodrigues
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Museu do Fado:
http://www.museudofado.pt/
 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O violoncelo brasileiro de Yo-Yo Ma

Jorge Adelar Finatto
 
capa do disco Obrigado, Brazil

A música tem sido fonte de consolo, inspiração, beleza e esperança na vida de muitos, entre os quais felizmente me incluo.  A arte em geral e a música em particular ajudam a viver e a suportar a escuridão da realidade.

Na orquestra da minha alma,  o violoncelo é o coração.
 
Isso se confirma ao ouvir Obrigado, Brazil, do violoncelista francês-americano Yo-Yo Ma, nascido em Paris, em 1955, filho de pais de origem chinesa. É um desses  discos indispensáveis para a sobrevivência na selva desses dias. Nunca me canso de escutar. É um momento raro, delicado.

Com produção e maioria dos arranjos do argentino Jorge Calandrelli, o cd, gravado em 2003, é algo digno de figurar na melhor discografia da música brasileira e universal.

Um time de músicos de primeira linha confere ao trabalho uma notável qualidade. Entre eles, os irmãos violonistas Sérgio e Odair Assad, Oscar Castro-Neves, Cyro Baptista, Paquito D'Rivera, Egberto Gismonti e Cesar Camargo Mariano.

A fina sensibilidade de Yo-Yo Ma consegue extrair a mais pura sonoridade de composições como Bodas de prata & Quatro cantos (Egberto Gismonti), Alma brasileira (Villa-Lobos), Carinhoso(Pixinguinha), Chega de saudade (Tom Jobim), Brasileirinho (Waldir Azevedo), Dança brasileira (Camargo Guarnieri), entre outras.

Em Doce de coco, de Jacó do Bandolim, encontramos toda a maestria, inventividade e ternura do consagrado virtuose.

O violoncelo de Yo-Yo Ma tem, nesse disco, a cara do Brasil e o espírito oriental. Com luxo de batucada, apito e todo balanço na superior performance de Brasileirinho.

Disco instrumental com apenas duas participações cantadas, na bela voz de Rosa Passos.

A música está entre as poucas coisas que me animam neste Brasil tão injusto e violento dos dias atuais. Ela lembra que temos qualidades que vão muito além da miséria ética e do cinismo em que estamos afundados.
 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Bernardo, eremita

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

 
Bernardo, eremita, foi morar no interior do barco abandonado. Conversa com os peixes. Caminha no jardim das anêmonas. O barco onde vive fica na flor dágua, é uma espécie de búzio de metal, pouco poroso e, de tão velho, exibe na pele as impressões digitais do esquecimento.

As gaivotas bailam no ar azul da manhã, nesses confins de setembro. De boné branco, astrolábio e telescópio, Bernardo descortina os quatro horizontes. Faz silêncio na ilha do búzio. Só se ouvem as ondas. O vento austral estufa a camisa, espalha os brancos cabelos.

Bernardo sai pouco a navegar no escaler de madeira. Apenas ele, os peixes e as aves vivem ali. Costuma remar de vez em quando em volta do búzio de metal, margeando as palmeiras e falésias. Faz parte do seu cotidiano conversar consigo mesmo. Estranho, tem dias que resolve dizer a si o que pensa de certas coisas e acaba ouvindo o que não quer.

Longe do búzio tem um farol pintado de branco e vermelho. Nunca foi até lá, mas admira a persistente luta do faroleiro contra a escuridão. Bernardo queria ter essa força também.

Solitário, pensa: quem sabe um dia descubro alguém pra partilhar a vida e vou-me embora daqui?

As memórias habitam o ermo do búzio.

As gaivotas sobrevoam Bernardo no búzio enferrujado. Às vezes, ele sonha viajar até o outro lado e voltar a viver no continente. Talvez saindo da concha encontrará a moça do cabelo preto escorrido e do vestido branco floreado. Mas já se passaram vinte e cinco anos. Em que coral, em que ilha distante viverá a moça do vestido floreado?

A maré sobe, os peixes nadam em festa em torno do búzio. Bernardo recolhe os instrumentos e retira-se com o boné branco para o interior da côncava morada.

A música primitiva do vento sopra nas trompas do búzio.

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Texto revisto, publicado antes em 1º de setembro, 2010.
 

Do sentimento trágico da vida


evento da Casa Fernando Pessoa, em Lisboa
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Casa Fernando Pessoa:
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2233

sábado, 27 de setembro de 2014

Pavão vestido de neve

Jorge Adelar Finatto
 
photo: Lucas Finatto
 
O meu filho Lucas, 16 anos, chegou com a insólita notícia: tinha fotografado um pavão todo branco, as penas pareciam tecidas de neve. Eu nunca na vida tive informação de um pavão ou pavoa com as vestes brancas como o gelo. Olhei incrédulo a fotografia: aquela ave era uma pintura. Devia habitar alguma nuvem.

Em que planeta estive todo esse tempo que nunca vi nem sonhei com um pavão branco?
 
Lucas mostrou-me a foto como sendo uma coisa normal, o que me deixou ainda mais admirado. Onde, em que galáxia vivi até hoje, que nem em imaginação cogitei um pavão alvo desse jeito?

Não me resignei só com a imagem. Quis ver de perto aquele ente de outro mundo. Me dirigi até o Hotel-Fazenda Pampas, na cidade de Canela, Rio Grande do Sul, onde vive o ser caiado. Na recepção do estabelecimento disse meio sem jeito que vinha para ver o pavão branco e que gostaria de fotografá-lo, se possível. Alguns hóspedes à volta me olharam como se fosse eu o estranho no ninho.

O pessoal do hotel foi atencioso. Explicaram que não era um pavão, mas uma pavoa, e que ela andava por toda a área do hotel-fazenda, que não é pequena. Teria de caminhar para tentar encontrá-la. Disseram, ainda, que ela costuma dormir num galho alto, na copa de um pinheiro. A Coruja a tiracolo (esse é o nome da máquina photográfica), lá fui eu na desafiadora missão.

(Hoje, 29 de setembro, recebo esclarecedor e-mail do Hotel, dando conta de que é, na verdade, um pavão, e não pavoa, como informado inicialmente. Eis o informe:

Ficamos felizes pela sua visita, mesmo que repentina, mas acreditamos que satisfatória.
Aproveitamos para agradecer as palavras dispensadas em seu blog, em relação ao nosso hotel, e informar que este tipo de pavão é realmente raro. Trata-se de um exemplar do Pavão Albino macho. Acontece que somente agora, por ser bem novinho, ele apresentou as penas na cauda, pois até então parecia realmente uma fêmea.
O que difere as fêmeas dos machos é a sua longa cauda (deles), que quando em descanso pode atingir 1,5 metro e quando armada - excitação à fêmea - apresenta esta maravilha que o Lucas registrou.

Agradeço ao Sandro Goulart Severo o oportuno esclarecimento. Agora segue o texto do post, já retificado.)

Até que encontrei. Caminhava sob o sol com a solene plumagem. Foi bom tê-lo encontrado naquele dia, porque não voltaria a Passo dos Ausentes sem antes vê-lo. Como um primitivo diante do primeiro amanhecer, fiquei a contemplá-lo. Para mim, era uma espécie de milagre. Comecei a tirar fotos à distância, de modo a não incomodá-lo.

photo: j.finatto

Não tive, como o Lucas, a ventura de ver o soberbo leque da cauda aberto. Seria a epifania perfeita para aquela tarde de setembro na semana passada. Mas me conformei. Afinal, nem tudo podemos tocar com os próprios olhos. O Olhar do Lucas me bastou para testemunhar a beleza através da foto que fez com o celular (telemóvel).

Existem mais coisas entre o céu e o meu chapéu do que supõem a minha vã filosofia e o meu ralo conhecimento das coisas da natureza e da vida.

É preciso ter a humildade e a paciência do calado observador para merecer a revelação da beleza. 
 
Agradeço ao Lucas por mais essa descoberta. De agora em diante, toda vez que disserem que existe vida em outros mundos ou que há anjos batendo papo no meu jardim sentados sob o guarda-sol, eu me lembrarei do pavão branco e não vou duvidar. Depois dele tudo é possível.

Felizmente, Deus não cobra direito autoral de quem quer fotografar suas obras-primas.

photo: j.finatto