sábado, 11 de outubro de 2014

Uma cidade e um país com medo

Jorge Adelar Finatto

Guaíba. photo: jfinatto
 
Escutei no rádio que os habitantes de um bairro da zona sul de Porto Alegre, à margem do Guaíba, sofrem com uma média de dez assaltos à mão armada por dia. É um lugar bonito, o rio passa no fundo das ruas. Mas há risco em ir até lá. 
 
Também ouvi que em outro bairro, a cerca de três quilômetros do centro da cidade, os bandidos estabeleceram o toque de recolher, marcando hora para os moradores permanecerem em suas casas, deixando a rua para eles.
 
Não vou me estender sobre delitos praticados com violência em todos os cantos da cidade. Nem sobre a elevada criminalidade no trânsito, com condutores causando graves acidentes por dirigir em alta velocidade e de forma incompatível com qualquer ideia de segurança e preservação da vida. O número de mortos e feridos fala por si.
 
Este é um retrato resumido da realidade que vivemos no Brasil. Não conheço uma família sequer que não tenha sofrido com a violência. A situação se agravou muito nas três últimas décadas.

O Estado e a sociedade têm feito pouco para reverter o caos. A insegurança pública é, hoje, ao lado da corrupção (o mal dos males), da falta de saúde e de educação, um dos principais problemas brasileiros. 

Contudo, os debates políticos, nestes tempos de eleições, apenas tangenciam o assunto. Como se não fosse aqui o problema.  Como se os criminosos não estivessem tomando conta das nossas ruas.
 
A redução da violência passa pela luta contra a indiferença em relação à sorte das pessoas que vivem à margem de tudo. É urgente levar serviços e cidadania às comunidades carentes: creches, postos de saúde, médicos de família, centros comunitários (onde as pessoas possam conviver, ter lazer, esportes e cultura); escolas de tempo integral como os Cieps, postos de Justiça, entrepostos que ofereçam segurança alimentar, etc. 
 
Ao mesmo tempo, urge aplicar a lei penal a quem comete crimes. Atualmente a impunidade vigora. Pune-se por amostragem e esta é muito baixa. Penso que somente uma, em cada dez infrações penais, é apurada e processada (provavelmente estou sendo otimista, o número deve ser inferior a este).

Valorizar os homens e mulheres que trabalham na segurança pública é fundamental. Oferecer-lhes remuneração digna e condições de trabalho adequadas é imprescindível, além de investir no ensino, treinamento e aparelhamento destes profissionais.
 
É necessário construir presídios destinados aos que cometem crimes graves e que necessitam de contenção, conforme determina a lei. Os estabelecimentos penais existentes, além de insuficientes, são degradantes em sua maioria. O Estado deve assegurar tratamento adequado para a ressocialização dos apenados. Com espaço físico, sem o amontoamento infernal hoje existente. Prédios edificados com base numa engenharia prisional atenta às necessidades humanas,  em condições de proporcionar acomodação, ensino, trabalho e convivência com familiares de presos.

A execução penal eficaz é condição essencial no enfrentamento da reincidência criminal.
 
São medidas que custam dinheiro, mas o custo, no final, é nada se comparado com a tragédia diária que assola as ruas. E dinheiro existe. No momento em que se punir a corrupção e acabar com a má aplicação e o desvio do dinheiro público haverá recursos.

É doloroso demais ver as nossas cidades entregues ao medo e à violência. Precisamos recuperar a visão do rio no fundo da rua.
  

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Van Gogh e o negócio da arte

Jorge Finatto
 
Jarra com margaridas e papoulas. Van Gogh, 1890
 
Dizem que na pintura não se deve procurar nada, nem nada esperar, além de um bom quadro e uma boa conversa e um bom jantar como felicidade máxima, sem contar os incidentes menos brilhantes.
Vincent Van Gogh, maio, 1890.¹ 

A vida é um negócio impossível de entender às vezes. Quem gosta de ver justiça no mundo não raro se frustra e perde a graça. Vivemos num planeta habitado por mastodontes ferozes e egoístas.

Leio no jornal que no dia 4 de novembro de 2014, em Nova York, a Sotheby's vai leiloar a pintura Jarra com margaridas e papoulas. Van Gogh fez este trabalho na pequena cidade de Auvers-sur-Oise, perto de Paris, poucas semanas antes de morrer. A notícia informa que o lance inicial não poderá ser inferior a 23,6 milhões de euros, estimando-se que deverá atingir "facilmente" os 40 milhões.

O quadro pertence a "uma importante coleção europeia" e teve antes outros proprietários. Observo que este leilão é só mais um passo no itinerário milionário do comércio que envolve as obras do mestre holandês. O anúncio diz ainda, suponho que para emprestar um tom dramático ao leilão e aumentar o valor do objeto, que as flores teriam sido colhidas pelo pintor no lugar onde, poucos dias depois, viria a suicidar-se.

Trata-se de uma colina na qual Van Gogh pintou também o famoso Trigal com corvos, nas cercanias do cemitério interiorano onde está enterrado ao lado do irmão Theo. Estive lá pela primeira vez em 2002.

Pode ter colhido ali as flores, está bem. Mas de onde veio essa "informação"? Reli as cartas que escreveu a Theo na época e não encontrei referência às tais flores (ele costumava comentar detalhes das pinturas com o irmão).

Quanto ao suicídio, é hipótese praticamente descartada. Conforme minudente análise feita no livro Van Gogh, a vida², tudo indica que o tiro que o matou foi disparado, acidentalmente ou não, por um jovem de Auvers que costumava incomodar o pintor. O desentendimento que levou ao tiro nunca restou esclarecido. Cansado de viver e não querendo causar problema ao agressor e sua família, Van Gogh teria inventado a versão do suicídio horas antes de morrer.

Mas o que eu quero considerar é a brutal ironia das coisas. Van Gogh morreu em rigorosa miséria afetiva e material aos 37 anos, em 1890. Dizem que vendeu um único quadro em vida, A videira vermelha. Teve de seu neste mundo somente a roupa do corpo, velha e surrada, um chapéu de palha e outro de feltro, um cachimbo, uns poucos livros e materiais de pintura, tudo custeado pelo irmão mais novo, Theo, que o sustentou, amorosamente, até o fim.

Morreu num obscuro quarto do Auberge Ravoux, sem janela e com apenas uma mesa, um armário embutido e uma cadeira de palha.

Uma claraboia deixava entrar um sopro de luz no solitário ambiente. Deitado na cama de metal (que rangia) ele via, através da abertura, um punhado de estrelas quando a insônia o fustigava.

photo: j.finatto. último quarto de Van Gogh

A maior riqueza deste homem difícil, temperamental e sofrido foi o que trazia dentro da alma. A pintura foi sua única maneira de comunhão. Fracassou em todo o resto, porque ninguém quer saber dum sujeito esquisito, ensimesmado, de olhos muito vivos e coração ingênuo. Um que anda por aí com a caixa de pintura às costas a pintar e a conversar anjos que só ele vê.
 
Em suma, meu caro Vincent, trabalhaste como um louco (acreditavas que assim poderias expulsar os fantasmas que te assombravam), te esfolaste, te arrebentaste no fundo da caverna úmida e fria que foi tua existência (iluminada pelos tocos de vela quando pintavas à noite em teu triste quarto).

Coloriste com sangue teus quadros, e tudo isso para quê? Depois da tua morte, gente esperta passou a ganhar rios de dinheiro às tuas custas, sem nenhum merecimento, sem nada contribuir, sem qualquer proveito para a sociedade, nenhum gesto solidário. É gente que cultua - não a arte e a dignidade do ser humano -,  mas o dinheiro, a vaidade e o poder.
 
Pois é, meu amigo, como vês, por aqui nada mudou. E vem aí mais um leilão. Continuamos no mesmo mundo infernal onde padeceste. Isso tudo não merece sequer uma lágrima. Talvez desprezo, náusea e um suspiro pelos que, como tu, não têm como se defender da indiferença e da arrogância que habita os corações.
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¹Cartas a Theo. Vincent Van Gogh. Editora L&PM, tradução de Pierre Ruprecht, Porto Alegre, 2007.
²Van Gogh, A vida, de Steven Naifeh e Gregory White Smith, publicado em 2012 no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Denise Bottmann.
A escada:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/09/a-escada.html
 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Presença

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
Me tens aqui lutando
com secas palavras
para iluminar a treva
que nos reúne
em torno do lume
do poema

me tens aqui solidário
beirando a primavera
beirando os trintanos
com raros bens materiais
e nenhum privilégio
de credo ou classe

às vezes louco
às vezes patético
com poucos seres humanos
pra repartir
alguma coisa

me tens aqui poeta
num país injusto e sofrido
caminhando à beira de um rio

a sujeira flutua nas águas
os pobres equilibram-se
em perigosas palafitas

me tens aqui poeta lírico
cada dia mais lúcido

como a primavera
eu invado de repente
a sala adormecida
o coração desabitado

não tenho uma saída
para os dramas
que andam por aí

sequer possuo soluções
plausíveis
para os atrapalhos
cotidianos

o que posso oferecer
e ora ofereço
é essa canção discreta
para dissipar a sombra

um braçada de flores
no inverno

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Cuando Dios hizo la luz

Jorge Adelar Finatto

Colonia del Sacramento, Uruguai. photo: j.finatto
 
Cuando Dios hizo la luz, yo ya debía tres meses.
(Quando Deus fez a luz, eu já devia três meses.)

A maneira espirituosa de ver a vida é o que distingue a calma do desespero. Ante uma situação difícil (elas acabam chegando), o melhor é tentar manter a serenidade e buscar as possíveis saídas (que sempre existem).

O desespero é mau conselheiro, timoneiro de um navio enferrujado, carregado de tristeza e melancolia, que navega torto pelo mar afora rumo ao inevitável abismo.

O bom humor ajuda manter a alegria de existir (essa coisa que começamos a perder ao nascer) e, com ela, a saúde.

A procura da leveza é um belo caminho na luta contra os tombos da vida.

A grande arte: levantar depois de cair.

Essa frase sobre Deus e a luz é mais um dos grafites montevideanos que recolhi na minha última viagem ao Uruguai.

Grafites como esse levam a rir e pensar. Promovem uma reflexão irônica (sem ser amarga) sobre a vida nossa de cada dia. Não vendem coisa alguma, apenas comunicam algo que influencia positivamente o nosso estado de espírito.

Sim, podemos encontrar algum encanto, alguma graça, no ato de viver, apesar das dificuldades.

A tragédia é quando já não conseguimos rir das coisas. 

Fiquei olhando aquele grafite num muro da Ciudad Vieja e pensei: é bom estar vivo, andar a esmo por essas ruas, sem desesperar em relação ao que vem por aí. Ninguém tem o controle de nada.

Depois fui até o café da esquina. Abri o livro que tinha comprado do poeta uruguaio Mario Benedetti e nele anotei a frase com a caneta esferográfica azul.

A tarde estava quase completa, agora molhada pela garoa que começava a cair. Ficou plena com a chegada da taça de café com leite e do pão com manteiga.

Sim, é bom ir vivendo assim dia a dia, hora a hora, café a café, livro a livro, cada instante a seu tempo. Como se tivéssemos essa sabedoria, como se nos tocasse viver a eternidade toda pela frente. Como se não soubéssemos da dor de estar vivo.
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Texto revisto, publicado antes em 05/12/12
Hay vida antes de la muerte?
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/12/hay-vida-antes-de-la-muerte.html
 

Homenagem à Amália


No mês em que se assinalam 15 anos sobre o desaparecimento de Amália Rodrigues, o Museu do Fado (Lisboa) apresenta o concerto de Camané e Mário Laginha - um tributo evocativo do repertório mais emblemático da artista - que terá lugar no dia 9 de Outubro, pelas 21h00.


Museu do Fado (Lisboa) homenageia Amália Rodrigues
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Museu do Fado:
http://www.museudofado.pt/
 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O violoncelo brasileiro de Yo-Yo Ma

Jorge Adelar Finatto
 
capa do disco Obrigado, Brazil

A música tem sido fonte de consolo, inspiração, beleza e esperança na vida de muitos, entre os quais felizmente me incluo.  A arte em geral e a música em particular ajudam a viver e a suportar a escuridão da realidade.

Na orquestra da minha alma,  o violoncelo é o coração.
 
Isso se confirma ao ouvir Obrigado, Brazil, do violoncelista francês-americano Yo-Yo Ma, nascido em Paris, em 1955, filho de pais de origem chinesa. É um desses  discos indispensáveis para a sobrevivência na selva desses dias. Nunca me canso de escutar. É um momento raro, delicado.

Com produção e maioria dos arranjos do argentino Jorge Calandrelli, o cd, gravado em 2003, é algo digno de figurar na melhor discografia da música brasileira e universal.

Um time de músicos de primeira linha confere ao trabalho uma notável qualidade. Entre eles, os irmãos violonistas Sérgio e Odair Assad, Oscar Castro-Neves, Cyro Baptista, Paquito D'Rivera, Egberto Gismonti e Cesar Camargo Mariano.

A fina sensibilidade de Yo-Yo Ma consegue extrair a mais pura sonoridade de composições como Bodas de prata & Quatro cantos (Egberto Gismonti), Alma brasileira (Villa-Lobos), Carinhoso(Pixinguinha), Chega de saudade (Tom Jobim), Brasileirinho (Waldir Azevedo), Dança brasileira (Camargo Guarnieri), entre outras.

Em Doce de coco, de Jacó do Bandolim, encontramos toda a maestria, inventividade e ternura do consagrado virtuose.

O violoncelo de Yo-Yo Ma tem, nesse disco, a cara do Brasil e o espírito oriental. Com luxo de batucada, apito e todo balanço na superior performance de Brasileirinho.

Disco instrumental com apenas duas participações cantadas, na bela voz de Rosa Passos.

A música está entre as poucas coisas que me animam neste Brasil tão injusto e violento dos dias atuais. Ela lembra que temos qualidades que vão muito além da miséria ética e do cinismo em que estamos afundados.
 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Bernardo, eremita

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

 
Bernardo, eremita, foi morar no interior do barco abandonado. Conversa com os peixes. Caminha no jardim das anêmonas. O barco onde vive fica na flor dágua, é uma espécie de búzio de metal, pouco poroso e, de tão velho, exibe na pele as impressões digitais do esquecimento.

As gaivotas bailam no ar azul da manhã, nesses confins de setembro. De boné branco, astrolábio e telescópio, Bernardo descortina os quatro horizontes. Faz silêncio na ilha do búzio. Só se ouvem as ondas. O vento austral estufa a camisa, espalha os brancos cabelos.

Bernardo sai pouco a navegar no escaler de madeira. Apenas ele, os peixes e as aves vivem ali. Costuma remar de vez em quando em volta do búzio de metal, margeando as palmeiras e falésias. Faz parte do seu cotidiano conversar consigo mesmo. Estranho, tem dias que resolve dizer a si o que pensa de certas coisas e acaba ouvindo o que não quer.

Longe do búzio tem um farol pintado de branco e vermelho. Nunca foi até lá, mas admira a persistente luta do faroleiro contra a escuridão. Bernardo queria ter essa força também.

Solitário, pensa: quem sabe um dia descubro alguém pra partilhar a vida e vou-me embora daqui?

As memórias habitam o ermo do búzio.

As gaivotas sobrevoam Bernardo no búzio enferrujado. Às vezes, ele sonha viajar até o outro lado e voltar a viver no continente. Talvez saindo da concha encontrará a moça do cabelo preto escorrido e do vestido branco floreado. Mas já se passaram vinte e cinco anos. Em que coral, em que ilha distante viverá a moça do vestido floreado?

A maré sobe, os peixes nadam em festa em torno do búzio. Bernardo recolhe os instrumentos e retira-se com o boné branco para o interior da côncava morada.

A música primitiva do vento sopra nas trompas do búzio.

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Texto revisto, publicado antes em 1º de setembro, 2010.