terça-feira, 21 de outubro de 2014

Pequenas humanidades

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto

O problema, raro leitor, é que quando a pessoa deixa de gostar de si mesma a vida torna-se muito dura. A dela e a dos que estão por perto. Por isso é do interesse geral que todos sejam felizes ou, pelo menos, o mais próximo disso que puderem.
 
O infeliz arrasta o mundo para o buraco com ele. Qualquer um de nós já passou por isso. Aparece aquela nuvem carregada sobre a cabeça. Essa nuvem se expande com facilidade.

Nessas horas precisamos de uma palavra, um olhar, um aconchego para voltar a viver. Acontece que na vida de aparências em que estamos metidos somos cada vez menos estimulados a falar de nossos sentimentos. Somos esfinges no deserto.
  
Conheço pessoas que nada mais esperam da vida. Perderam a alegria de viver. Sobrevivem a duras penas. Não que queiram. Simplesmente aconteceu. Não sabem o que fazer. Têm medo de viver, de sonhar, de sofrer de novo. Os medos.
 
Esse estado de espírito é um dos principais legados da sociedade materialista, competitiva, agressiva e desumana em que vivemos. O outro é o inimigo em armas. Existe pouco espaço para a mansidão e a solidariedade.
 
Só o afeto tem o poder de nos reconciliar com o próximo e com a vida. Longe do calor humano tudo é o mesmo que nada.

Afeto não tem preço, não se aluga, não se compra, não se vende. Se dá e se recebe.

Não precisamos ser íntimos de alguém pra passar afeto. Isso se faz num gesto de gentileza, cordialidade, atenção.

São coisas simples que, enlaçadas, são capazes de causar uma grande revolução. Está todo mundo esperando e precisando muito dessas pequenas humanidades.

Eu acredito que podemos investir mais na nossa espécie, na reciprocidade dos bons gestos, no afago.

De mãos dadas a vida é outra.

Começo a terça-feira oferecendo a você essas palavras, minha amiga, meu amigo. Elas estão vivas. Cuide bem delas, dos outros, de si mesmo. Você merece. Nós merecemos.
 

Interesse público e curiosidade pública

Frederico Vasconcelos
Repórter Especial do jornal Folha de São Paulo

Frederico Vasconcelos
 
 
Juiz defende autorização do biografado e fixação de prazo para o exercício do direito pelos herdeiros.

Sob o título “O fim da vida privada e da intimidade“, o artigo a seguir é do juiz Jorge Adelar Finatto, do Rio Grande do Sul. O autor trata da polêmica sobre a autorização prévia para publicação de biografias. “O indivíduo tem direito de recusar-se à divulgação de eventos de sua existência privada pela singela razão de que a sua vida é o seu maior patrimônio e ninguém pode nela entrar sem pedir –e obter– licença”, afirma o magistrado aposentado e poeta em seu blog “O Fazedor de Auroras”.
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Lei mais no blog Interesse Público:

domingo, 19 de outubro de 2014

O fim da vida privada e da intimidade

Jorge Adelar Finatto

capa de 1984, livro de George Orwell*
 
Faz algum tempo ouvi alguém proclamar, num programa de televisão, que a vida privada e a intimidade acabaram. Fiquei espantado, até o ponto em que ainda é possível espantar-se com alguma coisa no Brasil. A infeliz declaração ocorreu numa conversa em torno da publicação de biografias.
 
Entre editores e biógrafos, existe a ideia de que deve haver a liberação geral das biografias, independentemente do consentimento do biografado, se vivo, ou de seus herdeiros, se morto. Invocam a favor desta tese a liberdade de expressão e o interesse público (Constituição Federal, art. 5º, IX). Do lado oposto, sustenta-se que devem prevalecer as regras atuais do Código Civil (arts. 20 e 21), que, na prática, condicionam a publicação de biografias à autorização, trazendo, ainda, em prol deste argumento, o preceito constitucional que protege a vida privada, a imagem, a intimidade e a honra (CF, art. 5º, X).
 
Vida privada e intimidade fazem parte dos direitos da personalidade e sua supressão - ou relativização diante de interesses políticos ou comerciais - faz lembrar tristes episódios da história em que os direitos individuais foram fustigados. Os estados totalitários sempre invadiram a vida dos indivíduos, buscando coarctar-lhes a consciência e o querer, para manter-se no poder e anular oposição.
 
A publicação de biografia, especialmente de pessoa viva, sem o seu consentimento, configura, a meu ver, violência moral. O fato de certos países permitirem essa prática, como os Estados Unidos, não significa que seja uma norma razoável, pois afronta os direitos humanos.

A discussão evidencia o quanto determinado setor da indústria cultural, no Brasil, está empenhado na ideia de que não pode haver limitação ao seu negócio e ao lucro, não importando que para isso se violem direitos duramente conquistados.
 
No embate entre direitos de mesma hierarquia, como no caso, há que sopesar os valores humanos, individuais e coletivos, envolvidos, e avaliar as consequências sociais da decisão. É necessário, em primeiro lugar, proteger a dignidade da pessoa humana.
 
Confunde-se o conceito de interesse público com o de curiosidade pública, coisas absolutamente diversas. A mera curiosidade, nessa visão, justifica a apropriação de fatos da vida privada de terceiros e sua publicização. Isso pode até ser rentável economicamente, mas, repito, é uma violência contra o indivíduo.
 
A obra, o trabalho profissional, são públicos, mas a intimidade e a privacidade da pessoa não são, a menos que ela assim queira.

Uma coisa é noticiar jornalisticamente determinados fatos que decorrem do exercício da profissão ou de outros acontecimentos. Outra bem diferente é esmiuçar a vida de alguém desde o nascimento, fazendo de sua existência matéria de comércio sem sua permissão.
 
O indivíduo tem direito de recusar-se à divulgação de eventos de sua existência privada pela singela razão de que a sua vida é o seu maior patrimônio e ninguém pode nela entrar sem pedir - e obter -licença.  Entendo, por outro lado, que a lei pode ser modificada em parte, a fim de fixar-se um prazo para o exercício do direito por parte de herdeiros.

O que mais chama a atenção é ver que o contraditório, neste assunto, praticamente não existe na imprensa. Em suma, a ideia hoje predominante na mídia é de que você, eu, qualquer pessoa, pode ter a história de sua vida escancarada e vendida por qualquer um, a qualquer momento, sem que o principal interessado seja consultado a respeito. Será justo?

Aí eu me lembro do livro 1984, de George Orwell, onde o Estado acaba com a noção do indivíduo como ser dotado de dignidade, liberdade e vontade, e elimina qualquer possibilidade de existência espiritual fora das regras do Grande Irmão. A vida privada e o direito de  pensar e agir livremente desaparecem, criando coisas como a polícia do pensamento, a novalíngua, o duplipensar e a manipulação da história. O Grande Irmão não perdoa os transgressores do pensamento único e os persegue implacavelmente até a destruição.

Talvez o futuro nos reserve algo parecido, a continuar a mentalidade de patrolar direitos fundamentais, aqui e em outros países, em nome da segurança, do controle absoluto, do espetáculo, do dinheiro e de obtusos interesses de governos.

O que espero é que o STF, onde tramita uma ação de inconstitucionalidade contra os arts. 20 e 21 do C. Civil, decida de modo a preservar esses direitos fundamentais que não são meros adereços jurídicos, e que, por isso, não podem ficar sujeitos a pressões econômicas ou políticas de ocasião.  E que o Congreso Nacional, que analisa projeto para acabar com a necessidade de autorização, também leve isso em consideração.

Não se pode, em nome de interesses menores, obrigar alguém a suportar que vasculhem e vendam sua história como batatas na feira, sem seu consentimento. Isto significa invasão e apropriação indevida do patrimômio mais importante de qualquer ser humano: a sua história de vida.
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Sobre o assunto leia também "Biografias versus biografados":
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/10/biografias-versus-biografados.html

*imagem de capa, fonte:
http://www.theenglishgroup.co.uk/profile/

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A guardiã da alma e do tempo

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto, 15/10/2014
 
A máquina de escrever é a verdadeira máquina do tempo.*
Guillermo Cabrera Infante

 
Contigo aprendi a escutar a chuva.

Foi o que fiz, Maria, ontem, na madrugada de insônia. E me lembrei das tardes antigas em que, no inverno, me contavas histórias na velha casa de madeira e eu adormecia ouvindo a tua voz misturada com a voz do vento.

No fundo do pátio, entre os plátanos, passava o arroio, levando o céu e as nuvens no seu espelho, fazendo rumor sobre os seixos, conversando com os canteiros da horta.

O arroio rompia desde o interior verde da mata e levava mundo afora meus barcos de papel e as folhas das árvores.

Nas águas claras a nossa vida se refletia, misturada ao azul do infinito e à cor luminosa dos peixes.

O mundo era cálido e suave como ninho de passarinho.

A casa se enchia com aroma de cravo, mel, açúcar queimado e canela. Quando acordava, sobre a mesa da cozinha estavam os doces que tinhas feito.

Nunca houve um mundo mais terno do que aquele que construías ao meu redor. Nem existiu abraço mais acolhedor e verdadeiro ao teu menino.

Tecias com tuas mãos delicadas o ofício de guardiã do tempo e da minha alma.

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* A Ninfa Inconstante, Guillermo Cabrera Infante, p. 16. Coleção Literatura Ibero-Americana, Folha de São Paulo, 2012.
  Texto revisto, publicado no blog, pela primeira vez, em 25 de agosto, 2012.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Travessa da Espera

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

Quem me espera, a essa hora, na Travessa da Espera, no Bairro Alto, em Lisboa?

Eu passo invisível por vielas retorcidas em mil labirintos. Em cada esquina, uma nesga do Tejo e um fado.

Anoitece, personagens saem das portas como das páginas de velhos livros, ganham as ruas, carregando seu abismo, sua dor, seu sonho, sua dificuldade de viver.

Um fantasma caminha rente às portas das tascas, enrolado na manta da solidão, o chapéu caído nos olhos.
 
As janelas abrem-se para o rumor e os cheiros que vêm da calçada.

Cada um de nós é um romance, mergulhados estamos no livro da própria existência, escrito por não se sabe que caprichoso autor.

Mas quem quer ler as últimas páginas?

Ninguém me espera na Travessa da Espera.

photo:j.finatto
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Texto revisto, publicado antes em 10 de dezembro, 2011.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Lágrimas no mármore

Jorge Adelar Finatto
 
photo: Flávia Boni. divulgação da Prefeitura
Municipal de Porto Alegre*
 
Guaíba e seus afluentes, conjunto de quatro esculturas concluído em 1866 pelo arquiteto italiano Giuseppe Obino, foi retirado da Praça Dom Sebastião, em Porto Alegre, e transferido para os jardins da Hidráulica Moinhos de Vento. As estátuas encontravam-se naquele local desde 1936. O motivo da mudança é preservar as esculturas da ação de vândalos.
 
A obra é considerada o monumento mais antigo de Porto Alegre e foi concebida em mármore de Carrara com cinco esculturas, instaladas inicialmente na Praça da Matriz, junto a uma fonte. Anos depois foram dali arrancadas para dar lugar ao monumento a Júlio de Castilhos. 

A escultura que representava o rio Guaíba desapareceu quando o conjunto foi vendido a uma marmoraria para virar pó, em 1924, o que só não aconteceu devido a um protesto da população. A prefeitura readquiriu as peças, reinstalando-as então na Praça Dom Sebastião ao lado do Colégio Rosário.
 
Das quatro estátuas, duas são figuras femininas, as ninfas, e representam os rios Caí e Sinos. As outras são masculinas, os netunos, e simbolizam os rios Jacuí e Gravataí.
 
A medida adotada pela Prefeitura de Porto Alegre pretende salvar as obras da destruição. Algumas já apresentam partes quebradas (braços e narizes), além de sinais de pedradas. Agora passarão por um processo de limpeza e recuperação no novo ambiente, que é cercado e tem vigilância.
 
Não imagino o que se passa na cabeça de quem destrói o patrimônio que é de todos e carrega a memória da cidade. Memória afetiva para muitos, como no meu caso. Freqüentei a Praça Dom Sebastião e seus monumentos quando estudei no Rosário, entre os anos 1969 e 1975. Estavam ali embelezando o lugar, faziam parte da minha e nossa vida de adolescentes.

Não duvido que as estátuas tenham derramado lágrimas, na quarta-feira, 8 de outubro, quando foram retiradas do ambiente onde viveram nas últimas décadas. Muitas gerações passaram pela praça sob o olhar das ninfas e netunos. Acaso não haverá, nesses seres de mármore, uma espécie de sentimento, imperceptível aos humanos, esse mesmo que falta aos destruidores do patrimônio público?
 
Os indivíduos que invadem espaços comuns para acabar com as poucas e raras obras de arte que temos em nossas ruas, praças e parques prestam um grande serviço à desumanização da cidade. Embora não tenham poder de destruir as lembranças de quem freqüentou esses lugares, transformam em pó as memórias do futuro.
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 Notícia e fotos no site da Prefeitura de Porto Alegre:
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/portal_pmpa_novo/default.php?p_noticia=173063&HIDRAULICA 

sábado, 11 de outubro de 2014

Uma cidade e um país com medo

Jorge Adelar Finatto

Guaíba. photo: jfinatto
 
Escutei no rádio que os habitantes de um bairro da zona sul de Porto Alegre, à margem do Guaíba, sofrem com uma média de dez assaltos à mão armada por dia. É um lugar bonito, o rio passa no fundo das ruas. Mas há risco em ir até lá. 
 
Também ouvi que em outro bairro, a cerca de três quilômetros do centro da cidade, os bandidos estabeleceram o toque de recolher, marcando hora para os moradores permanecerem em suas casas, deixando a rua para eles.
 
Não vou me estender sobre delitos praticados com violência em todos os cantos da cidade. Nem sobre a elevada criminalidade no trânsito, com condutores causando graves acidentes por dirigir em alta velocidade e de forma incompatível com qualquer ideia de segurança e preservação da vida. O número de mortos e feridos fala por si.
 
Este é um retrato resumido da realidade que vivemos no Brasil. Não conheço uma família sequer que não tenha sofrido com a violência. A situação se agravou muito nas três últimas décadas.

O Estado e a sociedade têm feito pouco para reverter o caos. A insegurança pública é, hoje, ao lado da corrupção (o mal dos males), da falta de saúde e de educação, um dos principais problemas brasileiros. 

Contudo, os debates políticos, nestes tempos de eleições, apenas tangenciam o assunto. Como se não fosse aqui o problema.  Como se os criminosos não estivessem tomando conta das nossas ruas.
 
A redução da violência passa pela luta contra a indiferença em relação à sorte das pessoas que vivem à margem de tudo. É urgente levar serviços e cidadania às comunidades carentes: creches, postos de saúde, médicos de família, centros comunitários (onde as pessoas possam conviver, ter lazer, esportes e cultura); escolas de tempo integral como os Cieps, postos de Justiça, entrepostos que ofereçam segurança alimentar, etc. 
 
Ao mesmo tempo, urge aplicar a lei penal a quem comete crimes. Atualmente a impunidade vigora. Pune-se por amostragem e esta é muito baixa. Penso que somente uma, em cada dez infrações penais, é apurada e processada (provavelmente estou sendo otimista, o número deve ser inferior a este).

Valorizar os homens e mulheres que trabalham na segurança pública é fundamental. Oferecer-lhes remuneração digna e condições de trabalho adequadas é imprescindível, além de investir no ensino, treinamento e aparelhamento destes profissionais.
 
É necessário construir presídios destinados aos que cometem crimes graves e que necessitam de contenção, conforme determina a lei. Os estabelecimentos penais existentes, além de insuficientes, são degradantes em sua maioria. O Estado deve assegurar tratamento adequado para a ressocialização dos apenados. Com espaço físico, sem o amontoamento infernal hoje existente. Prédios edificados com base numa engenharia prisional atenta às necessidades humanas,  em condições de proporcionar acomodação, ensino, trabalho e convivência com familiares de presos.

A execução penal eficaz é condição essencial no enfrentamento da reincidência criminal.
 
São medidas que custam dinheiro, mas o custo, no final, é nada se comparado com a tragédia diária que assola as ruas. E dinheiro existe. No momento em que se punir a corrupção e acabar com a má aplicação e o desvio do dinheiro público haverá recursos.

É doloroso demais ver as nossas cidades entregues ao medo e à violência. Precisamos recuperar a visão do rio no fundo da rua.