sábado, 22 de novembro de 2014

A tal perfeição

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
Eu tento me livrar da cachaça da perfeição. Quero abandonar esse vício triste. Como todo vício, ele se afeiçoa a nós de um modo visceral. Ou então somos nós que nos apegamos a ele como uma criança se apega aos brinquedos coloridos de uma pracinha de bairro.
 
Deve haver um caminho do meio entre a impossível perfeição e a pachorra. 
 
A perfeição do mundo está em não haver perfeição alguma. Necas de pitibiriba, como se dizia antigamente. Tudo nasce meio torto, guenzo (essa palavra também é de antanho, como a palavra antanho).

Não existe a mulher perfeita nem seu correspondente masculino. Não há obra de arte tocada pela perfeição.
 
Estou entre os diletos filhos da ignorância. Alguém que vive atrás de livros como se eles tivessem alguma resposta sobre as questões fundamentais da existência. Não têm.
 
No máximo, o que os livros nos dão é o prazer da leitura, a beleza do texto, emoção de uma história ou poema, distração. Informação e conhecimento, mas isto ainda não é sabedoria. Uma boa parte do que se lê é depois esquecida no sótão. A memória se encarrega de dispensar o que não é importante.
 
Quando eu era menino, vivi a ilusão de que os livros tudo sabiam e tudo podiam. Até a morte e o esquecimento eles seriam capazes de revogar. Neles se concentrava, aos olhos do menino, a essência da sabedoria, da bondade e do imaginário da humanidade, acumulada durante milênios.
 
Depois vim a entender que não era bem assim. Conheci pessoas sábias que nada sabiam de livros. Tinham a sabedoria adquirida da experiência de vida, da capacidade de observação e de discernimento. Um saber proveniente não só da mente, mas sobretudo do coração, capaz de compreender a natureza humana.
 
Salomão, filho de Davi, é considerado um dos homens mais sábios que já existiram, se é que não foi o mais sábio de todos. Quantos textos terá lido inscritos em papiro e pergaminho? Um, dois, dez? Contudo, com a sabedoria que Deus lhe deu, governou o reino de Israel, o mais próspero e resplandecente de seu tempo, durante 40 anos, entre 1037 e 998 antes de Cristo.

Disse Salomão: "De se fazer muitos livros não há fim, e muita devoção (a eles) é fadiga para a carne". (Eclesiastes 12:12)
 
Isso não significa negar importância aos livros, a própria palavra Bíblia significa coleção de pequenos livros (os 66 livros que a compõem). Mas a sabedoria está longe de limitar-se a eles. Há outros fatores como a capacidade de pensar e de agir, a fé, a bondade, o esforço em busca de harmonia e justiça.
 
A tal perfeição não existe. A presunção de ter a verdade absoluta é um perigoso caminho que pode conduzir à intolerância, ao fundamentalismo e até ao terrorismo. Como seres imperfeitos, podemos ter partes do conhecimento. Só Deus tem toda a verdade.
 
Imperfeitos e carentes somos. Viver nunca é ensaiado, é apresentação única e definitiva. Viver é sério demais. Difícil suportar tanto peso se não temos o dom da perfeição. Chega uma hora em que temos que rir um pouco disso tudo.
 
É preciso distrair-se de si mesmo, viajar para longe da angústia, esquecer problemas e dramas. Não somos perfeitos e, no entanto, viver nos exige muito e cobra o tempo todo. 
 
É preciso levar a alma a passear nos campos e montanhas, dar-lhe ar puro, chuva e sol, cor e cheiro de natureza, ruído de córrego correndo sob o azul.

Ninguém sabe nada. A condição de aprendiz diante dos mistérios da vida ainda é a que melhor nos acode. A perfeição é só uma palavra em busca de sentido.
 
(Enquanto escrevo, o sino da pequena igreja, entre as árvores, começa a bater, é fim de tarde. O som de um sino (de metal ou bambu) é música espiritual. Deve haver sinos espalhados pela Via Láctea, badalando no ar, para encher com sua melodia os terrenos baldios da solidão.)
 

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A palavra

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto, 18/11/2014
 
Eu não costumo me queixar da vida. Primeiro, porque não adianta muito. As pessoas estão muito ocupadas com seus próprios problemas, não há tempo para parar e ouvir o outro. Se matar não vale a pena. A gente tem que trabalhar honestamente pra tentar melhorar as coisas.
 
Mesmo num país com a tibieza moral e ética do Brasil, principalmente nas altas esferas de poder, ainda é possível procurar um lugar ao sol sem roubar nem pisotear os outros.
 
Não me queixo, antes de tudo, porque tenho muito mais razões para agradecer.

A vida é difícil, todos sabem, mas para alguns exagera nas tintas. Tem gente que não consegue coisas como ter um trabalho, uma família, uma casa, alguns sonhos tornados realidade. É só dureza, sem cor, sem literatura. Mas enquanto se está vivo tem-se de buscar sempre.
 
Eu não reclamo, raro leitor, só tenho a agradecer. A Deus e a pessoas generosas que encontrei pela vida, que me ajudaram a ser, a crescer. Pensando bem, não foram poucas. Pensando bem, o mundo tem muita gente que vale a pena. 
 
Mesmo nos momentos mais duros, escuros, uma luz sempre se acendeu na estrada. Sou grato.
 
Nunca posso perder de vista esta palavra: gratidão. Está no Aurélio: gratidão (do latim tardio: gratitudine), substantivo feminino. 1. Qualidade de quem é grato. 2. Reconhecimento por um benefício recebido; agradecimento, reconhecimento.
 

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Os sem-leitor

Jorge Adelar Finatto 

fonte da photo: jornal Público, Portugal


Existe um ser cada vez mais raro na face do universo.

Astrônomos passam as noites em claro, mirando os telescópios para o desconhecido, na incansável busca.

No momento em que traço essas linhas, inúmeras expedições científicas partem pelo cosmo à procura dele.

É quase tão belo como a estrela da manhã. É mais luminoso que a aurora boreal. É mais precioso que o mais raro diamante.

Por causa dele, blogueiros do mundo inteiro invadem as noites oferecendo seus serviços. Impressionantes editores perdem o sono à sua menor lembrança.

O ser em questão - o misterioso - é o senhor da lista dos mais vendidos, o sonho dos famélicos e maltrapilhos fazedores de livros. Por ele, Cervantes e Thomas Mann foram às vias de fato, Dom Quixote e Hans Castorp romperam relações.

Macunaíma, Anjo Malaquias e Urutu Branco não trocam mais e-mails. É o início do fim dos tempos, ou quase isso.

Os cafés literários perderam o sentido sem a poderosa presença do desaparecido.

As livrarias estão repletas de musas e personagens desempregados. Seria cômico, não fosse o fim de uma era.

Onde andará aquele que é a razão do meu trabalho?, perguntam-se miríades de escritores e poetas, na fria solidão.

A Academia Sueca devia criar o Prêmio Nobel de Leitura, em homenagem a ele, o inefável.

As noites de autógrafos, hoje, só são bem-sucedidas quando é ele quem assina os livros, enquanto os autores esperam a vez na infinita fila.

Não vereis dele mais que o fugidio vulto esgueirando-se no labirinto dos blogs e soturnas bibliotecas.

No entardecer de ontem, cerca de 150 bardos - entre maus, razoáveis e bons - cometeram suicídio no cais de Porto Alegre. Sob o olhar aterrorizado das mães e gritos desesperados das musas, os suicidas foram ao fundo do rio com grossos volumes amarrados ao pescoço.

Mais de mil caravelas estão partindo a essa hora de Lisboa em busca de um rastro do indizível em alto mar.

O impensável está acontecendo.

Escritores enlouquecidos batem-se em sangrentos duelos nas praças e ruas da cidade.

As últimas notícias dão conta de que livros famintos estão atacando e devorando escritores. Invadem seus locais de trabalho e, com requintes de crueldade, cometem o bárbaro crime.

Aproveitam-se da solidão literária das vítimas, que começa no ato de criar e se estende até o texto sem leitor, e as destroçam.

Depois só restam folhas brancas, embebidas em sangue, espalhadas no chão.
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Texto revisto, publicado neste blog em 12 de fevereiro, 2010.

domingo, 16 de novembro de 2014

Vive-se

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto


Vive-se. Do jeito que dá. Às vezes, até mesmo sem nenhum jeito se vive.
 
Porque a única coisa realmente urgente e importante é manter-se respirando. O resto é o que vem depois. E o que vem é neblinoso, imponderável, se administra. Ou não.

Convivemos com a dor, a falta de amor, de encanto, de beleza, de dinheiro, a falta eterna de sentido das coisas. Enquanto isso, vive-se.
 
Vive-se em Porto Alegre, em Paris, em Sierre, em Lisboa, em Cacique Doble. Vive-se no silêncio de Rarogne e de Passo dos Ausentes. Vive-se à beira do Arroio Tega e nas cercanias do Castelo de Muzot.

Vive-se em toda parte. Principalmente, no fim do mundo.

Vive-se em secreto e em surdina, com raros, distantes amigos. Mas vive-se.

Vive-se apesar da corrupção que assola o Brasil e destrói tudo o que se tenta construir e até o que não se construiu como a floresta Amazônica e a Mata Atlântica.
 
O mais que se faz é viver, raro leitor, apesar de tudo. De janeiro a janeiro. Com sol e com chuva. Com alhos e bugalhos. Vive-se.

Calma, a realidade não merece o teu suicídio.

Vive-se na sexta, no sábado e, eventualmente, no domingo. Segunda é um enigma que nem a filosofia, nem a poesia e muito menos a astronomia conseguiram resolver. Mas o fato é que se vive.
 
Vive-se apesar do lixo na rua, do odor nauseante de combustível na cidade, do esgoto escorrendo impune para o rio.

Vive-se em que pese o velho, malcheiroso, insuportável e persistente racismo.

Vive-se olhando os veleiros que fogem para o mar.
 
Vive-se diante do olhar atônito das crianças abandonadas.

Vive-se a nostalgia das casas sem eletricidade.
 
Vive-se sem embargo dos livros não lidos. Vive-se não obstante todos os livros lidos.

Vive-se com as folhas secas do outono nos bolsos do velho casaco e na palma das mãos.

Vive-se sem nada a perder e mesmo depois de perder tudo.
 
Vive-se sabendo que nunca mais se encontrará aquela mulher para pedir-lhe um olhar, um abraço. 
 
Vive-se de mal a pior, sem eira nem beira.

Vive-se apesar dos mortos nos olhando dos retratos, dos lugares vazios na mesa.

Vive-se a vida invisível dos anônimos, dos solitários, dos desmemoriados.

Vive-se de passagem, uma única vez, com o coração doendo entre as mãos. Mas vive-se.
 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Enquanto a morte não morre

Jorge Adelar Finatto

 
photo: j.finatto

 
Tinha que haver um jeito de trancar a morte no porão, deixá-la encerrada no escuro pra sempre, até virar pó, como ela gosta de fazer com as pessoas.
 
Prisioneira do porão, sem nenhuma fresta de luz e ar, a morte nunca mais poderia matar ninguém. 
 
Morta a morte, estaríamos livres, de uma vez por todas, do grande vexame que é morrer. Morro de pena de quem vai perder a vida, isto é, todos nós. O certo talvez é ninguém mais morrer. Mas que sei eu.

Só que pra todo mundo viver era preciso não existir a maldade que existe no ser humano.

Nenhum homem e nenhuma mulher jamais souberam explicar esse mistério que é deixar de viver. Dizem alguns que a morte dá sentido à vida, o que eu duvido muito.

A morte alimenta-se da morte alheia e não há nela sentido algum.

O que dá sentido à vida é a própria vida.
 
A morte é um buraco escuro dentro da escuridão. Às vezes um monte de cinzas que se espalham ao vento e ninguém sabe onde vão parar. 
 
Eu queria encontrar uma maneira de matar a morte. Depois passaria o resto do tempo infinito ocupado só em viver.

Morrer é um péssimo hábito que herdamos dos antepassados e do qual não conseguimos nos libertar.
 
Para os agnósticos e os céticos, depois da morte é a treva absoluta. Não creio.
 
Enquanto a morte não morre, gosto de pensar que haverá ressurreição para aqueles que não fizeram barbaridades com os outros. E vou vivendo.

Mas eu sou apenas um sujeito simplório. Alguém que acredita na claridade absoluta.
 

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Cantiga de mar e vento à moda de Camões

Jorge Adelar Finatto
  
photo e barco: j.finatto

"Saudosa dor, eu bem vos entendo" *
Luís de Camões

Navegar é despedir-se um pouco cada dia.
 
No mar da terrível procela, vinha eu no meu desditoso barco, enfrentando a fúria sem compaixão do trovão, do raio, do vento e da melancolia.
 
Vinha pelejando nas altas ondas contra a dor e o pó do esquecimento.
 
Só eu e meu coração à mercê de tudo que fere a alma e endurece o tempo. 
 
A bordo da frágil nau do sonho me lancei ao mundo. Entre feros e mortais penedos, procurei descortinar-vos, Açores e Madeira, nos rigores do profundo oceano. Mas nada encontrei, só mais abismo, medo e desengano.
 
O tenebroso rugido da ventania arremessava as vagas contra tão despojada embarcação.  
 
Triste fado meu que fez de mim o solitário do rochedo.
 
De repente, no horror da tempestade desumana, vi surgir na polpa salgada, álgida e insana das águas o brilho marfim e rosa de um búzio. A custo recolhi-o. 
 
Escutei então aquela voz que de longe vinha.
 
Era a voz da minha amada que por encanto eu ouvia. Uma voz moça e já extinta.

Queria saber de mim, onde eu andava, com quem estava, o que fazia. Imaginava se eu ainda sorria. 
 
Disse-lhe que não fizesse cuidado do vazio em minha alma. Eu era só mais um barco seguindo em meio à solidão do grande mar, desviando a fraga imensa. Era tudo o que em mim havia.
 
Quisera nunca ter perdido do seu abraço a moradia, musa minha que partiste mal surgia a aurora em nossa vida.
 
Viver pra mim, hoje, é despedir-se um pouco todo dia.
 
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*Lírica. Luís de Camões (1524-1580). Verso do poema Cantiga (2), p. 28. Editora Itatiaia e Editora da Universidade de São Paulo, 1982.
 

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A canção do efêmero

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
O jardim explode em pétalas, aromas, caules, ramos e cores em novembro dos prodígios.

As flores que aparecem na capa do blog por esses dias são do jardim aqui de casa. Nessa época são muitas e variadas, de rosas a orquídeas, de belas e humildes hortênsias a ternos e sorridentes gerânios, sem falar nas primaveras, nas cerejeiras, nos copos-de-leite e tantas outras.

Nunca, como neste ano, a flora caseira esteve tão iluminada. Uma celebração de vida e de fecundidade. O jardim canta a canção do efêmero: tudo nele é transitório. Mas há, também, no seu território, um contínuo renascer.


photo: j.finatto

Sinto-me bem ao conviver com as flores, ao observá-las, fotografá-las, ao aspirar-lhes o perfume suave.

É uma espécie de terapia floral o querer bem a esses seres tão passageiros, generosos e delicados.

As flores do meu jardim renascem todos os dias com a promessa e a esperança das novas seivas. Que seja assim também em nossas vidas.

photo: j.finatto