sábado, 6 de dezembro de 2014

Mar azul em volta da casa

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
Quem disse que no alto da serra não tem mar? As hortênsias fizeram um mar azul em volta de casa. Começaram a chegar em novembro, foram ganhando corpo e forma.

Refinaram as cores e agora é isso que se vê. Estão grandes e ostentam mil nuances entre o claro azul e o roxo, sem esquecer o encanto da hortênsia cor-de-rosa.

A hortênsia é uma mulher da meia-idade, bonita e discreta, que faz sonhar quando passa com sua sombrinha na tarde de sol.

photo: j.finatto

O mundo em ruínas e eu aqui a falar de hortênsias, dirá, talvez, o raro leitor. Peço desculpa pela evasão. Mas eu não sei o que dizer diante de tanta barbaridade.

Não vou meter minha colher torta no caldeirão apenas pra mostrar que estou contrariado e envergonhado com o triste teatro humano. De fato, o espetáculo é de fazer chorar, começando pela Terra de Vera Cruz.
photo: j.finatto

Sou só um singelo cronista de cidade do interior que não consegue domesticar sequer os próprios fantasmas. Perdoai.
 
As cores da hortênsia mudam a cada dia, na medida em que a planta amadurece. O sol intenso não é bom para a delicada inflorescência. Como existem muitos plátanos no entorno da casa, eles formam como que um guarda-sol protetor.

photo: j.finatto
 
Uma insolação suave é tudo de que necessitam e gostam as hortênsias. São exuberantes sem ser vulgares. Guardam uma discrição que vem de seus ancestrais do Japão e da China.
 
Nunca as hortênsias floriram tanto como neste ano por estas bandas. Nunca o azul foi tão azul e tão vívidas suas variações.  
 
photo: j.finatto

A presença das hortênsias nos remete a uma espécie de paz rural que se traduz em conforto espiritual.
 
As hortênsias embelezam e dissipam as trevas do ambiente. É bom abrir as janelas e encontrá-las, é bom tê-las por perto e navegar pelo mar azul de suas ondas.
 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Porta aberta

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Leio que o mundo dos blogs está à beira do precipício. Um escritor que costumo ler escreveu que estava pensando em abandonar o seu blog por falta de leitores, achava melhor fazer outra coisa.

Faz tempo que ele não publica um texto novo e eu, como seu leitor, sinto falta. Há uma espécie de velório antecipado deste meio de comunicação, democrático por excelência.

Eu detesto velórios. Prefiro as salas de espera das maternidades.
 
Muitas pessoas que têm blog (a maioria, acredito) não dispõem de outra opção, isto é, não têm onde publicar seus textos nos meios impressos tradicionais.

Os blogueiros, com não muitas exceções, estão fora da era de Gutenberg, de onde foram expulsos pela falta de interessados em seus escritos. Faço parte deste time.

Acontece que tem gente escrevendo bem e fazendo boas coisas nesse "velho e moribundo" mundo dos blogs. Não estamos falando, portanto, de falta de páginas interessantes.

Eu vim para a blogosfera impelido pela oportunidade que a internet proporciona, fazendo do indivíduo seu próprio editor, independente de intermediários. Nenhum outro meio é tão instantâneo e livre.

Me acostumei ao novo modo de publicar, que além de tudo dispensa a derrubada de árvores para fazer papel e é extremamente acessível a todos em qualquer lugar do planeta.

Isso não significa que abandonei os livros de papel. Pelo contrário, cada vez amo mais os meus livros. Sou um fantasma do mundo de Gutenberg. Enquanto publico no blog, meu espírito vagueia por sebos e livrarias como alma penada.

Gosto de sentir a textura do papel entre os dedos, o cheiro inefável das folhas. Aprecio levar o livro aonde vou, sinto falta de tocar no objeto.

A minha biblioteca caseira está cheia e quase não tem mais espaço para novas aquisições. Os da família se entreolham toda vez que chego em casa com um novo volume. Devem se consolar, talvez, pensando: ao menos ele não tem outros vícios (que se saiba).

Os livros e a leitura são uma doce e vital cachaça. Como disse Drummond, no poema Explicação, todo mundo tem sua cachaça. Não sou avesso a novidades e estou pensando a sério em comprar um leitor eletrônico de livros.

Não sei se a era dos blogs está no fim. Mas uma coisa eu sei: leitores não vão deixar de existir. Onde houver bom conteúdo haverá leitores por perto.

Mesmo um blog primitivo como este, só de textos e fotografias, encontra alguns interessados. Então, enquanto houver alguém aí do outro lado, estarei por aqui com a porta aberta. 
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Texto publicado em 29/10/2013. 

O quarto alugado


 

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Escritores desconhecidos

Jorge Adelar Finatto

Ana Luisa Escorel. photo de Mônica Imbuzeiro, O Globo
 
Um dos prazeres dessa vida interiorana é, aos domingos, ir até a estação rodoviária de Gramado buscar a Folha de São Paulo. Faço isso às vezes. Encomendo pelo telefone e, depois, pego a Destemida e me vou pela estrada até a cidade do famoso festival de cinema serrano. O que a gente não faz por um jornal...
 
Tem suas compensações. Por exemplo, o caderno Ilustrada desse domingo (30/11/2014) trouxe uma interessante matéria de capa, intitulada Ilustre desconhecida. A reportagem informa que a escritora Ana Luisa Escorel, de 70 anos, venceu, no início de novembro, o Prêmio São Paulo de Literatura com seu romance Anel de Vidro.
 
A premiação, a mais importante em remuneração do Brasil (R$ 200 mil), deixou atônito, segundo a matéria, o meio literário. Ou, pelo menos, alguns críticos e escritores que desconheciam a obra ficcional da autora, resumida a dois romances, ambos publicados pela Editora Ouro sobre Azul, por ela fundada, em 2004, e dirigida. O primeiro livro foi O Pai, a Mãe e a Filha, quando contava 68 anos.
 
Ana Luisa é designer formada pela Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro. Declarou ela à repórter Gabriela Sá Pessoa que não se considera "escritora profissional" e que nunca fez parte do meio literário, situando-se nele como uma "outsider" (estranha).

A romancista é filha de Antonio Candido, 96 anos, um dos mais lúcidos intelectuais brasileiros, considerado fundador da crítica literária nacional, e de Gilda de Mello e Souza (1919-2005), ensaísta, filósofa  e influente professora de estética da Universidade de São Paulo. Por parte da mãe, Ana Luisa é prima do escritor Mário de Andrade. E é casada com o cineasta Eduardo Escorel.
 
O que chama a atenção no percurso da autora, a meu ver, é o que representa em termos de estímulo a todos aqueles que, não obstante escrevam com esmero, vivem no anonimato. Principalmente os que têm idade mais avançada.
 
Pessoas que escrevem com dedicação e qualidade e que têm raros leitores, às vezes nenhum, além da família e de alguns amigos. Ana Luisa é exemplo de escritora que faz seu trabalho sem a urgência do reconhecimento imediato, e isto é alentador num tempo em que a maioria busca sofregamente às luzes da ribalta.

A boa literatura, na verdade, independe da idade do escritor. A permanência de uma obra transcende a biografia do criador. O texto vale por si.
 
Há vários outros escritores importantes que surgiram aos olhos do público leitor no tardio da vida. A grande poeta Cora Coralina (1889-1985) publicou, pela primeira vez, aos 76 anos, em 1965. Foi quando veio à luz o livro  Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, uma obra-prima. Desenvolveu notável atividade literária, silenciosa na maior parte do tempo. Disse ela:
 
Mais fácil, para mim, escrever um livro do que publicá-lo.*
 
Ana Luisa Escorel, de quem eu nunca li nada nem ouvi falar, surge no tempo certo, no seu tempo, com a credencial da persistência, da paciência, da humildade, do trabalho silencioso e fecundo. Com sabedoria, afirmou à jornalista da Folha:
 
Quando falo que sou tardia é para incentivar quem também seja.
 
Na próxima ida à livraria, claro,vou atrás de Anel de Vidro, sem mais perda de tempo.
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*Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, 4ª edição. Cora Coralina. Global Editora, São Paulo, 1983, pág. 35.
 

domingo, 30 de novembro de 2014

O raio perfumado

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
De como Claudionor, o Anacoreta, emigrou para o planeta FAJ 376, na constelação de Rio Erídano, a 35 milhões de anos-luz. O embarque na nave interestelar em plena Praça da Ausência, sob o olhar incrédulo dos 495 habitantes da cidade. Onde se conta como o fantasma do poeta Rainer Maria Rilke, em suas aparições noturnas na Biblioteca Pública Municipal de Passo dos Ausentes, foi o causador da grande viagem e se dão a conhecer outros eventos.
 
Faz 10 anos que Claudionor, o Anacoreta, afastou-se do mundo. Foi viver em solidão numa caverna do Contraforte dos Capuchinhos. Faz 10 anos que Mocita de La Vega ficou só e não teve mais ninguém depois que ele se foi.

Claudionor  tornou-se um místico conhecido e respeitado em toda a região. Vive em estado de contemplação desde a desilusão amorosa,  aos 20 anos.
 
Eles jamais revelaram o que motivou o rompimento. Foram inseparáveis desde a infância até o fatídico dia em que Claudionor surpreendeu Mocita nos braços do fantasma do poeta Rainer Maria Rilke, na Biblioteca Pública de Passo dos Ausentes, onde ela é bibliotecária.

A paixão literária transfigurou-se entre a jovem guardiã de livros e o bardo. Aparições freqüentes de Rilke na Biblioteca afetaram o coração de Mocita, apaixonada pela obra do poeta, em especial pelas Elegias de Duíno, as quais sabia de cor. O volátil não resistiu aos cabelos negros, à pele alva como o luar e à sensibilidade da bibliotecária que traz no corpo os contornos de um violão.

Claudionor sentiu-se desmoronar depois do que viu - segundo dizem as línguas ferinas. Despediu-se da mãe, a costureira Helena dos Santos Leaens e Bragança, numa cinzenta manhã de julho de 2004. Disse que ia procurar mudas de jasmim na mata, a principal paixão de sua vida depois de Mocita. Nunca mais voltou.

Um ano ficou sumido. Nada menos do que cinco expedições saíram à sua procura. Rastrearam-no pelas matas e até mesmo no fundo de abismos. Concluíram que ele tinha se atirado num dos muitos penhascos que cercam os Campos de Cima do Esquecimento. O corpo fora devorado por onça ou leão-baio, feras que ainda habitam a profundeza da Mata Atlântica.

Isto foi assim até o dia em que o pombo-correio dos Capuchos do Perpétuo Amanhecer trouxe à cidade um bilhete do superior da ordem informando que Claudionor estava vivo. Vivia em reclusão numa caverna não distante do mosteiro. No informe especificou as cooordenadas do lugar onde o místico se encontrava, "vivendo uma vida nova, voltada ao silêncio e ao encontro com Deus e os Anjos, nas altas esferas do reino espiritual".

A caverna de Claudionor situa-se no alto de uma chapada no Contraforte dos Capuchinhos, a 2 mil metros de altitude. De lá, olhando-se para leste, tem-se a visão azul e distante do Oceano Atlântico. Flores silvestres margeiam o caminho de pedras e grama que vai dar na porta da austera habitação.

A barba espessa e a cabeleira negra sobre a túnica branca escondem o homem ainda moço.
 
Em julho de 2014, outra mensagem de Dom Eleutério, o Benigno, foi entregue pelo pombo-correio na Sociedade Histórica, Geográfica, Literária, Artística, Astronômica, Antropológica, Esportiva, Recreativa, Geológica e Antropofágica de Passo dos Ausentes, aos cuidados de seu presidente, o filósofo Don Sigofredo de Alcantis.

Enquanto Don Sigofredo comentava o conteúdo da mensagem com Mocita, secretária da sociedade, um fato estranho se passou nos céus da cidade.

Um objeto em forma de bola, achatado nos polos, com cerca de 20 metros de diâmetro por 10 de altura, surgiu do nada e cruzou lentamente o espaço aéreo de Passo dos Ausentes. Movia-se sem qualquer ruído. Depois de sobrevoar o casario e a igreja, parou sobre a Praça da Ausência, a 30 metros do chão. Era uma tarde fria de céu claro, às 4h em ponto. Muitas pessoas foram até a praça ver o que se passava.
 
A nave tinha cor azul-clara. Uma luz branca e gelada pulsava no interior. Possuía seis escotilhas distribuídas circularmente na parte superior. Uma espécie de tubo de alumínio projetou-se até o centro da praça, ao lado do chafariz. Alguém começou a descer por ele num estreito elevador. Era um homem vestindo macacão preto com um distintivo cor de prata no lado esquerdo do peito. Havia no símbolo coisas escritas em caracteres indecifráveis.

Saiu do tubo e disse que queria falar com a autoridade local. Imediatamente buscaram Don Sigofredo. O filósofo aproximou-se levemente arqueado, com a bengala, o terno preto, cabelo e cavanhaque brancos e bigode torcido para cima nas extremidades.

- Boa-tarde, a que devemos a honra da visita - disse Don Sigofredo ao viajante do espaço, com ar de quem já vira coisas suficientes nos Campos de Cima do Esquecimento e não se deixava mais impressionar.

O alienígena retirou os óculos muito grandes. Só então se percebeu que seus olhos eram enormes, do tamanho de uma bola de tênis, e a testa muito maior que a humana.

- Desculpe-nos chegar dessa maneira, sem aviso. Recebemos a missão de vir a este lugar buscar um dos seus que pretende conhecer a nossa civilização. Somos do planeta FAJ 376, da constelação Rio Erídano, interior da galáxia espiral NGC 1637, a 35 milhões de anos-luz do seu planeta.

- Ora bem. Quem é a pessoa que quer nos deixar para ir tão longe, poderia nos dizer?

- Sou eu, Don Sigofredo - disse uma voz na entrada na praça. Era Claudionor, o Anacoreta, que trazia o alforje ao ombro, a longa túnica branca com botões brancos abotoados até o pescoço.

- Fiz contato com esta civilização após anos de meditação. Conversamos com o pensamento. Depois do primeiro contato, Palomar Boavista me ajudou com seu telescópio a localizar no céu a espiral NGC 1637. Eles me convidaram para uma viagem. Vou mas pretendo retornar um dia.

- Que maluquice é essa, menino, sair por aí assim?- interpelou aflito Don Sigofredo. E sua velha mãe, e nós? 

- Não vá, Claudionor - disse uma mulher que se aproximou ofegante entre as magnólias. Era Mocita.

- Claudionor, por favor, não - continuou ela. Temos muito que conversar. Não quero mais viver longe de ti. Queria ir dizer isso lá na tua caverna. Eu sei que faz muito tempo. Mas isso assim não é vida. Quanto tempo perdido, quanta vida morta por nada! - exclamou, enquanto lágrimas escorriam dos seus olhos.

- Peço perdão a todos, mas tenho de partir. Faz parte de um projeto espiritual. Quero conhecer esta civilização que é muito desenvolvida. Vou te levar no coração, Mocita. Nunca te esqueci.  Peço que olhem por minha mãe enquanto estiver fora.

- Senhores, temos que ir - disse o viajante do espaço. São 35 milhões de anos-luz!

- Não vá, Claudionor. Não desista de nós - insistiu Don Sigofredo.

O visitante olhou para Claudionor e ambos entraram no tudo, que se fechou e retornou com ambos à nave. De uma escotilha, Claudionor acenou lá de cima.

A nave distanciou-se um pouco e, em seguida, transformou-se numa grande centelha dourada que disparou pelo céu e desapareceu.

Alguns meses depois, o pombo-correio dos Capuchos do Perpétuo Amanhecer trouxe um recado de Dom Eleutério. Dizia que recebera uma mensagem de Claudionor informando que estava bem no novo lugar. Um mundo diferente. Mas nem tanto.

- Não era bem o que ele esperava, pois lá também há extratos sociais, inclusive com privilégios de classe.  Apesar de tudo está aprendendo e é bem tratado. Pretende, sim, voltar a Passo dos Ausentes, mais cedo do que se imagina. Anunciou, por fim, que no dia 6 de julho de 2014, às 21h, enviará um sinal até nós pelo cosmos.

No dia marcado, ou melhor, naquela noite, nos reunimos no jardim das camélias da Sociedade Histórica à espera do sinal. Na hora designada, um longo fio de luz amarela projetou-se desde o infinito em direção a Passo dos Ausentes.

O raio luminoso passou sobre a cidade clareando tudo e retornou ao desconhecido de onde viera, desfazendo-se em segundos.

Um suavíssimo aroma de jasmim ficou no ar por alguns minutos.

Então tivemos certeza de que Claudionor voltará um dia.  
 

ilustração: Maria Machiavelli

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Crônica do trem fantasma

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto

 
O trem noturno avança noite adentro. Antigamente era esperado por todos com grande ansiedade em Passo dos Ausentes, nas noites de sexta-feira.
 
Que trem será esse que escuto agora, se já não há trilhos, se o mato tomou conta dos dormentes da velha estrada de ferro?
 
Escuto-o passando ao longe com suas pesadas rodas de aço. Faz um túnel na neblina e espalha a fumaça branca em direção às estrelas.
 
O vetusto trem trazia jornais, cartas, viajantes, mercadorias, animais e até fantasmas. Vinha desde Porto Alegre, subia a Serra entre pinheiros e penhascos, atravessava pontes.

Quando chegava nos Campos de Cima do Esquecimento, não tinha mais fôlego pra nada após se arrastar pelas encostas das montanhas, contornando abismos.
 
Que traz esse trem que escuto nas entranhas do vento? 

São fantasmas que retornam para tomar posse de seus lugares à mesa das casas abandonadas. Seus apagados rostos procuram espelhos, os calados passos vêm em busca de corredores.

Ouvimos de suas bocas o longo e melancólico silêncio do nosso desamparo.
 
Enquanto estou na cozinha, bebendo café com leite e comendo um pedaço de pão com manteiga, ouço o trem noturno deslizar sobre trilhos invisíveis às quatro da manhã.

O vento de fins de novembro açoita a solidão.
 

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O lavrador de Ipanema

Jorge Adelar Finatto
 
Rubem Braga. fonte: divulgação

Não, esta crônica não pretende salvar o Brasil. Vem apenas dar testemunho, perante a História, a Geografia e a Nação, de uma agonia humilde: um córrego está morrendo. E ele foi o mais querido, o mais alegre, o mais terno amigo de minha infância.*

                                          Rubem Braga

Quando vou a Porto Alegre, costumo visitar uma livraria que tem, logo na entrada, uns caixotes com livros em promoção. Descobri esse espaço não faz muito tempo e o incluí no meu roteiro literário.
 
Nos caixotes há centenas de volumes e é preciso ter paciência e tempo para garimpar. Eu tenho. O prêmio pode ser um livro daqueles de não se esquecer e a preço encorajador nesses tempos difíceis. 
 
Da última vez em que lá estive, a sorte estava comigo. Encontrei um livro que considero uma preciosidade editorial. Trata-se de uma edição primorosa de crônicas de Rubem Braga (1913-1990), versando sobre o seu amor à natureza. Intitula-se O lavrador de Ipanema.
 
É uma antologia recente (2013), organizada com visível carinho e esmero por Januária Cristina Alves e Leusa Araujo. O belo projeto gráfico tem a autoria de Leonardo Iaccarino. Capa dura, papel excelente, tipo de letra, cores e diagramação impecáveis. Mesmo um sujeito com grossas lentes como eu sente-se à vontade diante das páginas.

A sensível e esclarecedora nota editorial é feita pela escritora e editora Guiomar de Grammont. Pra completar, povoam o volume belas ilustrações de Andrés Sandoval.
 
É o tipo de livro que todo escritor gostaria de fazer. Um livro que é, ao mesmo tempo, uma jóia. A edição está à altura dos textos do Príncipe da Crônica, como o chamava o editor da revista Manchete, Adolfo Bloch.

capa e duas das ilustrações. fonte: site Editora Record

A extraordinária beleza das crônicas, sua simplicidade e seu conteúdo humanista nos levam para esta ilha de felicidade que só a leitura proporciona. É o que eu sinto ao ler e reler os 14 textos que compõem a obra.
 
Rubem Braga é um clássico da crônica em língua portuguesa. Faz parte da seleta estante onde figuram autores que deram dignidade e relevo ao gênero, tais como Machado de Assis, Alvaro Moreyra, Drummond, Nelson Rodrigues e José Carlos Oliveira, entre outros.

Com ternura e sem ostentação, o escritor revela-nos histórias sobre plantas, pássaros, rios, córregos, matas, cidades e pessoas, chamando a atenção para a conflituosa relação homem-natureza. Assim fazendo, humaniza-nos. É bastante conhecido o fato de que transformou o terraço da cobertura onde vivia em Ipanema, na cidade do Rio, numa plantação de árvores frutíferas e outras plantas.

Rubem Braga foi amigo e defensor da natureza muito antes dos movimentos ambientalistas. É o escritor comprometido com a vida. Trabalha com poucas palavras, mas com tal riqueza, elegância e força expressiva que acaba fazendo de cada crônica uma obra de arte.

O autor conseguiu, com seu humanismo e maestria de artesão, extrair das palavras aquilo que elas podem dar de melhor.
 
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*O lavrador de Ipanema, Rubem Braga. Trecho da crônica Chamava-se Amarelo (págs. 78/83). Editora Record, Rio de Janeiro, 2013.
Leia também sobre Rubem Braga: A borboleta amarela
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/01/a-borboleta-amarela.html