sábado, 13 de dezembro de 2014

O epitáfio de Rilke

Jorge Adelar Finatto
 
túmulo de Rilke. Rarogne, Suíça. photo: jfinatto
 
Concluí ontem os Estudos Rilkeanos, em Sierre e arredores, na Suíça, cátedra que eu mesmo criei e da qual sou, até o momento, e provavelmente serei no futuro, o único aluno.

Pela tarde, com a neve cobrindo os tênis, depois de descer do trem vindo de Sierre, andava eu no pequeno cemitério da cidadezinha de Rarogne, na frente da igreja, atrás do túmulo e do famoso epitáfio do poeta. Rilke (1875-1926) foi sepultado em 02 de janeiro de 1927 ao lado da igreja e não entre os outros túmulos, por sua própria escolha (morreu em 29 de dezembro de 1926 numa clínica em Valmont, cercanias de Montreux).
 
Velha igreja de Rarogne, Suíça, ao lado da qual Rilke está enterrado
photos: j.finatto, 27.01.2014

O poeta tomou todas as providências relacionadas com sua morte, para a qual se preparava fazia algum tempo, porque sofria de leucemia, doença, naquela época, fatal, ao contrário de hoje.

Ele gostava muito de estar na velha igreja silenciosa situada na encosta dos Alpes em Rarogne. Amava o ar e a luz daquele ambiente. Determinou que o túmulo ficaria ao lado da igreja, com uma deslumbrante mirada dos alpes e dos vales a seus pés.

Na frente da igreja está o cemiteriozinho. O lugar se localiza a cerca de 400, 500 metros acima dos telhados. Lá se chega por uma estrada íngreme, a pique, entre casas perdidas no tempo.
 
Túmulo de Rilke. photo: j.finatto
 
Por duas ou três vezes escorreguei e quase fui ao chão entre as sepulturas. Desnecessário dizer que não havia mais ninguém na rua naquela hora, salvo um ou outro vulto, tal o frio e a neve que doía na cara. Mas Deus é pai e protegeu esse pobre cristão do pior, que podia ser cair lá de cima.
 
A capela e o cemitério estão bem no alto e, ainda assim, não ficam nem perto da metade do caminho até o topo das montanhas que se erguem em ambos os lados do vale, na cordilheira que vai ao infinito. Os Alpes, mais ou menos como o Contraforte dos Capuchinhos em Passo dos Ausentes, não têm fim...
 
photo: j.finatto
 
Em Rarogne se fala o alemão e depois o francês. Eu não encontrava o túmulo, não havia jeito. Não tinha ninguém, aparentemente, na igreja e nem na casinha ao lado que pudesse dar uma informação. Li e não entendi o mapa fixado na parede. O cérebro naquela altura estava congelando com o resto do corpo. Até que surgiu uma criatura pela estrada montanha abaixo. Saí do cemitério e fui em sua direção.
 
photo: j.finatto
 
O bom homem se assustou ao constatar que eu saíra das catacumbas. Fiz sinal para que se acalmasse, eu ainda era um ser vivente. Conseguiu entender o que eu queria e, num francês com forte acento germânico, me indicou onde estava o túmulo, isolado, ao lado da igreja.
 
Enfim, está aí o registro, com o epitáfio-poema belíssimo e misterioso.
 
Epitáfio de Rilke. photo: j.finatto
 
Rosa, ó pura contradição,
volúpia,
de ser o sono de ninguém
sob tantas
pálpebras.*

Do muito que vi e aprendi nesses dias rilkeanos compartilharei oportunamente com os leitores.

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*Tradução de Manuel Bandeira, em sua Antologia Poética, Livraria José Olympio Editora, 7ª edição, Rio de Janeiro, 1974.
O poeta Rilke e o menino: um encontro:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/01/o-poeta-rilke-e-o-menino-um-encontro.html
Rilke na gelada e pacata Sierre:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/01/rilke-na-gelada-e-pacata-sierre.html
 
Texto publicado em 28 de janeiro, 2014. 

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A carreta cósmica

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

O mundo visto de cima de um carro de boi é diferente. Não é o mesmo que se vê de uma bicicleta, um ônibus, metrô, barco, automóvel, balão ou avião.

O andar da carreta é outro, diverso é o seu olhar.
 
Em Passo dos Ausentes, havia muitos carros de boi antigamente, que aqui também chamamos carreta. Era meio de transporte de pessoas e de carga por estradas de chão batido e caminhos pedregosos.
 
A velocidade do mundo era menor. Naqueles dias, os tempos eram longos e as conversas também. Dava para experimentar o sabor de cada fruto, associá-lo a um nome e a uma estação do ano.
 
Havia tardes de chuva mergulhadas no silêncio, na leitura, no cochilo, na imaginação.

Olhos negros e claros cismavam nas janelas. Que mundo era esse lá fora, como seria a vida amanhã? A preparação dos doces caseiros espalhava delicados cheiros pela casa.
 
Andar de carreta era uma maneira diversa não só de deslocamento como de observar e interpretar a existência.

O homem que vê a vida tendo a carreta como ponto de mirada não é o mesmo que se movimenta em máquinas velozes.
 
Nos Campos de Cima do Esquecimento ainda se encontram carretas. Faz algum tempo encontrei uma em bom estado, no Vale do Olhar, construída no distante 1953. Resolvi comprá-la e coloquei-a no jardim.

Ela aparece na foto, tendo ao fundo, ao centro, Monsieur Jardin du Bonheur, o espantalho que faz a alegria dos passarinhos. As aves fazem ninhos nos seus bolsos e no chapéu de palha.*

O meu carro de boi está sempre pronto pra partir. Em certos dias, quando a vida perde a graça, eu subo nele e vou dar uma volta pelo cosmos com Monsieur Jardin.

O sobe e desce entre as nuvens, a gente sacudindo lá dentro, a evolução do vôo pela atmosfera e depois uma esticada até o infinito.

Voamos entre as estrelas, passeamos perto da Lua, paramos em Órion para ver a chuva dos meteoros cintilantes.

Aproveito para visitar os amigos que partiram em suas carretas de luz e nunca mais voltaram. Conversamos e rimos juntos. Depois eu me despeço e volto pra casa.

Ao retornar da viagem, sinto o coração pulsar outra vez.
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Texto publicado em 25 de março, 2014. 

Mário Cesariny


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quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Os 10 mais lidos em 2014

Jorge Adelar Finatto

Recordar é viver, já dizia o filósofo (?). Se a recordação é das boas, vive-se duas vezes.

Pensando nisso, a partir desta sexta-feira (12/12) serão publicados os 10 textos mais lidos no blog em 2014. Será uma crônica/artigo por dia, com a respectiva ilustração. O primeiro texto será A carreta cósmica.
 
A idéia é reunir um pouco do que mereceu a atenção dos leitores da página elétrica.

Um resumo do nosso convívio diário.
 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O sonho do eremita

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
Estávamos ontem à tarde no Café da Ausência falando da vida. Depois de tocar Adiós Nonino, de Astor Piazzolla, no seu bandoneón, Juan Niebla teceu algumas lembranças. Atrás dos óculos escuros, olhando um ponto indefinido a frente, como quem olha o pôr-do-sol no mar, contou:

- Sei que tem muita gente festejando a chegada do sol no hemisfério sul. Não lhes tiro a razão. Um banho de mar apetece, uma cerveja gelada. Conversas até tarde na varanda. Não faço isso há bem uns cinqüenta anos.
 
- Acontece que fui me invernando com a cegueira, fui me restando à beira do fogão a lenha, fui me silenciando nessas montanhas. Quase um eremita, um eremita tocador de bandoneón.
 
- Eu gosto de frio, de neblina, de coisas antigas. Acho que todos nós gostamos. Querem me ver feliz? Então basta abrir uma dessas cartas escritas há muito tempo para ouvir as notícias. Guardo comigo no baú de família uma carta escrita em 1915 pelo tio Alberto, que lutou na 1ª Guerra Mundial pelo exército francês. Às vezes peço para Don Sigofredo relê-la pra mim.
 
- Ele escreveu a carta com um toco de lápis de grafite muito negro numa trincheira. Foi num intervalo da carnificina. Contava aos irmãos que estava escuro e chovendo. Tinha acendido um pedaço de vela para escrever. Via clarões de relâmpagos nos campos. Pedia desculpas por não poder voltar para o Natal. Tinha perdido o melhor amigo morto com um balaço na cabeça. O sangue do companheiro ainda estava no seu uniforme.
 
- Não sabia se voltaria a Passo dos Ausentes, o que mais queria e sonhava todas as vezes que conseguia cochilar. Fazia frio, chovia e a lama cobria os caminhos. Ele sentia-se um eremita naquela solidão. A guerra era uma coisa terrível e sem o menor sentido. Havia homens bons que mereciam voltar para suas famílias nos dois lados da trincheira. Mandava beijos carinhosos a todos e muitas saudades.
 
- A carta foi encontrada no bolso do casaco, ele não teve tempo de mandar. O governo francês enviou-a para a família depois que a guerra acabou junto com seus objetos pessoais. Acompanhou um ofício de reconhecimento pelos serviços do jovem tenente que morreu em combate nos últimos dias de 1915.
 
- Com o tempo o coração vai invernando. As massas polares invadem a alma. Esse mundo não tem porta nem janela. É uma grande caverna na escuridão. Por isso eu gosto de sentir o vento que vem do Contraforte dos Capuchinhos, sentado na poltrona perto da janela, enrolado no capote do tio Alberto. Eu sei que depois das montanhas vêm as falésias e o oceano. Do outro lado, debaixo de uma cruz singela, cochila o tio Alberto entre seus camaradas, sonha com o retorno aos Campos de Cima do Esquecimento.
 

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Uma fada no front

Jorge Adelar Finatto

Rio Guaíba e Porto Alegre. photo: j.finatto

 
Mas também não avisam nada! Foi por acaso que eu notei: a primavera chegou. Olho pela janela e vejo um céu esbranquiçado e murcho. Na água cinzenta do rio arrasta-se uma chata de carvão. E um débil mormaço faz a cidade quase feia. Ah, mas não tem importância. Leio no cabeçalho do jornal: terça-feira, 26 de setembro de 1939. Assim, pois, a primavera chegou, e é de meu dever digirir-lhe as saudações de praxe.
                                                 Rubem Braga, Uma fada no front *

Esses dias falei sobre o livro O lavrador de Ipanema, seleção de crônicas de Rubem Braga (1913-1990), abordando seu amor à natureza e publicado em 2013, em primorosa edição. Agora pesquei na estante, no fim de semana que passou, para reler, Uma fada no front, antologia de crônicas que ele escreveu  no período de julho a outubro de 1939, quando viveu em Porto Alegre. Os textos foram escritos originalmente para o jornal Folha da Tarde.

A edição que tenho é a primeira, de 1994, e teve organização e introdução do jornalista gaúcho Carlos Reverbel, amigo do autor. Conforme conta Reverbel, Rubem Braga chegou a Porto Alegre viajando num vapor, como era costume naquela época. Ao descer no cais da cidade, foi preso juntamente com Reverbel, que o aguardava. A prisão ocorreu por ordem de Filinto Müller, chefe da polícia política de Getúlio Vargas durante o regime ditatorial do Estado Novo (1937-1945).

Devido à intervenção do proprietário da Companhia Jornalística Caldas Júnior, Breno Caldas, junto ao interventor do Estado, Cordeiro de Farias, a ordem de prisão foi ignorada e ambos foram libertados passadas algumas horas. Breno Caldas contratou Rubem Braga para ser redator do Correio do Povo e para escrever uma crônica diária na Folha da Tarde. A primeira crônica foi publicada na edição de 11 de julho e a última, em 28 de outubro, num total de 91 textos. Desses, Reverbel selecionou 40 para Uma fada no front.

Interessante observar como o jovem Rubem Braga se parece com o velho no modo de escrever. É o mesmo escritor. O cronista tinha na ocasião apenas 26 anos, havia passado por algumas redações e publicado seu primeiro livro, O conde e o passarinho. Na altura já era um escritor no domínio do ofício. As mudanças de vida que vieram depois serviram para ampliar sua visão das coisas, tornando-o mais experiente. Mas o escritor de mérito já estava presente no jovem de 26. Não se tratava mais de uma promessa.

Também chama a atenção a facilidade com que o escritor se apropria em tão pouco tempo da vida de Porto Alegre, do jeito da cidade, seus habitantes, seu rio. Isto sem deixar de lado o que se passava no país e no mundo. Pelo contrário, estava atento a tudo. Na Folha escreveu sobre o início da 2ª Guerra Mundial tão logo eclodiu, com a invasão da Polônia pela Alemanha nazista em 1º de setembro de 1939. Infenso ao totalitarismo, dentro e fora do Brasil, repudiou o nazismo e tudo que representava. Sempre ou quase sempre judicioso nos juízos que fazia:

Deus encheu meu coração de um frio desprezo pelo nazismo e de um cálido amor pela Alemanha. (idem)

A Porto Alegre da época contava 400 mil almas. Uma cidade em que as pessoas ainda possuíam reservas de tempo, de bom humor e disposição para o convívio e o encontro. Um lugar onde os habitantes se cumprimentavam.

Nas crônicas porto-alegrenses de Rubem Braga, encontramos os bondes, a rua da Praia, uma figueira velha, manacás, bambus, jacarandás, Itapoã, Belém Velho, Petrópolis, Associação de Artes Plásticas Francisco Lisboa, o abandono dos índios guaranis, artistas e escritores locais como Carlos Scliar, Telmo Vergara e Erico Verissimo, entre outros temas. A obra trata com lucidez os problemas sociais e o indivíduo no meio deles.

O livro vale por isso e muito mais. É difícil não sentir empatia pelo escritor nascido em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, desde as primeiras linhas. Ele tem o dom de fundir a crônica diária de jornal com o mais intenso e despojado lirismo. Foi, ao lado de Alvaro Moreyra, o mestre da crônica literária no Brasil.

Voltemos à rua da Praia. Voltemos, que hoje é sábado e faz sol. A tarde vai ser linda. Eu, por mim, voltarei. Eu me plantarei no meio da rua, vagarei para cá e para lá. Vagarei triste e vagamente aflito, sem ganhar sorrisos, mas ao mesmo tempo satisfeito porque haverá sol e haverá mulheres lindas andando ao sol e essa coisa boba e simples me comove e me faz bem, muito mais bem que a música e os versos e qualquer outra coisa do mundo. (idem)
 
 A crônica de Rubem Braga convida o leitor a passear por seus aposentos interiores, suas alamedas e pátios. Mesmo quando o autor parece triste, suas palavras passam esperança e um desejo de que tudo dê certo. Nas páginas de Uma fada no front ninguém sai ileso de poesia.
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* Uma fada no front. Rubem Braga, 154 pp. Seleção e introdução de Carlos Reverbel. Iustrações de Joaquim da Fonseca. Editora Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1994. Os excertos são das páginas 87, 31, 112, respectivamente.

O lavrador de Ipanema:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/11/o-lavrador-de-ipanema.html