terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O barco abandonado

Jorge Adelar Finatto
 
Bote Abandonado, 1850. Frederic Edwin Church.
Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid. photo: j.finatto
 
Tive vontade de entrar no barco da pintura e sair por suas águas em viagem. Ou melhor, continuar a viagem, já que amanhã é dia de levantar âncora e ir adiante. Hoje foi dia de visitar o Museu Thyssen-Bornemisza, em Madri. Terminei a visita ao acervo permanente que comecei e não completei em 2007. Nos próximos dias começa no museu uma exposição de Cézanne que promete.
 
O Bote Abandonado do pintor americano Frederic Edwin Church (1826-1900) mexeu comigo.

Acho que vi nele transfigurado um momento de grande solidão do artista. Ou a minha própria solidão. Ou as duas. Sei lá. É uma solidão de menino triste, olhando o outro barco lá adiante com gente dentro, conversando e passeando. Sentimento, sentimentos.
 
Faz um frio seco, em contraste com os quase 35ºC de quando saí de Porto Alegre. Estou hospedado numa rua chamada Calle de Los Libreros. Se disser que escolhi a dedo o lugar, estarei desprezando o acaso, que foi quem de fato me trouxe a este hotel. Bem, o fato é que, mesmo estando a menos de 100 metros da Gran Vía, aqui é silencioso.
 
E a ruazinha é cheia de livrarias, um paraíso para qualquer bibliófilo. Encontrei dois livros do poeta catalão Salvador Espriu (1913-1985), uma descoberta recente e rara de que já falei no blog.
 
São edições bilíngües, catalão-espanhol. Um dos livros intitula-se La Piel de Toro, Editorial Lumen, Barcelona, 1983, tradução ao espanhol por José Agustín Goytisolo. A maioria das páginas ainda está grudada, vou procurar uma espátula ou abra-cartas para abri-las.
 
Há os seguintes versos de um poema, numa folha livre, que dizem:
 
Pouco a pouco saíam
do porto esguias barcas
de esperança.
 
Sim, que sejam carregadas de esperança as barcas que partirem do nosso porto.

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Os passos do andarilho:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.es/2013/12/os-passos-do-andarilho.html
Texto publicado em 03 de fevereiro, 2014.
 

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Milonga del Ángel

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto
 
 
Habitamos entre nuvens. Os ventos nos açoitam nos Campos de Cima do Esquecimento em sua louca debandada em direção ao fim do mundo.

Juan Niebla fez o convite para ouvi-lo tocar seu bandoneón. Estamos agora na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. O concerto intitula-se Milonga del Ángel, música de Astor Piazzolla, leitmotiv da nossa reunião.
 
Talvez porque hoje é sábado, e domingo é um dia agonizante, celebramos a vida escutando músicas que tocam fundo nosso coração.

Niebla é cego, guardião da memória da cidade junto com Don Sigofredo de Alcantis, o filósofo.

Estamos no Café dos Ausentes que é o que restou da velha estação. Fechamos os olhos, escutamos  a melodia que emana dos dedos magros e ágeis de Juan.

As mãos do cego apalpam o invisível, ressuscitam sonhos e emoções.

Iniciamos a nossa charla após o concerto, como de costume.
Diz Niebla:

- Imaginem uma cidade espiritual, em que os ancestrais vagueiam em silêncio pelas casas e ruas, vivem nos antigos retratos, nas cartas guardadas no fundo de gavetas, sobrevivem na memória dos poucos que ficaram. Isso é Passo dos Ausentes.

- Para onde nos levam os caminhos entre as estrelas, Juan? - indaga Don Sigofredo, piscando o olho em minha direção.

- Não pense que não percebi a piscadela, quimérico amigo. Nunca duvide das antenas deste velho morcego. Mas já que pergunta, na verdade não sei aonde levam aqueles caminhos. Tu és o filósofo, quem sabe nos iluminas com algumas respostas, esforçado tradutor do intangível.

- Sou só um músico cego numa estação de trem abandonda esperando o comboio fantasma que vai levar-me um dia por trilhos desconhecidos. Por enquanto sou música e sou fraterno encontro e estamos todos vivos, graças a Deus.

- Também ando pela vida à procura de respostas -, continuou Niebla. - Ouçamos o que nos disse o nunca suficientemente lembrado poeta e filósofo Hölderlin, no seu Fragmento de Hipérion*:

"Interrogo as estrelas e elas permanecem mudas. Interrogo o dia e a noite, mas eles não respondem. De mim mesmo, se me interrogo, entoam apenas sentenças místicas, sonhos sem interpretação".

A solidão é o que mais nos une nesses encontros. Estamos sós na beira dos penhascos. Caminhamos para o oblívio.

Acreditamos em anjos, nos reunimos, nos consolamos. Entre nuvens.

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* Hipérion ou O Eremita na Grécia. Friedrich Hölderlin. Tradução, notas e apresentação por Marcia Sá Cavalcante Schuback. Forense, Rio de Janeiro, 2012.

Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo desde 1940, na estação de trem abandonada da cidade. Tem 89 anos, é cego desde os 15.

A cidade perdida: as origens:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/cidade-perdida-as-origens.html 
 
Texto publicado em 18 de janeiro, 2014. 

sábado, 13 de dezembro de 2014

O epitáfio de Rilke

Jorge Adelar Finatto
 
túmulo de Rilke. Rarogne, Suíça. photo: jfinatto
 
Concluí ontem os Estudos Rilkeanos, em Sierre e arredores, na Suíça, cátedra que eu mesmo criei e da qual sou, até o momento, e provavelmente serei no futuro, o único aluno.

Pela tarde, com a neve cobrindo os tênis, depois de descer do trem vindo de Sierre, andava eu no pequeno cemitério da cidadezinha de Rarogne, na frente da igreja, atrás do túmulo e do famoso epitáfio do poeta. Rilke (1875-1926) foi sepultado em 02 de janeiro de 1927 ao lado da igreja e não entre os outros túmulos, por sua própria escolha (morreu em 29 de dezembro de 1926 numa clínica em Valmont, cercanias de Montreux).
 
Velha igreja de Rarogne, Suíça, ao lado da qual Rilke está enterrado
photos: j.finatto, 27.01.2014

O poeta tomou todas as providências relacionadas com sua morte, para a qual se preparava fazia algum tempo, porque sofria de leucemia, doença, naquela época, fatal, ao contrário de hoje.

Ele gostava muito de estar na velha igreja silenciosa situada na encosta dos Alpes em Rarogne. Amava o ar e a luz daquele ambiente. Determinou que o túmulo ficaria ao lado da igreja, com uma deslumbrante mirada dos alpes e dos vales a seus pés.

Na frente da igreja está o cemiteriozinho. O lugar se localiza a cerca de 400, 500 metros acima dos telhados. Lá se chega por uma estrada íngreme, a pique, entre casas perdidas no tempo.
 
Túmulo de Rilke. photo: j.finatto
 
Por duas ou três vezes escorreguei e quase fui ao chão entre as sepulturas. Desnecessário dizer que não havia mais ninguém na rua naquela hora, salvo um ou outro vulto, tal o frio e a neve que doía na cara. Mas Deus é pai e protegeu esse pobre cristão do pior, que podia ser cair lá de cima.
 
A capela e o cemitério estão bem no alto e, ainda assim, não ficam nem perto da metade do caminho até o topo das montanhas que se erguem em ambos os lados do vale, na cordilheira que vai ao infinito. Os Alpes, mais ou menos como o Contraforte dos Capuchinhos em Passo dos Ausentes, não têm fim...
 
photo: j.finatto
 
Em Rarogne se fala o alemão e depois o francês. Eu não encontrava o túmulo, não havia jeito. Não tinha ninguém, aparentemente, na igreja e nem na casinha ao lado que pudesse dar uma informação. Li e não entendi o mapa fixado na parede. O cérebro naquela altura estava congelando com o resto do corpo. Até que surgiu uma criatura pela estrada montanha abaixo. Saí do cemitério e fui em sua direção.
 
photo: j.finatto
 
O bom homem se assustou ao constatar que eu saíra das catacumbas. Fiz sinal para que se acalmasse, eu ainda era um ser vivente. Conseguiu entender o que eu queria e, num francês com forte acento germânico, me indicou onde estava o túmulo, isolado, ao lado da igreja.
 
Enfim, está aí o registro, com o epitáfio-poema belíssimo e misterioso.
 
Epitáfio de Rilke. photo: j.finatto
 
Rosa, ó pura contradição,
volúpia,
de ser o sono de ninguém
sob tantas
pálpebras.*

Do muito que vi e aprendi nesses dias rilkeanos compartilharei oportunamente com os leitores.

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*Tradução de Manuel Bandeira, em sua Antologia Poética, Livraria José Olympio Editora, 7ª edição, Rio de Janeiro, 1974.
O poeta Rilke e o menino: um encontro:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/01/o-poeta-rilke-e-o-menino-um-encontro.html
Rilke na gelada e pacata Sierre:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/01/rilke-na-gelada-e-pacata-sierre.html
 
Texto publicado em 28 de janeiro, 2014. 

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A carreta cósmica

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

O mundo visto de cima de um carro de boi é diferente. Não é o mesmo que se vê de uma bicicleta, um ônibus, metrô, barco, automóvel, balão ou avião.

O andar da carreta é outro, diverso é o seu olhar.
 
Em Passo dos Ausentes, havia muitos carros de boi antigamente, que aqui também chamamos carreta. Era meio de transporte de pessoas e de carga por estradas de chão batido e caminhos pedregosos.
 
A velocidade do mundo era menor. Naqueles dias, os tempos eram longos e as conversas também. Dava para experimentar o sabor de cada fruto, associá-lo a um nome e a uma estação do ano.
 
Havia tardes de chuva mergulhadas no silêncio, na leitura, no cochilo, na imaginação.

Olhos negros e claros cismavam nas janelas. Que mundo era esse lá fora, como seria a vida amanhã? A preparação dos doces caseiros espalhava delicados cheiros pela casa.
 
Andar de carreta era uma maneira diversa não só de deslocamento como de observar e interpretar a existência.

O homem que vê a vida tendo a carreta como ponto de mirada não é o mesmo que se movimenta em máquinas velozes.
 
Nos Campos de Cima do Esquecimento ainda se encontram carretas. Faz algum tempo encontrei uma em bom estado, no Vale do Olhar, construída no distante 1953. Resolvi comprá-la e coloquei-a no jardim.

Ela aparece na foto, tendo ao fundo, ao centro, Monsieur Jardin du Bonheur, o espantalho que faz a alegria dos passarinhos. As aves fazem ninhos nos seus bolsos e no chapéu de palha.*

O meu carro de boi está sempre pronto pra partir. Em certos dias, quando a vida perde a graça, eu subo nele e vou dar uma volta pelo cosmos com Monsieur Jardin.

O sobe e desce entre as nuvens, a gente sacudindo lá dentro, a evolução do vôo pela atmosfera e depois uma esticada até o infinito.

Voamos entre as estrelas, passeamos perto da Lua, paramos em Órion para ver a chuva dos meteoros cintilantes.

Aproveito para visitar os amigos que partiram em suas carretas de luz e nunca mais voltaram. Conversamos e rimos juntos. Depois eu me despeço e volto pra casa.

Ao retornar da viagem, sinto o coração pulsar outra vez.
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Texto publicado em 25 de março, 2014. 

Mário Cesariny


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quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Os 10 mais lidos em 2014

Jorge Adelar Finatto

Recordar é viver, já dizia o filósofo (?). Se a recordação é das boas, vive-se duas vezes.

Pensando nisso, a partir desta sexta-feira (12/12) serão publicados os 10 textos mais lidos no blog em 2014. Será uma crônica/artigo por dia, com a respectiva ilustração. O primeiro texto será A carreta cósmica.
 
A idéia é reunir um pouco do que mereceu a atenção dos leitores da página elétrica.

Um resumo do nosso convívio diário.
 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O sonho do eremita

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
Estávamos ontem à tarde no Café da Ausência falando da vida. Depois de tocar Adiós Nonino, de Astor Piazzolla, no seu bandoneón, Juan Niebla teceu algumas lembranças. Atrás dos óculos escuros, olhando um ponto indefinido a frente, como quem olha o pôr-do-sol no mar, contou:

- Sei que tem muita gente festejando a chegada do sol no hemisfério sul. Não lhes tiro a razão. Um banho de mar apetece, uma cerveja gelada. Conversas até tarde na varanda. Não faço isso há bem uns cinqüenta anos.
 
- Acontece que fui me invernando com a cegueira, fui me restando à beira do fogão a lenha, fui me silenciando nessas montanhas. Quase um eremita, um eremita tocador de bandoneón.
 
- Eu gosto de frio, de neblina, de coisas antigas. Acho que todos nós gostamos. Querem me ver feliz? Então basta abrir uma dessas cartas escritas há muito tempo para ouvir as notícias. Guardo comigo no baú de família uma carta escrita em 1915 pelo tio Alberto, que lutou na 1ª Guerra Mundial pelo exército francês. Às vezes peço para Don Sigofredo relê-la pra mim.
 
- Ele escreveu a carta com um toco de lápis de grafite muito negro numa trincheira. Foi num intervalo da carnificina. Contava aos irmãos que estava escuro e chovendo. Tinha acendido um pedaço de vela para escrever. Via clarões de relâmpagos nos campos. Pedia desculpas por não poder voltar para o Natal. Tinha perdido o melhor amigo morto com um balaço na cabeça. O sangue do companheiro ainda estava no seu uniforme.
 
- Não sabia se voltaria a Passo dos Ausentes, o que mais queria e sonhava todas as vezes que conseguia cochilar. Fazia frio, chovia e a lama cobria os caminhos. Ele sentia-se um eremita naquela solidão. A guerra era uma coisa terrível e sem o menor sentido. Havia homens bons que mereciam voltar para suas famílias nos dois lados da trincheira. Mandava beijos carinhosos a todos e muitas saudades.
 
- A carta foi encontrada no bolso do casaco, ele não teve tempo de mandar. O governo francês enviou-a para a família depois que a guerra acabou junto com seus objetos pessoais. Acompanhou um ofício de reconhecimento pelos serviços do jovem tenente que morreu em combate nos últimos dias de 1915.
 
- Com o tempo o coração vai invernando. As massas polares invadem a alma. Esse mundo não tem porta nem janela. É uma grande caverna na escuridão. Por isso eu gosto de sentir o vento que vem do Contraforte dos Capuchinhos, sentado na poltrona perto da janela, enrolado no capote do tio Alberto. Eu sei que depois das montanhas vêm as falésias e o oceano. Do outro lado, debaixo de uma cruz singela, cochila o tio Alberto entre seus camaradas, sonha com o retorno aos Campos de Cima do Esquecimento.