domingo, 17 de maio de 2015

Viajar entre as estrelas

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
Solidão é quando cada um se encontra com seu cada qual. No ermo de si mesmo.

Uma travessia sobre o vazio sem rede de proteção.
 
A noite gira a esfera cheia de coisas em movimento, salpicando o espaço com pontos luminosos.
 
Há sempre um trem atravessando a escuridão com um passageiro insone dentro.

O trem divaga sobre montanhas arranhando as alturas. Seu destino é a pequena estação de Passo dos Ausentes.
 
O passageiro levou a solidão pra viajar no cosmos. Anseia por voltar e abrir as janelas da casa da infância outra vez. O sonho.
 
Estes são dias de grande silêncio, exceto pelo ruído espesso do trem cortando o vento.
 
Às vezes o céu noturno está tão perto, claro e límpido, que parece que o trem navega entre as estrelas.
 
Nessas horas dá para ouvir a respiração de Deus.
 

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Passos de algodão

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto. Alziro em pessoa


Depois de longa e sentida ausência, ele retornou ao convívio das tardes no escritório. Conheço meu amigo de outros outonos.

Partiu no verão sem dizer nada, tão ao seu estilo, e me deixou aqui todo esse tempo, sem poder ouvir sua voz cava, sem poder ver sua plumagem luminosa, seus olhos redondos e espertos.

Sempre sinto falta do olhar de banda e da maneira estrambótica de aterrissar num só pé na varanda do escritório.

Alziro, o tucano, tem temperamento forte e, às vezes, um certo mau humor, quando o tempo está pra chuva.
 
Ele voltou com suas cores vivas para amenizar as perdas cromáticas da estação. Eu andava mesmo precisado de sua companhia, confesso. Não que ele converse muito, é até meio calado. No fundo, nem é isso o mais importante.

A silenciosa presença do amigo, sabê-lo perto, partilhando a vida, é motivo de consolo e esperança. Homens e aves podem se entender muito bem e viver no coração uns dos outros.

Providenciei hoje a reposição de pedaços de banana no pratinho dele, fruto muito do seu gosto.

Em certos dias, Alziro deixa a cerimônia de lado, entra no escritório andando em passos de algodão. Ensaia uma pequena incursão no ambiente.

Olha o teto, os lustres, a mesa, os livros, os quadros, as plantas e relógios, tudo com silenciosa atenção. Faço que não percebo para deixá-lo à vontade.

E, do mesmo jeito que chega, ele se vai embora. Como sempre, não se despede e nem diz quando voltará. Alça o improvável voo adunco e parte rasgando o ar.

O que importa, diz meu coração, é que a velha e boa amizade está rediviva. Se tudo der certo, talvez ele retorne amanhã. Ou quem sabe outro dia. Só espero que não me falte por tão longo tempo, porque meu inventário de ausências já vai numeroso na vida.

Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.

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Texto publicado em 24 de agosto, 2010.
 

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Manhãs de bruma

Jorge Adelar Finatto

Estação Hidráulica Moinhos de Vento. photo: jfinatto
 
Andamos pela vida
como seres
de pedra

habitamos as noites
de vento
as manhãs de bruma
nos acolhem
no manto líquido

trazemos
o olhar parado
em algum lugar
do passado

a memória amputada
o semblante malferido
uma rosa desfeita
povoa o peito

algo se perdeu
algo desmoronou
o coração abandonado
ficou seco

nas praças de Porto Alegre
a saudade dos encontros

o rosto pintado
os dedos finos
entrelaçados
                         na névoa

eis que do fundo turvo
surgem os primeiros
traços do sol

renascemos da treva
ressurgimos do pó

o corpo leve
agora dança
na busca de infinito

por um momento
a beleza
o encanto
a harmonia perdida

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Poema do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.

sábado, 9 de maio de 2015

As intermitências da primavera

Jorge Adelar Finatto
 
photo: Clara Finatto
 
 
O amor - ou esse sentimento que aproxima pessoas solitárias e desamparadas como ele - inaugurou datas no calendário, pintou de lilás e rosa o coração.

O amor tocou músicas no som do carro e do apartamento. O amor pintou de azul e amarelo as flores do vaso da sala. O amor tornou-o uma pessoa melhor para si e para os outros.
 
Um dia, talvez, ela, que gostava tanto de gatos, regressará da nuvem onde foi habitar. Virá buscá-lo, como sempre fazia, para irem juntos ao cinema, ao café, à livraria, ao Parque Harmonia ver o pôr-do-sol na beira do Guaíba.
 
Ela foi o único ser humano que conseguiu resgatá-lo da remota ilha. Morreu há três anos de uma doença que não vale a pena lembrar, foi embora depois de sorrir e dizer que ele não devia se preocupar, tudo ia dar certo. Perdeu-a pouco antes de irem morar juntos.
 
Sente-se um morto-vivo sem aquela que o salvou da solidão de náufrago.  Ela foi a sua primavera.

Uma colega de trabalho disse-lhe que ele é muito certinho. A vida, não.
 
O fato é que, um dia, ele sonhou ser feliz para sempre. Mas a realidade disse que para sempre é tempo demais.
 
A família que, no passado, foi unida, agora vive dividida, os irmãos quase não se convivem.
 
A mãe, que em vida tecera com dedos de fada os frágeis laços do afeto familiar, também morreu antes do tempo. Ninguém a substituiu na rara arte de evitar e, sobretudo, de colar os cacos. Os cristais se partiram.
 
Ele voltou a viver no ermo distante da ilha. Tornou-se um estrangeiro em sua própria cidade. Os antigos amigos transformaram-se em conhecidos, foram casando, criando filhos, separando, mudando de rua, de bairro, cidade, país.

O seu mundo reduziu-se ao apartamento, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados e às impiedosas tardes e noites de domingo.
 
Teve poucos relacionamentos depois, coisas entediantes, sem nenhuma importância. Não consegue fazer o tipo leve, desses à vontade no mundo. Gosta de pensar, procurar sentidos. E não os encontra.
 
Sexo de ocasião nunca foi pra ele. Tem receio das pequenas e delicadas memórias que o invadem, quando a dona delas vai embora. O que para muitos é pura diversão, para ele é vertigem. Se ao menos não sentisse tanto as coisas.

O lugar onde vive - a longínqua ilha - só não é uma tapera porque a velha empregada da família aparece duas vezes por semana, dá um ar doméstico ao tugúrio. Os únicos seres vivos ali, além dele, são as hortênsias que cultiva na sala, em dois vasos, um em cada lado da janela.
 
As hortênsias acendem as manhãs de verão, iluminam a casa.
 
A janela é o ponto de referência dele no planeta.
 
Dali pode ver a praça e as pessoas nela, as árvores e a rua, o céu, os outros edifícios.
 
De qualquer parte do universo um observador pode tê-lo como objeto de estudos. Todos os dias, no fim da tarde, está na janela tomando chimarrão. Só.
 
No fundo, nunca a perdoou por tê-lo abandonado no mundo.
 
O medo de amar afeiçoou-se a ele como as heras num túmulo de cemitério do interior.
 
A solidão o faz acariciar o gato invisível, na frente da televisão, até adormecer.
 
Se fez acompanhamento psiquiátrico para esse viver tão desolado? Sim. Mas continua o mesmo homem enclausurado, estranho a si mesmo, sem saber o que fazer com as mãos quando está sozinho.

O outono chegou com um cesto florido de lembranças dela. Vive de memória.
 
Os dias chuvosos, frios, deixam as pessoas entocadas em casa.
 
A praça está vazia agora. Recorda-se dos dias em que caminhavam juntos ali.

A ausência da primavera faz o coração girar louco na ventania.
 
Se ao menos tivesse um gato de verdade. Se não houvesse essa lua enorme no céu.

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Texto revisto, publicado originalmente em 17 de fevereiro, 2010.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Heráclito e o espelho

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto. vôo sobre o Guaíba

 
Heráclito de Éfeso (540 - 480 a.C) disse que ninguém entra ou se banha no mesmo rio duas vezes. A aguda percepção de pensador, que não só pensava como vivia o pensamento, referia-se ao fato de que tudo muda incessantemente, o homem, o rio e todas as coisas.
 
Para o filósofo, tudo está em movimento. O mundo é a unidade dos opostos. Dia e noite, sol e chuva, doença e saúde, agudos e graves, macho e fêmea, inverno e verão, guerra e paz fazem parte de um todo.
 
Heráclito acredita, porém, que um pensamento sábio governa tudo. Há uma justiça no cosmos que orienta o destino dos seres e dirige a vida. Os eventos ocorrem na hora certa.
 
Nós não somos sempre os mesmos, mudamos, conforme o velho filósofo. O nosso corpo muda constantemente através das células, o pensamento ganha altura por meio da contemplação, da meditação e da ação.

No que me concerne, diante de minhas notórias limitações, espero que as mudanças me levem a ter mais sabedoria, mais esperança e mais bondade (que a maldade está sempre de prontidão e agindo em toda parte).
 
O rio não é o mesmo. O tempo escorre, eterna mutação, areia descendo na ampulheta.

Alteridade sempiterna das águas, o vôo premonitório das aves.
 
Nada é o mesmo. Não cessamos de mudar. (Só na morte não há transformação.) 
 
Às vezes, diante do espelho, pergunto quem é aquele que me observa do outro lado. Será mais feliz do que todos os que vieram antes dele? Estará mais só? Terá as mesmas dúvidas? Ainda quer mudar a vida, fazer coisas novas?

Ninguém se vê duas vezes do mesmo modo no espelho, caro Heráclito. É sempre outro que está lá.
 
Essa manhã, quando mirei o espelho, o estranho nem sequer me olhou nos olhos. Tomou café, escovou os dentes, fez a barba automaticamente, passou a mão nos cabelos, arrumou a gravata e foi por seus caminhos. Passou o dia distante de mim. Longe, longe. Um perfeito estranho mora no meu espelho.
 
Num momento em que ele se distraiu, olhei através da janela do gabinete e vi um pássaro atravessando o céu sobre as águas do Guaíba.

E vi também belas nuvens brancas cruzando o rio. À medida que passavam, sua forma, sua cor e seu interior foram mudando, até que veio a chuva. O outro sentiu desalento. Eu fiquei feliz, porque a chuva me dá felicidade.
 
É impossível deter esse rio, essas nuvens, esse pássaro, esse outro que me escapa no fundo do espelho e teima em me levar por caminhos onde não quero ir.

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Informações sobre Heráclito em Dicionário dos Filósofos. Denis Huisman. Livraria Martins Fontes Editora Ltda. São Paulo, 2004.
Clique sobre a imagem e veja mais detalhes. Texto revisto, publicado antes em 7, fev, 2013

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Recado a Tito Madi

Jorge Adelar Finatto

imagem de capa de cd
 

MEU CARO TITO. Hoje faz um daqueles frios glaciais em Passo dos Ausentes. O fogão a lenha está aceso, como da vez em que estiveste aqui, e o pinhão cozinha na chapa.

Pra completar, chove lá fora... Uma chuva intermitente, álgida, que me lembra teus versos na inesquecível Chove lá fora.
 
Com saudades do amigo, coloquei o disco a tocar tuas músicas: Balanço zona sul, Cansei de ilusões, Gauchinha bem-querer, Não diga não, Há sempre um amanhã, Dançador e tantas outras.
 
Além das belas melodias, as tuas letras (poemas musicais) respiram sentimento, harmonia, sofisticação, elegância. E a tua voz cálida e doce vibra na exata medida, entre samba-canção e bossa nova. É sempre uma maravilha te escutar.
 
A delicadeza da obra tem a ver com tua ascendência árabe (filho que és de pai libanês) e com o jeito brasileiro de ver o mundo. Nasceste em Pirajuí, interior de São Paulo, em 1929. No registro de nascimento está escrito Chauki Maddi. Mas és, de fato, o nosso Tito, Tito Madi, grande compositor e cantor do Brasil.
 
Ouvi dizer que Carlos Drummond de Andrade admirava teus escritos vertidos em letras de música. Não surpreende, diante de tanta qualidade.
 
Entre os que cantaram tuas canções, estão Agostinho dos Santos, Elizeth Cardoso, Maysa, Ivon Cury, Dolores Duran, Maria Bethânia, Wilson Simonal, Leny Andrade, Caetano Veloso, João Gilberto. Entre os parceiros, Mario Telles, Georges Henry, Paulo César Pinheiro e vários outros.

No ano 2000 (foi ontem, Tito), perguntado sobre como te sentias pelo fato de muita gente considerar Gauchinha bem-querer uma composição folclórica (é uma das mais belas músicas já escritas tendo o Rio Grande do Sul por tema), assim respondeste, em memorável entrevista ao Caderno de Literatura nº 7, da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul:
 
- A minha música, de fato, já quase virou folclore gaúcho. Fico feliz com isso. Porto Alegre me deu essa extraordinária oportunidade de homenagear o querido Estado do Rio Grande do Sul. A canção nasceu da grande paixão pelo Rio Grande e pelos grandes amigos que aí conquistei. Entre eles, os integrantes do conjunto Norberto Baldauf, Adão Pinheiro - um dos maiores pianistas do Brasil -, Salimen Júnior, Glauco e Primo Peixoto.
 
Uma pessoa generosa, discreta, amorosa. E um senhor criador. Essa a imagem que guardo do artista - e do ser humano -, daqueles encontros aqui na Serra, em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Nada a ver com vaidade, com caras e bocas, com umbigo no centro do mundo.

Uma pessoa, enfim, de quem sinto muitas saudades (assim mesmo, no plural) e a quem mando um grande abraço. 
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sábado, 2 de maio de 2015

O sino, a solidão, o vento

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto


Lá fora canta
o sino de bambu
açoitado
pelo vento.

Aqui dentro
a solidão
toca
seu instrumento.