sexta-feira, 19 de junho de 2015

A harpa do outono

Jorge Adelar Finatto
 
flores de magnólia. photo: jfinatto

 
Se tivesse estudado música, seria talvez um violonista razoável, desses que dão concertos caseiros em sonolentas tardes de domingo, quando todos cochilam depois do almoço. Apresentaria peças de Villa-Lobos, Jobim e Gnattali e isso acalentaria seu coração. Não precisava mais pra ser feliz.
 
Mas quando ganhou o primeiro e único violão, percebeu logo que entre ele e as cordas não havia nenhuma intimidade. O simples dedilhar, contudo, produzia sons encantatórios aos seus ouvidos, mas aquilo não era música.
 
Não podia ser violonista. Porém a música nunca o abandonou. Era uma das melhores coisas que havia em sua vida.
 
Aos dez anos decidiu que começaria a escrever. Passou a dedilhar o lápis sobre as linhas do caderno escolar. Era uma forma diversa de música, silenciosa, melancólica e solitária. Um concerto íntimo. Coisas que falavam de perto ao coração. Escreveu muito durante anos, publicou pouco em livro.
 
O blog virou uma sala de convivência, com exposição de fotografias, trabalho de escrita, divulgação de outros autores, conversas sobre gente, música, pintura, lugares.

Uma memorabília do tempo.

As folhas da magnólia dedilham, no outono, a harpa do vento. 
 

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Notas do insólito peregrino

Jorge Adelar Finatto

voo de cegonha. Salamanca, Espanha. photo: jfinatto


Um dia ganhei de presente uma caneta suíça de marca famosa. Fiquei muito contente pela lembrança e pela demonstração de afeto. E também porque é um objeto bonito e eu gosto de canetas que fazem companhia aos calepinos que estão sempre comigo.

Mas tem um problema: a caneta é cara. A alegria inicial fez-se receio: e se eu (que ando sempre com uma caneta enfiada no bolso da camisa) esquecer ou perder essa jóia em algum café, livraria ou na rua, como vai ser? Uma coisa tão valiosa.
 
Só de pensar nisso desisti de utilizar a nova caneta no meu dia-a-dia. Guardei-a no estojo e lá ficou quieta na escrivaninha do escritório. Quer dizer, não faz parte da minha realidade.

Não costumo andar atrás de objetos valiosos de grifes da moda. Não tenho temperamento nem disponho de dinheiro pra isso, pelo contrário.
 
Sinto-me no meu habitat no meio das coisas simples.
 
Cultivo, como a maioria, algumas fantasias. Uma delas é fazer viagens por mapas, livros e revistas de viagem. Viajo sem gastar um tostão. Foi nessa condição que fiz certa vez o Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. As solas das minhas botas ainda conservam a terra daqueles passos andarilhos.
 
Em certos dias olho para as minhas botas e é como se estivesse lá outra vez. Encho os pulmões com a aragem dos campos e pomares da Galícia, revejo amigos peregrinos que encontrei pelo caminho. Pego a caneta do bolso (uma bem comum) e tomo notas no caderno de viajero, sentado num tronco caído na beira da estrada.
 
O fato de não ter trilhado, de verdade, os Caminhos de Santiago de Compostela não torna menos bela a minha viagem nem menos reveladoras as minhas anotações. Essa é a ventura de viajar no pensamento.  
 
E fico feliz toda vez que escuto o som inaudível das minhas botas pisando aquelas estradas de chão batido.
 
Essas botas invisíveis são a prova de que posso andar, quando quiser, por caminhos nunca antes navegados. Sou peregrino de espírito.

Os melhores caminhos dessa vida são os que trilhamos com a imaginação.
 

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Ler e escrever

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto. grafite de F. Pessoa no Chiado, Lisboa, 2007

Ler é uma maneira de ser feliz mesmo estando rodeado de infelicidade. O livro é o meio de transporte mais simples e portátil que existe. Com ele fazemos grandes viagens sem sair do lugar, sem passaporte, sem medo de avião.
 
Escrever é um jeito de suportar as realidades da vida e, sobretudo, uma maneira de não se matar diante das imensas adversidades e frustrações. Um modo de ir além dos ossos do cotidiano.

O processo da escrita traz em si a alegria da realização, mas traz também um bocado de angústia e sofrimento junto.

Poucas pessoas tiveram uma vida mais sem graça do que Fernando Pessoa (1888-1935), cujo 127º aniversário de nascimento se comemora neste sábado, 13 de junho. E, no entanto, está entre os grandes gênios literários da humanidade. Através da poesia viajou todo o universo sem sair de Lisboa.

A sua poesia o salvou e de alguma forma nos salva também.
 
Ele foi pobre materialmente, viveu encostado nos parentes, deparou-se com o paredão duro, cinza e desumano do mundo, mas nos deixou um legado espiritual imenso. Ele bebeu muito. Mas sua verdadeira cachaça foi sempre o escrever. Nele operou-se o milagre da palavra escrita como poucas vezes acontece.

Feliz aniversário, Fernando.
 

terça-feira, 9 de junho de 2015

Aniversário de Fernando Pessoa

 
Imagens do poeta, Casa Fernando Pessoa 
 

A seguir, informe da Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, a respeito das celebrações do 127º aniversário de nascimento de Fernando Pessoa (nasceu em 13 de junho de 1888, em Lisboa, e ali faleceu em 30 de novembro de 1935).

Nos dias 12 e 13 de Junho, sexta e sábado, a Casa Fernando Pessoa celebra o aniversário de Fernando Pessoa, no espaço da CFP e na Feira do Livro de Lisboa.

Começamos o brinde no dia 12, sexta, às 17h00, com o lançamento do livro O Meu Tio Fernando Pessoa, uma antologia de textos do autor, organizados pela sobrinha Manuela Nogueira.
Dia 13, sábado, às 15h20, à hora a que, em 1888, nascia Fernando Pessoa, arranca na CFP o recital Pessoa Grande às Mais Pequenas. Ainda na CFP propomos uma visita guiada especial à casa habitada pelo autor: às 17h00, em português e com desconto de aniversário.
A celebração na Feira do Livro de Lisboa conta com a oficina para crianças e famílias, Descalçar Botas d'Elástico, às 18h00, e o regresso de Café Orpheu - Segundo Turno, às 18h00 e às 21h00, com um programa transversal a cruzar a música, a performance e a imagem.
E, em dia de aniversário, as prendas são para quem nos visita: a entrada na CFP tem um desconto de 50% e são várias as oportunidades na nossa loja-livraria.

Todos os detalhes de programação em www.casafernandopessoa.pt
Vemo-nos por cá, até breve.
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O barbeiro de Fernando Pessoa:

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Passos nas cercanias do oblívio

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto. Estação das Águas Moinhos de Vento


Uma parte dele diz que já esqueceu. Não tem lembrança de tal pessoa. Esqueceu a cor dos cabelos, dos olhos. O jeito de falar e de sorrir, quando se encontravam.

A mão não guardou a forma dos seios. Se havia doçura no beijo?, não tem memória.
 
A outra parte, porém, lembra até o perfume daquela mulher, o modo que ela tinha - só ela - de retirá-lo do poço escuro, o calor dos corpos entrelaçados.

Recorda com ternura os passeios na estação das águas, entre palmeiras imperiais, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre.

As vozes de ambos ainda se ouvem nas tardes longínquas.
 
Esta é talvez a parte mais doída. Mas é a mais viva. A que faz com que ele se sinta menos só na cidade abandonada.

O tempo é um mistério e uma armadilha. 30 anos passam num instante.
 

domingo, 7 de junho de 2015

Fama

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 

É possível
que ele seja
o maior poeta vivo
do edifício

trata-se, claro,
de mera
probabilidade:

o prédio é muito habitado
lápis e papel todos têm
sensibilidades contidas
trabalham na calada

mas até o momento
que se saiba
nenhum vizinho
lhe retira os louros
e ele pode dormir
tranquilo

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Do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Tratado geral das marés

Jorge Adelar Finatto 
 
photo: jfinatto


O rio noturno, povoado de estrelas, atravessa a cidadezinha em busca do mar. Na volta, traz o céu pintado de azul, conchinhas para guardar segredos e peixes para iluminar a vida.