segunda-feira, 6 de julho de 2015

Amar os caminhos, os ventos

Jorge Adelar Finatto

 
photo: jfinatto


Ninguém deixa a velha casca sem sofrimento. O difícil parto de si mesmo. As verdadeiras mudanças vêm de dentro pra fora.

Ler o roteiro da nossa história para transformá-la requer reconhecer as circunstâncias, um olhar amoroso e crítico sobre a paisagem da qual fazemos parte.

Eu sou eu e minha circunstância, o ensinamento mais conhecido de Ortega y Gasset, principalmente entre os que nunca leram o filósofo.

É necessário buscar o sentido do que nos rodeia, procurar entender as suas razões, cultivar a claridade, assim nos estimula o mestre.*
 
É preciso, digo eu, secar as lágrimas, tirar o pó da roupa, conjurar os medos, não desistir.

Amar os caminhos, os ventos, seguir em viagem.

Nada como a segunda-feira pra botar o pé no mundo.

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*Meditações do Quixote. José Ortega y Gasset. Comentários por Julián Marías. Livro Ibero Americano Ltda. Tradução de Gilberto de Mello Kujawski. São Paulo, 1967.
 
Ortega y Gasset e as Meditações do Quixote:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/07/ortega-y-gasset-e-as-meditacoes-do.html 

  

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Somos uma irrecusável perda sob o sol

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

Não suportamos mais despedidas. Quando alguém morre ou vai-se embora, fica um buraco insuportável na paisagem.

 
Inverno. Passo dos Ausentes é um lugar perdido na Serra do Rio Grande do Sul, cercado de neblina e vento. Um resto de sol, entre nuvens, ilumina as poucas ruas. 

As folhas secas caem no chão. Passam vultos na praça, fugindo do frio e da noite próxima.

O inverno impõe um ritual próprio. Nos recolhemos cedo em torno do fogão a lenha, os pinhões assando na chapa, a água esquentando na chaleira. Pouco saímos à rua. Nos tornamos invisíveis.

Somos poucos os habitantes da velha cidade. Estamos em extinção.

A população, ao invés de aumentar, está diminuindo ao longo dos anos. Os jovens vão embora cedo, só voltam de vez em quando, em datas especiais. A falta de gente faz com que nos agarremos uns aos outros. Preservar o que resta da cidade, cuidar bem dos que ficaram, é o que nos move.

Somos poucos. A memória e o afeto são nosso escudo contra o oblívio.

Em Passo dos Ausentes, qualquer pessoa é mais do que um simples habitante, é alguém da família. Imprescindível como um amigo ou um parente a quem se quer muito.

Nesse território tão pequeno e esquecido, não podemos abrir mão de ninguém. Nos procuramos e nos reconhecemos uns nos outros. Espelhos humanos é o que somos, espelhos que não podem quebrar. Todos muito diferentes entre si, todos indispensáveis.

Somos poucos e raros.
 
Talvez por isso, mais do que em outros lugares, temos muito presente o sentido da solidão e da brevidade das coisas. As brigas aqui não podem durar mais do que um dia, sob pena de morrermos congelados.

O maestro da banda municipal, o Giocondo, morreu faz cinco anos.

Desde então, não apareceu ninguém como ele pra tomar conta do nobre conjunto. Os músicos tocam as mesmas músicas, fazem  seu trabalho com esforço. Mas não é a mesma coisa. Falta o Giocondo com seu talento, criatividade, sua cabeça branca, no coreto da praça, regendo os componentes da banda, entusiasmando o público do modo como só ele sabia fazer.

Sem a presença do nosso maestro, a banda toca. Mas não encanta.

Os moradores de Passo dos Ausentes são livros vivos, depositários da memória comum. As histórias que cada um traz, as lembranças, os sentimentos, esse acervo é de todos, nada pode ser desperdiçado.

O frio, a garoa, a névoa, a chuva, o vento e a neve não dão trégua. Resta o olhar ao longe através do Contraforte dos Capuchinhos.

O inverno cultiva sentidos extraviados.

Coisas que para outros não têm importância, para nós são essenciais: o rumor do riacho acordando o dia, o som das asas de uma borboleta cruzando o jardim, o canto dos pássaros nos quintais, o ar saturado de oxigênio na mata em volta da cidade, os ramos floridos das buganvílias subindo nos portões, as cartas e retratos antigos no fundo das gavetas.

Em Passo dos Ausentes, as pessoas ruminam tudo o tempo todo. Vasculham o voo das nuvens e das andorinhas azuis, escutam o silêncio das constelações, andam absortas na beira dos penhascos que nos cercam.

Os detalhes das coisas importam. Não estamos à vontade no mundo. Vivemos num tempo mínimo.

Viver nos pesa muito, muito.

Somos uma irrecusável perda sob o sol. Viajantes audazes a navegar contra o mar do esquecimento. Não suportamos mais despedidas.

Quando alguém morre ou vai-se embora, fica um buraco insuportável na paisagem.
 
Os fantasmas costumam encontrar-se na estação de trem abandonada. Ali Juan Niebla, o bandoneonista cego, executa seus concertos todas as terças e quintas, às cinco da tarde, esperando os passageiros do trem que nunca chega.

No banco da gare vazia, com o grosso capote e os óculos escuros, seus dedos deslizam rapidamente, às vezes suavemente, sobre o teclado branco e preto, enquanto movimenta a cabeça para os lados, para trás, para frente. 

Sempre em silêncio, com suas grossas mantas e casacos de lã, os fantasmas sentam perto dos trilhos cobertos de hera,  ouvem o concerto de Niebla. 

O relógio redondo e preto, na entrada da estação, está parado desde a metade do século passado.

Diante da evasão das pessoas em busca de outros sonhos e horizontes, e do avanço do oblívio nas ruas e casas, precisamos urgentemente reconstruir a cidade do afeto, da memória  e do encontro. Será que conseguiremos?

Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.

No austero silêncio das nuvens, essa página de busca-vida.
 
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Histórias de Passo dos Ausentes. Registro na Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Escritório de Direitos Autorais, Rio de Janeiro, nº 663.190.

Texto  revisto, publicado antes  em 26 de julho de 2010.
 

segunda-feira, 29 de junho de 2015

A hora de silenciar

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto


A arte será sempre para poucos. Só para os que se deixam tocar pela emoção. Aqueles que enfrentam o medo do desconhecido e não fogem do encontro.  Um pássaro prestes a alçar voo.
 
Os que se fecham não participam do rico universo cognitivo e sensitivo que a arte proporciona. Trancam-se dentro de si mesmos e só têm olhos para o que vai na superfície das coisas, não querem ver o que há do outro lado.
 
Não raro vivenciamos os dois estados de alma, principalmente o de querer fechar-nos para a vida, numa atitude de proteção. Se eu não sentir, não me envolvo com nada e não sofro.
 
Só que o preço que se paga para este não sofrer é muito mais alto do que aquele de abrir-se para o sentimento. Na arte como na vida.
 
O que não significa jogar-se dentro do abismo só para ver o que tem lá dentro. Ninguém pode andar por aí pela selva do mundo sem bússola e sem equipamento de sobrevivência.
 
As obras de arte não substituem o viver. Apenas realçam sua beleza, chamam a  atenção para sua grandeza, sua dignidade, destacam seu irrecusável valor e sua raridade.
 
O espírito de Deus repousa na natureza e, principalmente, nos seres humanos. O artista consegue apreender um pouco desse espírito no trabalho que realiza, tornando-o sensível para nós.
 
É preciso esforço para aproximar-se desse espírito e da beleza. O brutamontes está condenado à escuridão. Nunca experimentará a claridade no coração. Nunca saberá a diferença entre uma escultura de Rodin e um manequim de gesso abandonado numa vitrine qualquer.
 
Pensando nessas coisas, pergunto que pessoas ainda se emocionam lendo um livro, num tempo em que as palavras perderam o sentido?
 
Que raros leitores lerão as linhas desta página de internet?
 
Escrevo porque encontro ainda um certo encanto e uma esperança irracional no ato de escrever. No dia em que isso acabar, será então a hora de silenciar.
 

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Por uma cidade viva

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto


Como viver com alegria em Porto Alegre? Está cada dia mais difícil conciliar um pouco de leveza com tanta violência, tanto ódio, tanta indiferença, tantas mortes nas ruas da nossa cidade.

Impossível abstrair o entorno e andar por aí como se não se vivesse no purgatório (se é que já não estamos na estação do inferno). É necessário um grande esforço de transcendência e superação para descobrir o lado humano das coisas.
Passei os últimos 45 dias em Porto Alegre.  Foi um período muito duro. Já não reconheço a cidade. A boa educação, a cordialidade, a hospitalidade, o cuidado com o outro são raros. Percebi como nunca a péssima qualidade da administração municipal.

Um reflexo das péssimas administrações do Estado e da União. Não existe rua sem buraco, não existe segurança, não há lugar sem filas e, por toda parte, caras amarradas e descortesia. Nada restou da cidade acolhedora. 

A grossura e o medo tomaram conta. Presenciei selvagerias de envergonhar. As pessoas se odeiam no geral e, no trânsito, em particular, a guerra é total. Ódio visceral de quem que não aceita qualquer negociação. Pobres das crianças que assistem apavoradas a cenas de hostilidade e discussões entre motoristas. As mulheres estão dirigindo agressivamente como os homens.
Inaceitável, por outro lado, que um Estado com a história e a cultura do Rio Grande do Sul mantenha, na capital, uma estrutura desumana e medieval como o Presídio Central, onde amontoam-se homens em ambiente sórdido e insalubre com todo tipo de sofrimento e humilhação.

O presos pagam pelo que fizeram e, principalmente, pelo que não fizeram, através das "penas acessórias", isto é, todos os males não previstos em lei que lhes são infligidos, tais como doenças e submissão violenta a outros presos. O que se pode esperar dos indivíduos que saem de lá, senão a desconsideração da vida depois que voltam para as ruas? O que a sociedade tem feito para mudar isso? 
A corrupção nos altos escalões da República, com mensalões, petrolões e mais o que não se sabe, estoura inevitavelmente na vida do cidadão. O dinheiro público indispensável para melhorar o país (e a cidade) foge, literalmente, pelo ladrão.

As pessoas honestas temem por suas vidas e pela vida de seus familiares, temem por seus empregos e pelo dia de amanhã. Não sabem o que fazer e nem a quem recorrer. Para amenizar os absurdos cometidos pela gestão temerária e pela corrupção, transferem-se as incontáveis perdas e desvios para a conta da população.

Não há economia que suporte este círculo infernal no qual uns poucos espertos se apropriam do país em seu benefício. 
Só sei que é preciso lutar contra a barbárie e trazer a vida de volta para o nosso dia-a-dia. A começar pelo direito de viver com um mínimo de alegria. Penso que isto só é possível a partir de compromissos claros com a justiça, com o respeito ao outro e com a dignidade da vida de todos. 

Necessitamos urgentemente de ações concretas e coletivas de reconquista da cidade para, com ela, recuperar a alegria de viver. Vamos enfrentar a escuridão com a luz das palavras e com a força humanizadora dos gestos de libertação. Sejamos todos criadores desta obra.
 

terça-feira, 23 de junho de 2015

Racismo continua fazendo vítimas. Até quando?

Jorge Adelar Finatto
 
Plínio Marcos*
 
 
O racismo é um fuzilamento a priori.  Às vezes o fuzilamento é moral, outras é tragicamente real. Pretende-se eliminar o outro pela cor da pele, pelo tipo de cabelo, pela forma do nariz  e dos lábios, pela circuncisão, pela religião, pela cultura, pela origem, por coisas que nada têm a ver com o interior e com os valores da pessoa.

Certa vez, conversando com Plínio Marcos (1935-1999) - o grande dramaturgo brasileiro - ouvi-o dizer que, no Brasil, a discriminação não é dirigida somente contra o negro, o índio, mas contra os "encardidos" de modo geral.

O encardido, segundo entendi, é o pobre que luta arduamente para não morrer de fome a cada dia, cuja aparência sofrida, em razão dos maus tratos da vida, da exposição a toda sorte de humilhações e dificuldades, nas ruas banhadas de sol ou molhadas de chuva, acaba sendo comum a todos na sua situação. Na visão de Plínio, há uma forte discriminação social contra os oprimidos.

A vítima de racismo é agredida porque é negra, judia, indígena, árabe, asiática, cigana, etc., tudo isso agravado quando é portadora de deficiência física. O racista quer destruí-la porque é diferente. Não tolera a diversidade no modo de ser, no pensamento e nos traços. Recusa-se a conviver por várias razões, inclusive por temer disputas no mercado de trabalho e no acesso a serviços de bem-estar social. Como se os discriminados fossem párias sociais, e não trabalhadores e geradores de riqueza.

O ódio advém de uma raiva ancestral a quem é diferente. A prepotência está de tal forma arraigada que alguns só saciam sua sede de vingança com sangue derramado. É difícil precisar de onde vem esse sentimento monstruoso. Mas sabe-se que muitas vezes tem origem no interior de famílias refratárias ao afeto e ao conhecimento.

Na noite de 17 de junho passado, mais uma vez teve lugar o horror, nos Estados Unidos. Um jovem branco matou nove pessoas no interior de uma igreja tradicional da comunidade negra da cidade de Charleston, na Carolina do Sul. As pessoas estavam reunidas para fazer estudo bíblico quando o homem começou a atirar.

A governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley, disse: "Enquanto ainda ignoramos os detalhes, sabemos que jamais entenderemos o que motiva uma pessoa a entrar em um dos nossos locais de oração e tirar a vida de outros". ¹ De fato, não há compreensão possível para semelhante barbárie. Foge completamente a qualquer entendimento.

No Brasil, este tipo de assassinato não costuma acontecer desta maneira. Mas os jovens negros continuam sendo maioria entre as vítimas de violência. ²

Existem, como se sabe, inúmeras formas de racismo. A maior parte delas é velada entre nós. O racismo à brasileira é ardiloso. Como racismo é crime inafiançável e imprescritível, o racista não passa recibo. Mas se manifesta na hora de negar "sutilmente" a vaga no emprego, ao prejudicar o acesso a um direito, ao agir com desprezo, indiferença e má educação.³ 

Só a aplicação rigorosa da lei e a educação poderão mudar este quadro, no Brasil e em toda parte. Sem esquecer, por óbvio, as ações afirmativas já em curso como quotas para negros e índios em instituições de ensino e carreiras públicas.

Não nos iludamos: o racismo é algo ainda muito presente. É assombroso falar em racismo numa nação caracterizada como das mais mestiças do planeta.

A diversidade é a identidade por excelência do Brasil e é a melhor contribuição que podemos dar ao mundo. 

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¹ globo.com:
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/06/atirador-de-charleston-sentou-com-fieis-na-igreja-diz-policia.html
² Inesc:
http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-gerais/2015/maio/indicador-inedito-mostra-que-jovens-negros-sao-principais-vitimas-da-violencia-no-brasil
³Racismo à brasileira
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/05/racismo-brasileira.html
 *O crédito da foto de Plínio Marcos será registrado assim  que conhecido.

domingo, 21 de junho de 2015

Refúgio

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto
 

Tudo tão frágil na vida
o mundo inteiro cabe num abraço

Medos povoam a insônia
a chuva lá fora é a infância
com seus tesouros submersos
no navio sem leme nem capitão
do tempo

Melhor me refugiar no teu corpo
fingir que tudo está tranquilo
arranjado e bom
como no útero

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Poema do livro O Fazedor de Auroras, J.Finatto. Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1.990.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

A harpa do outono

Jorge Adelar Finatto
 
flores de magnólia. photo: jfinatto

 
Se tivesse estudado música, seria talvez um violonista razoável, desses que dão concertos caseiros em sonolentas tardes de domingo, quando todos cochilam depois do almoço. Apresentaria peças de Villa-Lobos, Jobim e Gnattali e isso acalentaria seu coração. Não precisava mais pra ser feliz.
 
Mas quando ganhou o primeiro e único violão, percebeu logo que entre ele e as cordas não havia nenhuma intimidade. O simples dedilhar, contudo, produzia sons encantatórios aos seus ouvidos, mas aquilo não era música.
 
Não podia ser violonista. Porém a música nunca o abandonou. Era uma das melhores coisas que havia em sua vida.
 
Aos dez anos decidiu que começaria a escrever. Passou a dedilhar o lápis sobre as linhas do caderno escolar. Era uma forma diversa de música, silenciosa, melancólica e solitária. Um concerto íntimo. Coisas que falavam de perto ao coração. Escreveu muito durante anos, publicou pouco em livro.
 
O blog virou uma sala de convivência, com exposição de fotografias, trabalho de escrita, divulgação de outros autores, conversas sobre gente, música, pintura, lugares.

Uma memorabília do tempo.

As folhas da magnólia dedilham, no outono, a harpa do vento.