segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A primeira manhã

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

Porque há hibiscos
                                 na rua
e a primavera
quase sempre
é sentimento
te ofereço esta manhã

como fantasma
não faço mais
que transitar
nessa obscura rota
do adeus

como se fossem meus
colho teus segredos
que o vento carrega
para onde eu não sei

te ofereço esta manhã
a primeira manhã do mundo
para não esqueceres
o bem que te quero

________ 

Do livro Memorial da vida breve, Jorge Finatto. Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
 

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Veneza, la bella signora

Jorge Finatto

photo: jfinatto. Veneza
 
Exposição fotográfica sobre Veneza, no Café Josephina, em Gramado, a partir de 19 de outubro
 
VENEZA é uma mulher madura e encantadora. Não esconde a idade, pelo contrário. O tempo é seu amigo e com ele troca confidências à beira dos canais e do casario antiquíssimo.

 Os anos não lhe roubaram a beleza nem o poder de sedução. Os seus traços inesquecíveis, a sua luz de brilhantes multicoloridos que caem do céu e cobrem as águas. É impossível imaginar o mundo sem ela.

Olhando a vetusta cidade com olhos do coração, o visitante conhecerá um pouco de sua alma luminosa. 
 
Veneza é um das cidades mais visitadas e fotografadas do planeta. Uma cidade de espelhos, segredos e mistérios. Perambular sem pressa e sem itinerário certo por seus tortuosos caminhos (as fondamenta),  à margem dos canais, é essencial para descobrir seu corpo cheio de cálidas surpresas.
 
A pé, numa gôndola ou num vaporetto¹, o passeio é sempre revelador. Não nos cansamos de admirar a arquitetura, as pontes, as paredes de tijolos à vista, as janelas com flores, os telhados, as roupas a secar ao vento, as praças com pessoas de todos os lugares (talvez você dê sorte e encontre um veneziano em meio à multidão...), os longos e estreitos corredores que se perdem nos séculos.

Veneza, Ponte de Rialto (1591). photo: jfinatto
 
Veneza se deixa visitar, olhar, fotografar. Mas não se iluda o viajante: poucos terão acesso a seus aposentos interiores, à sua alma. Estes lugares não são para olhos estrangeiros.
 
Recatada, a bela senhora nunca se deixa desvelar por completo. É preciso saber tocá-la com o olhar, delicadamente. Com a ponta dos dedos da sensibilidade. Como quem toca uma estrela muito frágil fadada a desaparecer (o aumento do nível das águas, embora lento, estaria levando ao afundamento da cidade).

Reuni fotos que fiz em Veneza e organizei uma exposição com o objetivo de compartilhar minhas impressões sobre a querida República Sereníssima. São 17 painéis que estarão à mostra no aconchegante Josephina Café², no coração da cidade de Gramado, a partir do dia 19 de outubro (quarta-feira). Estão todos convidados.


Josephina Café, Gramado

 ________
 
¹Embarcação típica de Veneza, usada como meio de transporte pelos canais, com motor a diesel, e não mais a vapor como antigamente.
²Josephina Café:
http://www.josephinacafe.com.br/
 

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Da fugaz eternidade

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

Antigamente, 
tudo conspirava
a favor da eternidade.

Agora, não tiro
os olhos do prazo
de validade...
 

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Taça de café, pão com manteiga e cinema

Jorge Finatto

Cartaz do filme
 
Olho a chuva pela janela do café da praça enquanto bebo a inefável taça de café com leite acompanhada de pão com manteiga. Agora chove grosso aqui em Gramado, abriram-se as torneiras do céu. É setembro e isto é sempre assim, fim de inverno.
 
Acabou no sábado o Festival de Cinema de Gramado. Tinha me programado para assistir filmes do Uruguai, Argentina, Chile e Cuba. Comprei os ingressos. (A chuva engrossou mais ainda.) Acabei indo ver o cubano Espejuelos Oscuros (óculos escuros, ou, numa outra acepção, armadilha, chamariz, ardil, trampa obscura), um filme muito interessante.

Escrito e dirigido pela jovem diretora Jessica Rodríguez, a história trata de uma mulher cega que mora numa casa isolada nas cercanias de Havana. Sozinha, ela tem apenas a companhia de um gato. Até o dia em que vê a residência invadida por um criminoso fugitivo do presídio. Para defender-se da indesejada visita, ela passa a contar-lhe histórias.
 
Espécie de Sherazade de As Mil e Uma Noites, distrai seu interlocutor com três casos, três sub-histórias em que os atores são os mesmos da trama principal. O recurso narrativo é bastante criativo, sendo que os três relatos contêm elementos da história cubana contemporânea.
 
Do território da imaginação ela traz histórias que vão tecer a teia deste inusitado encontro. O desfecho disso tudo é surpreendente. Os atores Laura de la Uz e Luis Alberto García são muito bons.
 
O filme não ganhou nenhum prêmio no festival, mas tem substância e mérito. A começar por ser um filme cubano que não fica restrito ao elogio da Revolução de 1959, seus personagens e suas conquistas, transformada numa ditadura que já dura (muito dura!) há 57 anos. Pelo contrário, revela até uma certa impaciência e repulsa com bordões revolucionários. Ou estarei vendo coisas?
 
A película tem mais de uma leitura e pretendo vê-la outra vez quando entrar no circuito das salas de Porto Alegre. Creio que o grande escritor e cinéfilo cubano Guillermo Cabrera Infante (presente no blog) gostaria do filme.

Pois este foi o único longa-metragem que assisti. Tive de viajar logo no segundo dia e não pude acompanhar  mais nada. Os outros ingressos ficaram na gaveta, não deu tempo sequer de oferecê-los a alguém.
 
Escrevo essas linhas na tela do celular, novo brinquedo que me dei. Não utilizei o Word (deverei fazê-lo em breve). Escrevi com a canetinha que vem acoplada no aparelho, servindo a tela do celular como bloco de anotações. Mas não vou aposentar o calepino nem a caneta de tinta. Ainda sou um dinossauro da Era de Gutenberg.

Conversa entre pedras na rua.

- O planeta está lotado?
- Não, existe espaço pra todo mundo. Mas os donos de tudo cobram alugueres cada vez mais impossíveis.

sábado, 3 de setembro de 2016

Ó tu, que vens de longe...

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

O LADO BOM da vida é que estamos sempre redescobrindo o mundo. Quando o coração desiludido pensa que já viu tudo, nada mais havendo que mereça um olhar, eis que algo ressurge da sombra, e é como a chuva fresca sobre a terra no estio.
 
Estava garimpando na estante do escritório quando encontrei o volume de poesias completas do jornalista e poeta Alceu Wamosy, que não lia há muitos anos. Peguei-o.

photo: Alceu Wamosy

Um dos grandes bardos do Rio Grande do Sul, nascido em Uruguaiana (fronteira com a Argentina) em 14 de fevereiro de 1895, deixou-nos um belo legado literário nos seus escassos 28 anos de vida.
 
Morreu em decorrência de um ferimento a bala em 3 de setembro de 1923, na batalha de Poncho verde, em Dom Pedrito, durante a Revolução de 1923. A morte ocorreria poucos dias depois, em Santana do Livramento (fronteira com o Uruguai), em 13 de setembro daquele ano. 
 
Releio agora seus poemas com o mesmo encanto da vez primeira. O Alceu simbolista que colheu, em sua breve e bela obra*, ecos do parnasianismo, construindo poemas de delicada e profunda extração, atento à métrica, ao ritmo, à rima, sem nunca renunciar ao sentimento. Esta disciplina da composição é, como se sabe, muito difícil.
 
Em Alceu Wamosy, jovem e iluminado vate, a emoção nunca sai ferida no embate com a engenharia do verso. Antes, completam-se. Coisa rara.
 
A seguir, o soneto Duas Almas, o mais conhecido de sua lavra, porta de entrada para a poesia lírica e universal de Alceu Wamosy. Entre os admiradores do poeta, podemos lembrar o maestro soberano e também poeta (de lindas letras musicais e outros textos) Antonio Carlos Jobim.
 
Duas Almas
                      A Coelho da Costa
 
Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada...
 
A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.
 
E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!
 
Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...
 
___________
 
Poema extraído do livro Alceu Wamosy, Poesia Completa. Edipucrs, Instituto Estadual do Livro, Alves Editores. Coleção Memória, introdução de Cícero Lopes. Porto Alegre, 1994.

*Escreveu três livros: Flâmulas, Na Terra Virgem e Coroa de Sonho.
 

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Setembro em prelúdio

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto, 30.8.2016
 
É setembro, raro leitor (se é que você está mesmo aí do outro lado. Os tucanos, a julgar pelas caras e bocas, acham que sim).
 
É setembro e o jardim começa a florir e a cheirar seus cheiros de primavera. Eu sempre sonhei ter uma casa com um jardim para cultivar e admirar. Sei bem que toda ideia de propriedade, nesta vida, é uma abstração. Ninguém é dono de nada. Só os tolos.
 
Um dia comprei uma casa. Com grande sacrifício, como acontece com as pessoas que têm a ventura de ter um trabalho e a garantia do salário no fim do mês (uma graça divina, neste tempo em que 12 milhões de brasileiros estão tragicamente desempregados).
 
A casa tinha um jardim. Um sonho realizado. Os sonhos sempre precisam de outras pessoas que nos ajudam a torná-los realidade.

O mais bonito foi a forma como o casal proprietário do imóvel nos fez a transmissão. Na verdade, mais que a casa, nos entregaram o sentimento que nela viveram ao longo de anos.
 
Numa carta dentro da pasta com os documentos, contaram o quanto tinham sido felizes ali. Num anexo, relacionaram todas as plantas e flores que haviam cultivado, com os nomes de cada uma e informações sobre como mantê-las. Disseram esperar, sinceramente, que fôssemos tão felizes quanto eles naquele ambiente.
 
Não foi uma simples compra e venda. Foi uma relação espiritualizada entre pessoas que sabem que tudo é transitório. Um dia transmitiremos nossos bens a outros, nos desfazendo de tudo.

Sairemos da vida tão nus como quando nela entramos. Despidos de toda matéria e vaidade. Levaremos talvez a recordação de um jardim e de uma casa que, por certo tempo, cultivamos e amamos.
 

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Deve ser primavera

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto, 25.8.2016

DEVE SER a chegada da primavera. E com ela os ares de um novo país.
 
Devem ser os primeiros sinais, quase uma promessa, de um setembro em flor com sua luz à flor da pele e da alma. Renasceremos do fundo das trevas.

Deve ser o avesso do ódio e do sectarismo.
 
Deve ser a urgente necessidade de transformação da vida ante o insuportável asco provocado pela podridão dos últimos anos.
 
Deve ser o cansaço absoluto diante do cinismo e da hipocrisia postos em palanque, todos os palanques, da nação.
 
Deve ser a réstia de esperança que insiste em brotar no coração. A teimosia do sentimento sobre a indiferença, da sinceridade sobre a mentira, da vida sobre o sofrimento.
 
Deve ser porque os pássaros voltaram a cantar e a comer bananas na sacada do escritório, entre eles os plumiluminosos tucanos. Regressaram após sentida ausência para reafirmar o milagre da existência.

Devem ser essas passagens secretas que atravessam o invisível para um bosque de silêncio e paz.

Deve ser essa luz amiga a magoar a escuridão.