terça-feira, 25 de outubro de 2016

Não me abandones

Jorge Finatto
 a Chet Baker*
 
Chet Baker (1929-1988)

Não me abandones
povoa a noite
com teu suprimento
de afeto

enche o deserto
com teus passos

em segredo
devolve-me
a delicadeza
daqueles dias

me dá outra vez
o diamante
da tua
presença


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*Do livro O Habitante da Bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Leia também Chet on poetry:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/uma-viagem-sentimental.html

sábado, 22 de outubro de 2016

A crônica de Pedro Mexia

Jorge Finatto

 
Algumas dessas crónicas sobre mim não são de facto sobre mim. Se fossem, certamente não interessavam a ninguém (sobretudo não me interessavam a mim). Essas crónicas são também, assim o espero, sobre si, leitor. Meu atento leitor, meu semelhante, meu irmão.
   
Pedro Mexia, trecho da crônica Primeira Pessoa.(grafia de Portugal)*


Ser um bom escritor é muito mais do que uma questão de inteligência, cultura e técnica literária. É preciso antes que haja vida por trás das linhas, uma cabeça e um coração capazes de comover-se com o ser humano no difícil ato de viver. E é preciso ser duro às vezes.

Descobrir um escritor que nos faz reencontrar a ventura do texto é um acontecimento cada vez mais raro, ao menos pra mim. Quando acho um livro assim, os meus dias se enchem de uma espécie particular de alegria, algo que, se não é um pedaço do paraíso, anda perto disso.
 
Nas minhas viagens a Portugal, garimpando em alfarrabistas e livrarias, tenho encontrado autores atuais de grande talento. Não só portugueses como de países outros da comunidade lusófona.  Por uma dessas razões que escapam à compreensão, nossas literaturas estão separadas. Não se conhecem, parece até que falam línguas diferentes. Algo muito além do Atlântico nos divide.
 
O meu primeiro passeio, em qualquer cidade, é a banca de jornal e, depois, o café. Lisboa oferece ótimas estações. Foi assim que conheci dois grandes cronistas portugueses: Manuel António Pina e António Lobo Antunes, autores que escrevem também em outros gêneros. Pina, infelizmente, já morreu. Imensa falta me fazem os textos que escrevia no Jornal de Notícias. Escrevi sobre ambos nesta página elétrica.

Pois um dia desses, lendo um artigo do escritor angolano José Eduardo Agualusa, no jornal O Globo, com o título A literatura pode sobreviver sem crítica?, encontrei referência ao lisboeta Pedro Mexia.
 
Resolvi procurar na livraria, em Porto Alegre, algum título dele. E encontrei justamente o livro de crônicas Queria mais é que chovesse, que marca sua estréia no Brasil, terra de cronistas do porte de Alvaro Moreyra, Rubem Braga, Olavo Bilac, Drummond, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues e José Carlos Oliveira, mestres do gênero.

Não imaginava o que me aguardava nessas páginas. Um dos melhores cronistas da atualidade, autor que areja o gênero, conferindo-lhe graça, beleza, ironia, realismo e poesia, colhidos no pátio dos dias. Uma mistura muito bem dosada, e refinada, desses ingredientes povoa seu texto.

Só os incautos podem considerar a crônica um gênero menor ou fácil.

Existem escritores belos e vazios como pavões de feltro. E há aqueles que carregamos no bolso do casaco por onde andamos. Já não podemos passar sem eles. Este é o caso de Pedro Mexia, grata revelação em tempos de tantos pavões de olhar mortiço empoleirados nas estantes.
 
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*Queria mais é que chovesse. Pedro Mexia. Editora Tinta-da-China Brasil, Rio de Janeiro, 2015.
 

terça-feira, 18 de outubro de 2016

O Nobel de Bob Dylan

Jorge Finatto
 
Bob Dylan *
 

BOB DYLAN (Robert Allen Zimmerman, 75 anos) é um artista inspirado e inspirador. Alguém que surgiu da obscuridade e construiu um espaço na canção mundial.

Tornou-se um músico original, intérprete criativo, pensador e poeta do nosso tempo. Toca com lirismo e fé aquela gaitinha de boca. Um autêntico menestrel viajando na Via Láctea.
 
Causou estranheza o fato da Academia Sueca ter-lhe concedido, na quinta passada, 13 de outubro, o Prêmio Nobel de Literatura. Normalmente concedido a escritores de livros (em poesia ou prosa), este ano fugiu do padrão. Muita gente vai às livrarias atrás de obras do agraciado com o galardão. Isto dificilmente ocorrerá com o Nobel de 2016, porque o material literário de Dylan é muito escasso e, no Brasil, quase inexistente. O interessado deverá, neste caso, dirigir-se à seção de discos.
 
Um dos livros aqui editados intitula-se Tarântula (Editora Brasiliense, 1986), de prosa poética, e o outro Crônicas - volume 1 (Editora Planeta, 2005), ambos difíceis de encontrar. Não li nenhum. Encontrei a informação de que, em novembro próximo, nos Estados Unidos, será lançado um livro com todas as letras do famoso compositor. Tenho muita vontade de conhecer um livro de pinturas dele sobre o Brasil.
 
O que chama atenção é a mudança de enfoque do prêmio, levando a questionar os limites do que se considera literatura. Será apenas aquela a que estamos acostumados, livresca, impressa ou eletrônica? Letras de música, caso de Dylan, são também literatura? Para a Academia Sueca, parece que sim.
 
Aliás, não há novidade em considerar letras um gênero dentro da literatura, havendo estudos nesse sentido. No Brasil, país de poucos leitores, os textos musicais são uma das principais formas de expressão e comunicação com o público. Através deles, os autores celebram a sensibilidade, a poesia e fazem a leitura da  nossa realidade. Temos poetas extraordinários na canção popular, como Lupicínio, Cartola, Vinicius, Tom, PC Pinheiro, Caetano, Chico, Fernando Brant, Ary Barroso, Caymmi e muitos, muitos mais.
 
Não vejo, portanto, blasfêmia na atribuição do Nobel a Dylan. Ele é, por sua arte, merecendente.
 
Penso, contudo, que o prêmio de literatura deveria ficar com os escritores de ofício, dedicados à produção de obras literárias. Não é exatamente o caso das letras de música. Estas funcionam esteticamente junto com a canção (para isso são feitas). Isoladas, nem sempre atingem um resultado artisticamente válido. O que deveria ser criado é um Prêmio Nobel de Música, contemplando-se, assim, especificamente, os criadores desta arte. 
 
Escritor é uma raça tão solitária, sofrida, esquecida, torturada e difícil de entender que merece, ao menos, ter um Nobel por ano para aliviar um pouco as dores, traumas, recalques, incompreensões e injustiças.
 
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* O crédito será dado assim que conhecido o autor da imagem.
 

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Olhar sobre Veneza

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 

Nesta quarta-feira, 19 de outubro, começa a exposição de fotos Olhar sobre Veneza. Colhi as imagens perambulando pela belíssima cidade-museu construída sobre 118 ilhas, separadas por canais e ligadas por cerca de 400 inspiradoras pontes.

Naveguei os canais a bordo de leves e deslizantes gôndolas e fiz a pé o percurso tortuoso das fondamenta (passagens à beira dos canais). Não existem automóveis, motos, ônibus, metrô, etc. Caminha-se ou navega-se em Veneza, e isso já faz a gente se sentir noutro planeta. Os detalhes vocês verão nos 17 painéis que estarão expostos no Josephina Café, em Gramado. Benvenuti a tutti!
 

photo: jfinatto

 Venezia, la bella signora:


sábado, 15 de outubro de 2016

Paixão de primavera

Jorge Finatto

photo: ipoméia azul. jfinatto, 14/10/2016

 
NINGUÉM ESTÁ IMUNE a uma paixão na primavera. Supõe-se, contudo, que um cara na minha idade tenha anticorpos suficientes para evitar recaídas e armadilhas.
 
Afinal, já levou rasteiras, deu com a cara no chão, apanhou bastante. Deve ter aprendido a não brincar com fogo. O tempo arrefece emoções violentas, vive-se mais, digamos, espiritualmente.
 
Não por outra razão inventaram a religião, a literatura, a filosofia, as palavras cruzadas e os blogs. Quireras, quireras, estimado leitor. Não passamos de uns pobres diabos. Veja o que me aconteceu.
 
Ontem, saí de Passo dos Ausentes às 7 da manhã em direção a Nova Petrópolis. Depois de 8 horas viajando serra abaixo na intrépida Linguilingui, contornando sinistros abismos, cheguei ao destino e parei para o café da tarde (costume ainda em voga entre serranos da antiga). Logo em seguida, me dirigi ao Recanto das Azaléias, floricultura local do meu agrado. Foi aí que tudo começou.

photo: ipoméia azul. jfinatto, 14/10/2016
 
Numa curva da aléia, entre vasos e flores, encontrei-a, de repente. Ela mal percebeu a minha existência. Eu não tirei mais os olhos dela. O coração acelerou. Por instantes esqueci quem eu era. Toda minha vã filosofia caiu por terra. Eu só tinha tenção pra ela. Indefeso, fiquei a admirá-la. Pura visão.
 
Apaixonei-me, em suma. Seu nome, de remoto sabor grego: Ipoméia. Todo Quixote encontra um dia sua Dulcinéia. Intrépido, levei-a pra casa.

Ao anoitecer, a divina donzela enclausurou-se em si mesma, recolhendo-se em seus secretos aposentos. Ao amanhecer, inaugurou o suave e delicado tecido das inefáveis flores. Sentimento azul.
 
Não podia imaginar que Deus me reservava essa beleza, que eu não mereço, em plena secura do tempo. Mas aconteceu.
 
Ipoméia azul, minha paixão de primavera.

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Escrito sob a boa grafia antiga, vigorante antes do (des) acordo ortográfico.
 

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

A boneca de trapo

Jorge Finatto
 
photo: j.finatto
 
ERA UMA DESSAS TARDES que antecedem o outono em Passo dos Ausentes. O ar outonal nos deixa mais sensíveis diante das mudanças nas cores e das primeiras quedas de folhas. As seivas concentram as forças, evitando qualquer desperdício. Em dias assim, é uma sorte estar vivo.
 
Enquanto atravessava a Praça da Ausência, encontrei uma boneca de trapo caída no chão. Era feita de velhos panos coloridos. Os olhos eram dois botões verdes.
 
Os cabelos, fios de lã repartidos em duas tranças. A boca, um pequeno risco vermelho e sorria.
 
Apesar de perdida, a boneca não parecia muito triste. Apenas carregava um toque de melancolia no semblante, que desapareceu quando a levantei.  Acomodei-a no banco da praça, embaixo de um salgueiro, ao lado do lago.

Fui embora, não sem alguma dor. No início quis levá-la comigo, dar-lhe novo lar. Mas desisti ao pensar que quem a perdeu (uma criança tudo leva a crer) voltaria para buscá-la. Seria de cortar o coração não encontrar a sua boneca de trapo.

Viver tem dessas coisas. Nem sempre (ou quase nunca) podemos ter o que nos encanta. Nem sempre, como no outono, a vida se exalta em delicadas mutações.
 
Num dia, o céu azul nos ilumina, habitado aqui e ali por nuvens cor-de-rosa, o coração bate harmonioso. Noutro, pensamentos escuros, pesados, se espalham e a gente só imagina besteira.

A boneca de trapo me lembrou coisas que perdi na vida. Perdi e me conformei. Porque nada, absolutamente nada, nos pertence nesse mundo.
 
Tudo que temos é emprestado, a começar pela vida. Um dia teremos de devolver. Nada é nosso.

Salvo, talvez, o meigo sorriso de uma boneca de trapo.

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Boneca artesanal da região serrana do Rio Grande do Sul. Texto revisto, publicado em 16 de março de 2011.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O morto-vivo

Jorge Finatto

photo: jfinatto


UM FANTASMA que lê, escreve, caminha invisível pela estrada de terra na encosta escorregadia da montanha.

Aquele que morreu e anda por aí, que teima em acordar, tomar banho, trabalhar, comer, dormir, ter pesadelo, ir ao cinema, ler jornal e livro, beber café.
 
O que espera pelo próximo livro de Guillermo Cabrera Infante, que infelizmente não virá mais.
 
Uma assombração que passa em silêncio em direção à mesa de trabalho e o trabalho é uma expansão de solidão entre nuvens.
 
O morto-vivo, coração pulsante, que resiste escrever o próprio epitáfio.
 
Viver lhe parece pouco, irmão leitor? Querias taça de champanha com uvas graúdas em mesa de toalha de linho, sob pérgula, no jardim das delícias?
 
O meio-vivo, meio-morto, no claro-escuro, ternura impossível, esta cidade gemente.
 
Há um boneco de ventríloco sentado na sua esquerda perna, anotando algaravias que ele pensa e já sonha, quando imagina que ainda vive.