terça-feira, 1 de novembro de 2016

Cais

Jorge Finatto
 
photo: j.finatto
 
 
Tem dias em que saímos
com o corpo nu
para alojá-lo na primeira copa de árvore
e chorar longe dos homens

dias em que os desejos
até os mais secretos
sucumbem apagados
na penumbra

tempo de total privação
da carne e do sonho
tardes em silêncio reveladas
intervalo entre dois mundos

olhamos o céu
no quadrado da janela
esperando ver a face de Deus
procuramos Deus
no íntimo da alma e das coisas
precisamos repousar no colo de Deus
sentir suas mãos nos olhos
para amparar a lágrima quente
que por ali verte

tem dias em que estranhamos
o próprio olhar
que amanheceu mais seco
não reconhecemos a rua
onde tantas vezes inventamos o amor
na sombra dos cinamomos

as melhores viagens
ficaram sonhando no cais
enquanto navios partiam
repletos de homens decididos
em busca de cidades felizes

onde andará o menino
que nos visitava nos dias
em que tudo em volta
parecia desabar?

em que gare deserta
se perdeu o guarda-chuva melancólico
com que meu avô ia à cidade
buscar a porção diária de pão
esperança
e jornal?

tem manhãs em que apesar do sol
não habitamos o claro sentido
de existir
mal percebemos a luz
acalentando o corpo

manhãs em que o carteiro
extravia a carta que irá nos salvar
a notícia tão esperada
que nos revelará
um mundo desconhecido
onde pandorgas falam
e o arco-íris é uma escada
que nos retira do poço

não compreendemos
as mãos cansadas
a boca amarga
com que damos bom-dia aos vizinhos
cumprimentamos os superiores

tem dias em que o isolamento
é tão assombroso
que sentimos tristeza em tudo
principalmente na alegria ingênua
das velhas fotografias
uma dor inevitável
diante dos sonhos da infância

dormimos em quartos de aluguel
projetamos ataúdes de aluguel
as dívidas invadem a porta
os poros

o amanhã ficou torto
na cordilheira dos dias
sem luz

a cidade parou no escuro
sufocou nossos melhores anos
inundou o rio
com seus maus óleos
seu excremento

não merece um verso
sequer uma notícia fugidia
em página de jornal

talvez careça uma bomba
um terremoto
talvez uma flor
povoando o asfalto

estamos um pouco mais tristes
e calados
(um pouso só)

trazemos um gosto de sol
entre os dentes
um resíduo de primavera
na palma da mão
uma promessa de encontro
nos olhos

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Do livro O Fazedor de Auroras, Jorge A. Finatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
photo: Cais de Porto Alegre

sábado, 29 de outubro de 2016

O tempo à beira do arroio

Jorge Finatto

velas. photo: jfinatto

 
SESSENTA VELAS ao vento no meu velho barco, sessenta cidades, sessenta despedidas, sessenta portulanos, sessenta astrolábios, sessenta esperas, sessenta remorsos, sessenta naufrágios, sessenta silêncios, sessenta encontros, sessenta novembros no baú do tempo.

Lembro o arroio que passava atrás da casa lá da infância. Corria à margem da horta e do quintal. Entre mim e o arroio, as alfaces, os pintos, os pinheiros e as roupas no varal . Entre mim e o arroio, a cálida intimidade de amigos de infância, o mundo inteiro pela frente.

As águas vinham do interior profundo da terra. Nasciam em algum remanso dentro da mata, limpas, frescas. Vinham alegres, vinham cantando pelos caminhos sinuosos.

Um dia entrei no meu barco de papel e segui com o arroio em direção ao mar. Depois, bem, tudo veio depois. Mas a casa e o arroio ficaram lá, com os seres amados, guardados num lugar secreto do meu coração onde nenhuma tempestade pode entrar.
 

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Não me abandones

Jorge Finatto
 a Chet Baker*
 
Chet Baker (1929-1988)

Não me abandones
povoa a noite
com teu suprimento
de afeto

enche o deserto
com teus passos

em segredo
devolve-me
a delicadeza
daqueles dias

me dá outra vez
o diamante
da tua
presença


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*Do livro O Habitante da Bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Leia também Chet on poetry:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/uma-viagem-sentimental.html

sábado, 22 de outubro de 2016

A crônica de Pedro Mexia

Jorge Finatto

 
Algumas dessas crónicas sobre mim não são de facto sobre mim. Se fossem, certamente não interessavam a ninguém (sobretudo não me interessavam a mim). Essas crónicas são também, assim o espero, sobre si, leitor. Meu atento leitor, meu semelhante, meu irmão.
   
Pedro Mexia, trecho da crônica Primeira Pessoa.(grafia de Portugal)*


Ser um bom escritor é muito mais do que uma questão de inteligência, cultura e técnica literária. É preciso antes que haja vida por trás das linhas, uma cabeça e um coração capazes de comover-se com o ser humano no difícil ato de viver. E é preciso ser duro às vezes.

Descobrir um escritor que nos faz reencontrar a ventura do texto é um acontecimento cada vez mais raro, ao menos pra mim. Quando acho um livro assim, os meus dias se enchem de uma espécie particular de alegria, algo que, se não é um pedaço do paraíso, anda perto disso.
 
Nas minhas viagens a Portugal, garimpando em alfarrabistas e livrarias, tenho encontrado autores atuais de grande talento. Não só portugueses como de países outros da comunidade lusófona.  Por uma dessas razões que escapam à compreensão, nossas literaturas estão separadas. Não se conhecem, parece até que falam línguas diferentes. Algo muito além do Atlântico nos divide.
 
O meu primeiro passeio, em qualquer cidade, é a banca de jornal e, depois, o café. Lisboa oferece ótimas estações. Foi assim que conheci dois grandes cronistas portugueses: Manuel António Pina e António Lobo Antunes, autores que escrevem também em outros gêneros. Pina, infelizmente, já morreu. Imensa falta me fazem os textos que escrevia no Jornal de Notícias. Escrevi sobre ambos nesta página elétrica.

Pois um dia desses, lendo um artigo do escritor angolano José Eduardo Agualusa, no jornal O Globo, com o título A literatura pode sobreviver sem crítica?, encontrei referência ao lisboeta Pedro Mexia.
 
Resolvi procurar na livraria, em Porto Alegre, algum título dele. E encontrei justamente o livro de crônicas Queria mais é que chovesse, que marca sua estréia no Brasil, terra de cronistas do porte de Alvaro Moreyra, Rubem Braga, Olavo Bilac, Drummond, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues e José Carlos Oliveira, mestres do gênero.

Não imaginava o que me aguardava nessas páginas. Um dos melhores cronistas da atualidade, autor que areja o gênero, conferindo-lhe graça, beleza, ironia, realismo e poesia, colhidos no pátio dos dias. Uma mistura muito bem dosada, e refinada, desses ingredientes povoa seu texto.

Só os incautos podem considerar a crônica um gênero menor ou fácil.

Existem escritores belos e vazios como pavões de feltro. E há aqueles que carregamos no bolso do casaco por onde andamos. Já não podemos passar sem eles. Este é o caso de Pedro Mexia, grata revelação em tempos de tantos pavões de olhar mortiço empoleirados nas estantes.
 
__________ 

*Queria mais é que chovesse. Pedro Mexia. Editora Tinta-da-China Brasil, Rio de Janeiro, 2015.
 

terça-feira, 18 de outubro de 2016

O Nobel de Bob Dylan

Jorge Finatto
 
Bob Dylan *
 

BOB DYLAN (Robert Allen Zimmerman, 75 anos) é um artista inspirado e inspirador. Alguém que surgiu da obscuridade e construiu um espaço na canção mundial.

Tornou-se um músico original, intérprete criativo, pensador e poeta do nosso tempo. Toca com lirismo e fé aquela gaitinha de boca. Um autêntico menestrel viajando na Via Láctea.
 
Causou estranheza o fato da Academia Sueca ter-lhe concedido, na quinta passada, 13 de outubro, o Prêmio Nobel de Literatura. Normalmente concedido a escritores de livros (em poesia ou prosa), este ano fugiu do padrão. Muita gente vai às livrarias atrás de obras do agraciado com o galardão. Isto dificilmente ocorrerá com o Nobel de 2016, porque o material literário de Dylan é muito escasso e, no Brasil, quase inexistente. O interessado deverá, neste caso, dirigir-se à seção de discos.
 
Um dos livros aqui editados intitula-se Tarântula (Editora Brasiliense, 1986), de prosa poética, e o outro Crônicas - volume 1 (Editora Planeta, 2005), ambos difíceis de encontrar. Não li nenhum. Encontrei a informação de que, em novembro próximo, nos Estados Unidos, será lançado um livro com todas as letras do famoso compositor. Tenho muita vontade de conhecer um livro de pinturas dele sobre o Brasil.
 
O que chama atenção é a mudança de enfoque do prêmio, levando a questionar os limites do que se considera literatura. Será apenas aquela a que estamos acostumados, livresca, impressa ou eletrônica? Letras de música, caso de Dylan, são também literatura? Para a Academia Sueca, parece que sim.
 
Aliás, não há novidade em considerar letras um gênero dentro da literatura, havendo estudos nesse sentido. No Brasil, país de poucos leitores, os textos musicais são uma das principais formas de expressão e comunicação com o público. Através deles, os autores celebram a sensibilidade, a poesia e fazem a leitura da  nossa realidade. Temos poetas extraordinários na canção popular, como Lupicínio, Cartola, Vinicius, Tom, PC Pinheiro, Caetano, Chico, Fernando Brant, Ary Barroso, Caymmi e muitos, muitos mais.
 
Não vejo, portanto, blasfêmia na atribuição do Nobel a Dylan. Ele é, por sua arte, merecendente.
 
Penso, contudo, que o prêmio de literatura deveria ficar com os escritores de ofício, dedicados à produção de obras literárias. Não é exatamente o caso das letras de música. Estas funcionam esteticamente junto com a canção (para isso são feitas). Isoladas, nem sempre atingem um resultado artisticamente válido. O que deveria ser criado é um Prêmio Nobel de Música, contemplando-se, assim, especificamente, os criadores desta arte. 
 
Escritor é uma raça tão solitária, sofrida, esquecida, torturada e difícil de entender que merece, ao menos, ter um Nobel por ano para aliviar um pouco as dores, traumas, recalques, incompreensões e injustiças.
 
___________ 
 
* O crédito será dado assim que conhecido o autor da imagem.
 

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Olhar sobre Veneza

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 

Nesta quarta-feira, 19 de outubro, começa a exposição de fotos Olhar sobre Veneza. Colhi as imagens perambulando pela belíssima cidade-museu construída sobre 118 ilhas, separadas por canais e ligadas por cerca de 400 inspiradoras pontes.

Naveguei os canais a bordo de leves e deslizantes gôndolas e fiz a pé o percurso tortuoso das fondamenta (passagens à beira dos canais). Não existem automóveis, motos, ônibus, metrô, etc. Caminha-se ou navega-se em Veneza, e isso já faz a gente se sentir noutro planeta. Os detalhes vocês verão nos 17 painéis que estarão expostos no Josephina Café, em Gramado. Benvenuti a tutti!
 

photo: jfinatto

 Venezia, la bella signora:


sábado, 15 de outubro de 2016

Paixão de primavera

Jorge Finatto

photo: ipoméia azul. jfinatto, 14/10/2016

 
NINGUÉM ESTÁ IMUNE a uma paixão na primavera. Supõe-se, contudo, que um cara na minha idade tenha anticorpos suficientes para evitar recaídas e armadilhas.
 
Afinal, já levou rasteiras, deu com a cara no chão, apanhou bastante. Deve ter aprendido a não brincar com fogo. O tempo arrefece emoções violentas, vive-se mais, digamos, espiritualmente.
 
Não por outra razão inventaram a religião, a literatura, a filosofia, as palavras cruzadas e os blogs. Quireras, quireras, estimado leitor. Não passamos de uns pobres diabos. Veja o que me aconteceu.
 
Ontem, saí de Passo dos Ausentes às 7 da manhã em direção a Nova Petrópolis. Depois de 8 horas viajando serra abaixo na intrépida Linguilingui, contornando sinistros abismos, cheguei ao destino e parei para o café da tarde (costume ainda em voga entre serranos da antiga). Logo em seguida, me dirigi ao Recanto das Azaléias, floricultura local do meu agrado. Foi aí que tudo começou.

photo: ipoméia azul. jfinatto, 14/10/2016
 
Numa curva da aléia, entre vasos e flores, encontrei-a, de repente. Ela mal percebeu a minha existência. Eu não tirei mais os olhos dela. O coração acelerou. Por instantes esqueci quem eu era. Toda minha vã filosofia caiu por terra. Eu só tinha tenção pra ela. Indefeso, fiquei a admirá-la. Pura visão.
 
Apaixonei-me, em suma. Seu nome, de remoto sabor grego: Ipoméia. Todo Quixote encontra um dia sua Dulcinéia. Intrépido, levei-a pra casa.

Ao anoitecer, a divina donzela enclausurou-se em si mesma, recolhendo-se em seus secretos aposentos. Ao amanhecer, inaugurou o suave e delicado tecido das inefáveis flores. Sentimento azul.
 
Não podia imaginar que Deus me reservava essa beleza, que eu não mereço, em plena secura do tempo. Mas aconteceu.
 
Ipoméia azul, minha paixão de primavera.

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Escrito sob a boa grafia antiga, vigorante antes do (des) acordo ortográfico.