segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O amor é o melhor remédio

Jorge Finatto

Imagem mais antiga (séc. IV) do Apóstolo Paulo, descoberta em Roma,
segundo o Vaticano
 
 
Se eu falar em línguas de homens e de anjos, mas não tiver amor, sou um gongo que ressoa ou um címbalo que retine. E se eu tiver o dom de profecia e entender todos os segredos sagrados e todo o conhecimento, e se eu tiver toda a fé, a ponto de mover montanhas, mas não tiver amor, nada sou. E se eu der todos os meus bens para alimentar outros, e se eu entregar o meu corpo para me gabar, mas não tiver amor, de nada me adianta.

Paulo, A Primeira Carta aos Coríntios, 1 Coríntios 13:3, Bíblia* 
 

O MELHOR REMÉDIO para os sofrimentos são os bons sentimentos que carregamos na alma. As boas recordações e os afetos nos valem nos dias difíceis. Nenhuma arma é tão poderosa quanto se sentir amado e amar.
 
Saber que somos amados, que para alguém nossa existência é importante, abre uma manhã de sol na escuridão.
 
A casa do abraço. Esse reino secreto nos fortalece no infortúnio e no abandono. Amor que justifica nossa existência.

Amor pela tribo toda, amor estendido, que possibilita a vida em sociedade. É óbvio como um elefante no meio da sala. Mas a gente custa a enxergar.
 
Ninguém falou tão bem sobre essa realidade como Paulo em sua Primeira Carta aos Coríntios. Maravilha em poucas linhas.

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*Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 2015.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O Landgrave

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

A FALA PRINCIPIAL que te dirijo, ó, impossível leitor.

Eu, o Landgrave, me curvo diante da vossa alta ausência. Vivo no interior do ermo, habito as brumas dos Campos de Cima do Esquecimento.

Me esqueço no esconso do mundo. Meu revólver é o lápis e o calepino.

Vento de julho quase me derruba.

As fraquezas do corpo. Nunca se sabe o que vem a contrapeito. Travessias a que os fados nos obrigam.

O sonho muito sonhado tinha nome: Cléria, Cléria dos meus suspiros. Invernos ao relento. A moça de papel e tinta, musa em solidão concebida, menos tida que havida. Só a conheci de vista, na janela da mansarda, quando lá embaixo ela passava. Eu poeta tímido e sufocado.

Sentimentos que teço no abismo das horas. Dores que não têm conta.

O fosso profundo do fundo de cada um. Meu Deus.

Foi assim.

Os vazios dias, minhas tardes distantes, à beira do penedo. Hoje eu vejo tudo aqui de cima, na mansarda. Recolhido na grossa e comprida manta, atrás dos óculos de fundo de garrafa. Não vivo mais na borda de penhascos. Saltei para dentro da lira. O consolo possível.

Esta página escrita no sótão, arrostando vento e solidão.

Fugazes as vaidades do mundo são. Mais vale um poema que um tostão. O frio glacial dessas alturas inóspitas.

Fui resgatado do evento proceloso pela mão de salvadoras prosopopeias. Eis-me de ponta cabeça no perau do texto.

São caminhos que se andam. Depois se aprende, depois se sofre, depois se esquece. A vida, ai de mim, ai de nós.

O que não se tem se inventa. O mundo não tem bom coração. O delicado vive por teimoso e obstinado.

A humanidade enaltece a ruína, mata o humano. O que fizeram com esse texto as escuridões do mundo!

Cléria, sim, Cléria do capucho branco e do casaco azul claro. Cléria dos meus tormentos. Dos meus espantos e secretas ternuras. A que não se deixou amar. A desaparecida musa do vestido rosa com a fita lilás. Entrou e saiu do meu sonho sem saber.

Vivia lá no seu castelo, sem dar pela minha existência de bardo de arrabalde.

Eu o que quero agora é a solidão dos ventos gelados.

Meu olhar atravessando as névoas eternas.

Eu, o provedor das horas finitas, senhor de nadas, o catador de conchas de silêncio nos ares da álgida montanha.

Ela se foi pela estrada de ferro, sem dizer adeus.

Nas minhas saudades, ouço o ranger do velho trem saindo da estação.

A sintaxe é território que se conquista na dureza de batalhas cruentas. Palavras são coisas que criam asas e depois se lançam.

Agora sou o navegante. Viajor do tempo. Astrônomo de dicionários. O tal que restou com a bicicleta retorcida nas pedras.

 O sobrevivente, ridículo bardo interiorano.

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Texto revisto, publicado antes em 13 de outubro de 2010.
 

domingo, 24 de setembro de 2017

Beija-flor, a persistência da primavera

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto


O PEQUENO BEIJA-FLOR cumpre o ofício de cortejar a flor. No caso da foto, a flor amarela do ipê. Vai em busca do sagrado néctar, o seu alimento. É um trabalho árduo para um ser tão pequenino. Também é conhecido por colibri, cuitelo, chupa-flor, pica-flor, chupa-mel, binga, guanambi, segundo diz o Wikipédia.
 
A viagem da breve ave é uma odisseia no jardim. Faz 20 anos que os beija-flores habitam meu quintal fazendo ninhos nas árvores. Provavelmente já existiam neste ambiente muito antes de eu chegar aqui.
 
As flores em abundância durante o ano, entre elas os sininhos, são fonte diária de alimento para eles. São seres encantadores: na cor, no voo, no canto de algumas espécies. As asinhas batem sem parar, gastando muita energia que precisa ser reposta durante o dia. A grande velocidade do bate-bate de asas faz com que possam ficar parados no ar e até mesmo voar de ré. Mágica estripulia.
 
O que me causa admiração nos beija-flores é a persistência destes minúsculos seres em sua luta diária pela sobrevivência. Porque o ambiente está cada vez mais hostil para eles: poucas casas, poucos quintais, poucas flores. Resistem bravamente.

Vida de pássaro é a coisa mais complicada nestes tristes tempos. Por isso há várias espécies em risco de extinção, beija-flores inclusive. O próprio homem está em risco de extinção como sabemos. Dizem os sábios que "evoluímos" ao longo dos tempos. Evoluímos, evoluímos, e demos nessa enorme enrascada. Um buraco trevoso. 
 
Apesar de tudo, a primavera chegou. Enquanto eu estiver por aqui, o meu jardim vai ser a casa dos beija-flores e outros passarinhos. Não faço nisso nenhum favor. Apenas respeito essa gente miúda que espalha beleza no quintal da minha alma.
 

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Rua sem sol

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 
Os antepassados
negros e italianos
rasgaram o oceano
para que eu estivesse

aqui no futuro
olhando o fim de tarde
no horizonte dos muros

não possuo do imigrante branco
a esperança eldorada
nem a saudade triste do preto
em pranto mastigada

sou apenas um homem mestiço
olhando o movimento dos barcos

agora que a noite cai
sobre a cidade
e me surpreendo sonhando
com a fuga
por uma rua sem sol

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
 

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Conversa com meu anjo da guarda

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

 
DIZIAM OS ANTIGOS que cada pessoa tem o seu anjo da guarda. Anjo bondoso e santo que vela o sono, releva os erros, protege dos perigos, aconselha, sabe perdoar. Anjo zeloso e guardador que anima o coração desolado e ajuda a viver.

Não sei se os anjos ainda estão por aqui, tal o estado em que os homens deixaram o mundo, especialmente o Brasil. Se pudesse fazer um pedido, pedia ao meu anjo que inventasse depressa a máquina de desmorrer.

Sim, para acabar de vez com o problema do desnascimento que todos os homens e mulheres carregam dentro de si e dele não conseguem se livrar. Porque desnascer, ou deixar de caminhar sob o sol, é coisa das mais tristes, sem nenhum sentido, um desperdício enorme de tempo, trabalho, sonhos e sentimentos.

Uma vez expulso o desnascer de nossas vidas, com a eternidade toda pela frente, quanta coisa bonita havíamos de fazer e conhecer! Teríamos os dias necessários para consertar o que ficou torto, o que não deu certo.

Vou aproveitar e construir muitos barcos de papel pra soltar no Arroio Tega, nas manhãs da eternidade. Passearei com meu guarda-chuva nas ruas molhadas e vazias de Passo dos Ausentes. Subirei em perna de pau na Noite de São João, olharei a Lua da janela do meu quarto de menino, pescarei estrelas com o chapéu.

Descobrirei o nome de todas as flores e árvores. Pedirei, também, ao meu anjo protetor, que traga de volta, sem mais tardança, os seres amados que já partiram. Sim, estou cansado de viver longe deles, sinto muitas saudades.

Quero todos os ausentes por perto outra vez. Principalmente nessas solitárias noites tão frias, tão povoadas de névoa e memória. Os invisíveis habitam a solidão da casa.

 É preciso urgentemente inventar a máquina de desmorrer.
 
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Texto revisto, publicado, antes, em 28, maio, 2014
 

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Conversa de joaninhas

Jorge Finatto

photo: jfinatto

A JOANINHA verde disse para a joaninha amarela:
 
- O Brasil é, de fato, o país do futuro: não temos guerra, vulcão, terremoto, tsunâmi, furacão.
 
A joaninha amarela respondeu:
 
- E precisa?
  

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

O adeus das magnólias e a viagem de carreta

Jorge Finatto


photo: jfinatto
 

AS MAGNÓLIAS secaram com a última neve. É estranho falar em neve neste inverno onde quase não fez frio, foi um verão ameno. Muitos dias com temperaturas acima dos 30º em Porto Alegre. Com interstícios de geada, alguma neve, pouca, aqui na serra.

As magnólias brancas como algodão ficaram escuras e caíram do pé. As cor-de-vinho resistiram um pouco mais, algumas ainda estão vivas, a maioria acabou por cair. É o fim do inverno que nem bem aconteceu. Eu gosto de frio. Mas os tempos são de secura, nas almas e no ambiente.
 
A carreta no jardim com suas grandes rodas de madeira convida para um passeio. Mas não tenho cavalo nem boi para puxá-la. Vamos voar no pensamento entre as estrelas.
 
Andei de carreta no tempo da infância, uma grande aventura. Não me lembro do nome do carroceiro que nos levava de favor, atendendo nossos insistentes pedidos, éramos uns cinco meninos.

Começávamos por sentar nos duros e primitivos bancos de madeira. Depois saíamos pela estrada de chão, a sacolejar como batatas num saco. A sensação ao fechar os olhos: partíamos numa nave de quadro rodas puxada por um boi e íamos pelos céus, cá em baixo.
 
As inesquecíveis viagens, essas que fazemos com a imaginação.

Escrever sobre o tempo, flores e viagem de carreta é uma maneira de distanciar-se do mundo real. Licença poética indispensável nestes dias.