quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

O eremita viajante

Jorge Finatto

Monte Fuji. pintura de Katsushika Hokusai (1760 - 1849)

                   
                   imóvel contemplo a lua
                   e os outros pensam
                   que sou cego
                                        Matsuo Bashô ¹


NA TARDE-NOITE de chuva fina (o silêncio monta guarda em volta da casa), leio poemas de Matsuo Bashô (1644 -1694). Já nos primeiros haikais me vejo diante do Monte Fuji coberto de neve. Atravesso um riacho de pés descalços. Ouço o pássaro no ramo da cerejeira. Converso com uma borboleta. Encontro o amigo em meio à viagem por caminhos de chão batido.

Bashô adorava botar o pé na estrada, viajava em busca de lugares e encontros, hospedava-se na casa de quem o acolhesse. Vivia com simplicidade perto da natureza (seus discípulos construíram para ele uma cabana rústica onde morar, nas margens do Rio Sumida, e plantaram uma bananeira no pátio). Ele então adotou o nome da bananeira (bashô) como seu nome literário. Gostava de sentar-se sob suas folhas e sentir o vento e a chuva passando por elas.

Bashô era só e era muitos.

Por ocasião da partida de Sôha, que vivia na casa ao lado.

a casa do lado
ficará em silêncio
como um velho ninho ²

O grande poeta e viajante japonês nos leva ao umbral do mistério. Uma vez lá, deixa por nossa conta penetrá-lo ou abandoná-lo. A experiência para quem nele se aventura é tocante e plena de revelações.

Os versos de Bashô exercem fascínio pela aguda e original percepção do universo. As coisas são vistas como da primeira vez. Tudo é novo aos sentidos e ao pensamento. O mundo se revela ante o olhar inocente.

Este olhar inaugural volta-se para as coisas do dia a dia. Abre-nos a mente diante daquilo que por vezes parece corriqueiro e desinteressante. Isto é possível graças a uma linguagem que foge ao habitual e ao ruído, repleta de silêncios.

A poesia que Bashô nos legou é cativante e bela como um amanhecer. Simples nos seus motivos, tem alcance transcendente no coração do leitor. É um golpe de ar puro e fresco na alma ressequida. Uma excelente apresentação de sua obra encontramos no livro O eremita viajante.

Como era sua vontade, o poeta foi sepultado no mosteiro de Gichu-Ji, nas margens do Lago Biwa. Em sua sepultura foi plantada uma bananeira.

a minha pele
perderá o calor
e ficará fria ³
 
_________

1, 2, 3 - O eremita viajante (haikus - obra completa). Matsuo Bashô. Editora Assírio & Alvim. Organização e versão portuguesa por Joaquim M. Palma. Porto, Portugal, 2017.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Canção da bruma

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

SENHOR
quando chegar
a minha vez
de cruzar a ponte
deixa eu levar comigo
no alforje de nuvem
os dias de sol

as tardes
de outono

os pinheiros
da serra onde
nasci

deixa eu levar
o som do riacho

as antigas
conversas
da Rua São João

me concede
a memória
dos amigos
de infância

na bruma
que serei
me alcança
um bosque
e pássaros
para tecer
a minha casa

___________

Poema do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Escutai os pássaros

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto, 6/12/2017. o beija-flor e as flores de lavanda
 

NA CIDADE grande o convívio com os pássaros é difícil. Quase tudo trabalha contra eles. Excesso de edifícios, de barulho,  de luz artificial, escassez de áreas verdes, de alimento, de ar para voar, respirar, cantar. Mais a indiferença das pessoas. Uma danação.
 
Em Passo dos Ausentes é diferente. Existem pássaros em abundância e eles podem viver a sua vidinha em paz e liberdade. Que o digam os delicados beija-flores nos canteiros de lavanda!
 
Hoje enquanto caminhava pelo quintal, no sossego da tardinha, escutei o canto dos passarinhos nas árvores. De várias espécies, cantavam a capela. Tão doces eram os cantos que por um momento senti que Deus andava por perto, maravilhado como eu.
 
Poucas vezes me senti tão bem. Fiquei ali entre os cedros, pinheiros, magnólias, roseiras, jasmineiros. Me sentindo pleno e humilde. 
 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

O jardineiro amoroso I

Jorge Finatto

photo: jfinatto, 2/12/2017
 
A VIDA é breve, raro leitor, e os livros que não li não cessam de brotar nas livrarias. Enquanto isso, constelações deles hibernam nos sebos. É impossível ler tudo isso numa só existência. Sem falar que tenho coisas pra fazer e meus próprios textos pra cuidar, apesar de não ter leitores.

Escrevo para fantasmas. É correr atrás do vento. Mas há quem goste das fotografias pelo menos.
 
Um jardineiro amoroso deve cuidar do seu jardim, sem esquecer de arrumar tempo para admirar os jardins alheios. Tem muita coisa bonita pra ver fora de nós. Aí está a graça. Serve de consolo quando cá dentro faz escuro.

Importante é não perder o gosto e a beleza de cultivar e se deixar cultivar.

O resto, aí as frustrações, desânimos, incompreensões, etc., passa, passa, que a vida é só um suspiro. Um longo suspiro. Mas a viagem, mesmo nos dias sombrios, é bela.

Não sei por que mas este texto me deu vontade de tomar um café no Café Tortoni,* em Buenos Aires, acompanhado de um doce portenho. Vá saber.

__________
*Café Tortoni:
https://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/search?q=Caf%C3%A9+Tortoni

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Não me abandones

Jorge Finatto
a Chet Baker
 
photo: jfinatto

 
Não me abandones
povoa a noite
com teu suprimento
de afeto

enche o deserto
com teus passos

em segredo
devolve-me
a delicadeza
daqueles dias

me dá outra vez
o diamante
da tua
presença


________

*Do livro O Habitante da Bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Leia também Chet on poetry:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/uma-viagem-sentimental.html
Chet Baker (1929 - 1988)
 

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

As virgílias e o viajante

Jorge Finatto

desenho: jfinatto


SIM, RARO LEITOR, nascemos de mãos dadas com nossa irmã gêmea, a solidão. Mas a vida não há de ser um buraco só dentro do peito. Tinha de ser mais, tem de ser mais. Ninguém veio ao mundo pra ser deserto.

Encontrar seres humanos, dividir o vagão do trem, é o lado mais bonito e luminoso da viagem.

Mas, em caso de urgência, o viajante tem pelo menos as virgílias.

São minúsculas borboletas que não têm mais que um centímetro de envergadura nas asas. Revoluteiam ao redor dele. São dezenas, cada uma com sua cor viva: violeta, azul, púrpura, amarelo, lilás, laranja, branco, preto.

As virgílias surgem do nada. Acendem a solidão como lamparinas em miniatura. Ficam voando em volta do viajante como efêmeras lanternas com piscar intermitente.

As virgílias depois vão-se embora. Apagam aos poucos suas luzes até que nenhuma mais resta.

Nenhuma. E o viajante dorme esperando amanhecer.


quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Raymond Carver

Jorge Finatto

Raymond Carver. fonte: Wikipédia

Todo poema é um ato de amor, e de fé. Existe tão pouca recompensa para a escrita de poesia, seja monetária ou, você sabe, em termos de fama e glória, que o ato de escrever um poema tem de ser um ato que se justifique em si mesmo e realmente não possua nenhum outro objetivo em vista. Para querer fazê-lo, você realmente precisa amar fazê-lo. Nesse sentido, então, todo poema é um "poema de amor".

Raymond Carver, em entrevista a Sinda Gregory.¹


ENCONTRAR UM POETA é um acontecimento tão raro quanto descobrir uma mina de diamantes. Não sei distinguir um diamante de uma ágata ou ametista, e possivelmente não reconheceria uma pedra caída de Vênus no meu quintal. Gosto de pedras coloridas e todas me parecem belas.

Mas sei reconhecer um bom poema. Sei de sua raridade, de seu desapego, e, quando encontro um, é como se descobrisse uma lasca de estrela à flor da terra. Porque quase tudo no mundo virou coisa. Não há mais espaço para contemplação, para o esforço da ruminação, da busca do sentido da vida e nós dentro dela.

Vivemos um tempo em que as inquietações e indagações em torno da existência foram substituídas e esgotadas em anúncios publicitários. Frases curtas, diretas, com objetivos definidos, concretos, e resultados imediatos. Tudo é mercado, tudo é venal e previsível.

Então, quando leio um poeta de verdade, esse estranho animal que já não encontra lugar na floresta, é um evento de pura graça. Sinto uma grande emoção. É o que acontece por esses dias quando leio, com profunda gratidão, a antologia Esta vida - poemas escolhidos, do poeta e contista americano Raymond Carver (1938 - 1988). A seleção e a tradução são de Cide Piquet a partir dos livros Fogos (1983), Onde a água se junta a outra água (1985), Ultramar (1986) e Um novo caminho para a queda d'água, livro póstumo de 1989.²

Poeta, na minha visão, é quem garimpa pontos de luz no escuro fundo de mina do cotidiano. Esse é o artesão da palavra e o vivente espiritualizado, que tem os pés no chão e a cabeça aberta aos mistérios do universo. Universo que todo pode estar contido num abraço, num grão de pólen, num córrego, numa joaninha como numa estrela.

É o caso de Carver, de quem só tinha lido alguns contos do livro 68 Contos, lançado pela Companhia das Letras em 2010.³ Considerado um dos grandes contistas do século XX, comparado a Anton Tchekhov, impressiona a desenvoltura do escritor em ambos os gêneros.

De origem pobre, teve diversos trabalhos (limpou banheiros, serviu mesas, abasteceu carros, vendeu livros de casa em casa). Mudou-se várias vezes de endereço com a família. Desde muito jovem cultivou a escrita. Seu esforço foi bem sucedido. Recebeu bolsas literárias, atuou como palestrante convidado na Universidade de Santa Bárbara, Califórnia.

Obteve reconhecimento dentro e fora dos Estados Unidos. Teve problemas com o alcoolismo, o qual abandonou. Morreu de câncer de pulmão aos 50 anos e seus últimos poemas tratam da doença e do fim próximo com notável lucidez.

Carver enfrenta a escrita com humildade, sabe que quase sempre saímos perdendo do enfrentamento e que o contrário disso é a exceção, é o poema. Seus temas são simples, fazem parte da vida de qualquer um, o que muda é o enfoque, e o resultado é sempre iluminador. Não será fora de lugar dizer que Raymond Carver é um poeta lírico trabalhando com os dois pés na realidade. Um desiludido que ainda ousa iludir-se (sensibilizar-se), à maneira transcendente de Carlos Drummond de Andrade.

Li os textos em inglês e a tradução e, no todo, o resultado me pareceu muito bom. Sem grandes invenções, torcicolos de estilo e sem a veleidade de fazer uma nova obra a partir do original, o tradutor consegue entregar na língua de chegada o sentido e o sentimento do texto na língua de partida. A tradução, neste caso, consegue envolver o jeito de dizer do autor, o que nem sempre se alcança em se tratando de poemas.

Ouçamos a voz humana, a voz ancestral e fundadora da poesia, na obra essencial de Raymond Carver. 


Fragmento final

E você teve o que queria
desta vida, apesar de tudo?
Tive.
E o que você queria?
Dizer que fui amado, me sentir
amado sobre a terra. 4

__________ 
1, 2 e 4 - Esta vida - poemas escolhidos. Raymond Carver. Seleção e tradução de Cide Piquet. Edição bilíngue. Editora 34. São Paulo, 2017.

3 - 68 Contos de Raymond Carver. Tradução de Rubens Figueiredo. Companhia das Letras, São Paulo, 2010.