sexta-feira, 7 de setembro de 2018

O Bruxo do Cosme Velho e a escravidão

Jorge Finatto

perfil de M. de Assis, 1904. Arquivo Nacional. fonte: Wikipédia


UM DOS TEXTOS mais reveladores sobre a escravidão e a sociedade brasileira de meados do século XIX é este Pai contra mãe, de Machado de Assis (1839-1908).* Trata-se de obra-prima (uma delas) do grande escritor brasileiro. Em poucas páginas, o Bruxo do Cosme Velho (bruxo pela criatividade superior, que morou no bairro Cosme Velho na parte final da vida) adentra de forma lúcida e vertical no drama da escravatura.

No breve conto, Cândido Neves, caçador de escravos fugidos, sai à caça desesperada de uma mulher cujo "proprietário" paga razoável recompensa por sua captura. Vivendo em pobreza profunda, Cândido pretende utilizar o dinheiro a fim de evitar que o filho, recém nascido, seja entregue à Roda dos Enjeitados. A mulher foragida, Arminda, uma mulata, está grávida.

Um retrato sem retoques da sociedade da época. "A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais." (pág. 39), é a primeira frase. A seguir, enumera alguns destes instrumentos: ferro ao pescoço, ferro ao pé, máscara de folha de flandres, a qual "Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. (...) Era grotesca tal máscara (...) (pág. 39)

Cândido Neves, antes, não se adaptara a nenhum trabalho, "não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade" (pág. 40), até que resolve tornar-se caçador de escravos, atividade a que se dedicam párias e desocupados cruéis como ele.

"Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação." (págs. 39/40)

Não retirarei do leitor o prazer de ler o conto e testemunhar, além do conteúdo, o estilo soberbo do autor. Com sua funda ironia e desalento diante do teatro humano, Machado nos apresenta a trágica realidade sem descurar da arte no dizer.

Um narrador no domínio absoluto do ofício, um artista impecável mesmo ante matéria tão dura. Com finos dedos de artesão, vai ao núcleo das contradições de uma sociedade autofágica, estruturalmente injusta e humanamente fria. Desvirtudes que, infelizmente, chegaram aos nossos dias.

Como se não fosse com ele (o escritor era neto de escravos e vinha de uma família muito pobre), Machado consegue nos aproximar racionalmente e emocionalmente do horror da escravidão.

O holocausto que se abateu sobre nossos irmãos que vieram da África (cerca de quatro milhões, sendo que mais de 300 mil perderam a vida na travessia), deixando marcas de racismo e injustiça social que perduram até hoje. Observo que este não é o único texto de Machado denunciando esta terrível página da nossa história. No estilo machadiano, elegante, refinado, profundo, sem excessos e sem nada de panfletário.

Um conto notável escrito por um gênio da literatura. Um escritor com origens no porão da sociedade brasileira, que sobreviveu com seu talento, disciplina e força de vontade oceânicos. Um autor cujas qualidades o colocam entre os grandes da literatura mundial conforme atestam as inúmeras traduções de sua obra.

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*Missa do Galo seguido dos contos: O Espelho, A Cartomante, O Caso da Vara, Pai Contra Mãe, Capítulo dos Chapéus. Machado de Assis. L&PM Pocket, Coleção 64 páginas. Porto Alegre, 2012.

sábado, 1 de setembro de 2018

Pensión del tiempo

Jorge Finatto

Montevideo, agosto, 2018. photo: jfinatto


EL TIEMPO es una pensión. 
Que sea buena tu estada. 
Aunque no lo creas...

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Era uma vez uma rua...

Jorge Finatto

Rio Guaíba. photo: jfinatto



UM DIA EU FUI EMBORA da Rua São João.
Mas a Rua São João não foi embora de mim.
Caí de cara no mundo.
Vi coisas de cortar a alma e secar o coração.
Me tornei sobrevivente num país que agoniza.
As esperanças viraram cinza, o tempo ruiu sobre mim.
Um dia eu fui embora, mas trago comigo uma ilha de sol:
Nunca me despedi do menino que eu fui na Rua São João.


terça-feira, 21 de agosto de 2018

A boneca de trapo

Jorge Finatto
 
photo: j.finatto *
 
ERA UMA DESSAS TARDES que antecedem o outono em Passo dos Ausentes. O ar outonal nos deixa mais sensíveis. Talvez pela mudança das cores na natureza e pela queda das folhas. As seivas concentram forças, evitando qualquer desperdício. Em dias assim, é uma sorte estar vivo.
 
Enquanto atravessava a Praça da Ausência, encontrei uma boneca de trapo caída no chão. Era feita de velhos panos coloridos. Os olhos eram dois botões verdes.
 
Os cabelos, fios de lã repartidos em duas tranças. A boca, um pequeno risco vermelho, e sorria.
 
Apesar de perdida, a boneca não parecia muito triste. Carregava um leve toque de melancolia no semblante, que desapareceu quando a levantei.  Acomodei-a no banco da praça, embaixo de um salgueiro, ao lado do lago.
 
Fui embora, não sem alguma dor. No início quis levá-la comigo, dar-lhe novo lar. Mas desisti ao pensar que quem a perdeu (uma criança tudo leva a crer) voltaria para buscá-la. Seria de cortar o coração não encontrar a sua boneca de trapo.
 
Viver tem dessas coisas. Nem sempre podemos ter o que nos encanta. Nem sempre, como no outono, a vida se exalta em delicadas mutações.
 
Num dia, o céu azul nos ilumina, habitado aqui e ali por nuvens cor-de-rosa, o coração bate harmonioso. Noutro, pensamentos escuros, pesados, se espalham e a gente só imagina besteira.
 
A boneca de trapo me lembrou coisas que perdi na vida. Perdi e me conformei. Porque nada, absolutamente nada, nos pertence nesse mundo.
 
Tudo que temos é emprestado, a começar pela vida. Um dia teremos de devolver. Nada é verdadeiramente nosso.

Salvo, talvez, o meigo sorriso de uma boneca de trapo.
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*Boneca artesanal da região serrana do Rio Grande do Sul. Texto revisto, publicado em 16 de março de 2011.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Paixão de outono

Jorge Finatto

 
NINGUÉM ESTÁ IMUNE a uma paixão de outono. Supõe-se, contudo, que um cara na minha idade tenha anticorpos suficientes para evitar recaídas e armadilhas.
 
Afinal, já levou rasteiras, deu com a cara no chão, apanhou bastante. Deve ter aprendido a não brincar com fogo. O tempo arrefece emoções violentas, vive-se mais espiritualmente (digamos).
 
Não por outra razão inventaram as religiões, a literatura, a filosofia, as artes, as palavras cruzadas e os blogs. Quireras, quireras, raro leitor. Não passamos de uns pobres diabos. Veja o que me aconteceu.
 
Ontem, saí de Passo dos Ausentes às 7 da manhã em direção a Nova Petrópolis. Depois de 8 horas viajando serra abaixo na intrépida Linguilingui, contornando sinistros abismos, cheguei ao destino e fui ao café da tarde (costume ainda em voga entre serranos da antiga). Logo em seguida, me dirigi ao Recanto das Azaléias, floricultura do meu agrado. Foi aí que tudo começou.

photo: ipoméia azul. jfinatto, 14/10/2016
 
Numa curva da aléia, entre vasos e flores, encontrei-a, de repente. Ela nem sequer percebeu a minha existência. Não tirei mais os olhos dela. O coração acelerou. Por instantes esqueci quem eu era. Toda minha vã filosofia caiu por terra. Eu só tinha tenção pra ela. Indefeso, encantado, só fiz admirá-la. Pura visão.
 
Apaixonei-me, em suma. Seu nome, de remoto sabor grego: Ipoméia.
 
Todo Quixote encontra um dia sua Dulcinéia. Intrépido,vencido embora, levei-a pra casa.

Ao anoitecer, a divina donzela enclausurou-se em si mesma, recolhendo-se em seus secretos aposentos. Ao amanhecer, inaugurou o suave e delicado tecido das inefáveis flores.
 
Não podia imaginar que Deus me reservava essa beleza, que eu não mereço, em plena secura do tempo. Mas aconteceu.

Sentimento azul.
 
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Texto revisto, publicado antes em 15/10/2016. Escrito sob a boa grafia antiga, vigorante antes do (des) acordo ortográfico.  

domingo, 12 de agosto de 2018

A queda no chafariz

Jorge Finatto

Teatro Nacional São Carlos (e o chafariz) photo: Wikipédia. autor: Thomas
 
ERA UMA TARDE de inverno em Lisboa. Saí do hotel Dom Pedro, no bairro Amoreiras, e me dirigi à Livraria e Editora Cotovia, no Chiado, para me inteirar dos lançamentos. Enquanto examinava a estante, um gato preto apareceu e se pôs sobre os livros em minha frente. Na verdade, uma bela gata, cujo nome era Maravilhas. Até aí maravilha.
Conversei com Maravilhas como sempre faço com gatos. Escolhi os livros e parti, agora em direção ao café A Brasileira (aquele freqüentado por Fernando Pessoa). Depois do pastel de nata e do café, rumei para a Livraria Bertrand, a mais antiga do mundo, na Rua Garrett, uma perdição.
Em seguida, caminhei até o Largo do Teatro Nacional São Carlos, um lugar bonito onde está situado o edifício no qual nasceu Fernando Pessoa. Me vali do celular (telemóvel) pra fazer algumas fotos. Havia um ruidoso grupo de italianos por ali. Até que decidi atravessar o largo e entrar no teatro.
Dei um passo em frente e... mergulhei no chafariz (a água pelas bordas). Mergulhei com capote, mochila, chapéu, manta, sacola, com tudo. Vim à tona ensopado, com tocos de cigarro enfiados nos óculos, e pedaços de papel pelo casaco.
edifício onde nasceu Fernando Pessoa (e o chafariz). Wikipédia. autor: Lijealso
 
Fiz um grande esforço pra sair do tanque. E torci pra que ninguém viesse me ajudar, queria evitar mais constrangimento. De fato, ninguém veio. Quando, enfim, consegui, uma gargalhada geral ecoou na praça. Os malditos italianos não me pouparam. Um gaiato entre eles gritou que era tentativa de suicídio.
Fiz de conta que não era comigo. Saí andando meio de banda, meio tonto, gelado, molhadíssimo, pingando, com a mão direita pisada, sem entender bem o que tinha acontecido.
No fundo não havia mistério. Óculos com lentes de fundo de garrafa, visão mais ou menos (menos, menos), pensamento caçando borboletas. Mas, afinal, quem inventou de colocar aquele chafariz ali, na minha frente? E quem teve a infeliz ideia de trazer aqueles maledettos justo naquela hora?
Livros molhados, telefone molhado, passaporte molhado, ânimo e alma molhados, roupas, tudo molhado. Isso aconteceu em fevereiro de 2018. Restou o consolo: pelo menos fiz rir a malta maledetta. 
Na frente do Teatro São Carlos, fiz meu espetáculo. Coisas da vida. Baixa o pano.

domingo, 5 de agosto de 2018

Histórias de vidas passadas

Jorge Finatto

photo: jfinatto

 
UMA NOITE DE INVERNO, em Veneza, abri o guia telefônico. Estava entocado no quarto de hotel, a acqua alta inundava a Piazza San Marco. Encontrei pessoas com o sobrenome da minha família na lista. Lembrei que um tio me disse certa vez que o pai dele,  meu avô, e seus três irmãos tinham vindo de Veneza, ainda meninos, para o Brasil.
 
Passei dias e dias andando nas fondamenta (caminhos para pedestres na beira dos canais), tirei muitas fotos, atravessei pontes, entrei em igrejas, gôndolas, museus. No fim das tardes, cansado, acabava ancorando no cais da minha solidão com um copo de vinho fresco no Café Florian..
 
Não fui atrás de remotas origens familiares. Queria conhecer os recantos pouco explorados pelos turistas, e senti que aquele lugar tinha muito a ver comigo, bicho das águas. Sempre gostei de cidades de rio ou mar. Não por outro motivo escolhi a cidade de Rio Grande como minha primeira comarca, no século passado, após tomar posse como juiz. Rio Grande, o único porto marítimo do Rio Grande do Sul por onde entravam os imigrantes. 
 
A vida me ensinou que buscas no passado nem sempre são uma boa ideia. De resto, a esta altura todos estão mortos. Não sobrou ninguém para partilhar vetustas memórias de fins do século XIX.
 
Sei que atrás de mim existem seres que atravessaram famintos o Atlântico numa viagem dolorosa à beira do abismo. Vieram da Europa e da África. Por isso às vezes sonho com gôndolas iridescentes navegando com seus fantasmas entre as estrelas.
 
Pensando nessas coisas tomei, hoje, um café, in memoriam, no Florian, enquanto a  bruma se espalhava na piazza.

photo jfinatto

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Texto inédito, escrito em dezembro, 2017.