sábado, 23 de maio de 2020
domingo, 17 de maio de 2020
Saudade de Vera Cruz
Jorge Finatto
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detalhe do Planisfério de Cantino, nordeste brasileiro. |
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está
amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está
amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol
(Nada será como antes, Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)
Outono significa transformação, as mudanças tão necessárias e urgentes para a vida seguir seu curso. É o recolher das seivas, reunião de forças, introspecção, preparo e passagem para um outro tempo.
Não quero desfazer das outras estações, cada qual com seu gosto e seu agosto. O verão, por exemplo: tem muita gente que gosta. A primavera é amada por todos. Mas é no outono que eu renasço.
O outono não é um senhor decrépito, longe disso. É uma musa sensual, discreta e misteriosa, que traz o véu iridescente com mil tons, além de delicadas fragrâncias.
As manhãs da estação das folhas cadentes prometem beleza e contemplação. As nuvens são cor de açúcar queimado ao entardecer.
Um texto de fuga, alguém dirá, talvez com razão. A palavra há de servir, também, para a evasão do real, sempre tão necessária a fim de evitar a loucura por excesso da realidade.
Os dias dentro de casa, trancados para fugir do bicho ruim, pestilento, passam à velocidade da luz, e são, ao mesmo tempo, longos e intermináveis. Lá pelas tantas tudo parece um dia só. E quando se vê, foi-se uma semana, um mês.
São estranhos esses dias de portas fechadas e janelas pensativas. A peste corre feroz e à solta no burgo. Um cenário da Idade Média.
A truculência verbal e a ignorância ocupam o centro das atenções hoje no Brasil. O cenário primitivo, agressivo e intolerante é tal que não podemos sequer dizer que estamos vivendo na Idade Média.
Estamos sendo catapultados direto para a escuridão das cavernas. Um país desorientado, com o povo exposto à pandemia covid-19, ao enorme desemprego e à incessante crise política gestada no interior do poder.
Um momento extremamente duro, um futuro nebuloso. E dizer que com um mínimo de bom senso, por parte de quem tem o dever do bom senso, tudo poderia ser melhor.
Os sabiás andam calados. As aves de mau agouro ocupam o palco.
Um momento extremamente duro, um futuro nebuloso. E dizer que com um mínimo de bom senso, por parte de quem tem o dever do bom senso, tudo poderia ser melhor.
Os sabiás andam calados. As aves de mau agouro ocupam o palco.
Saudade da Terra de Vera Cruz com sua gente lutadora, amável e criativa, saudade de suas cidades movimentadas, seus verdes mares e belas paisagens. Saudade do cotidiano civil com sua magia e seu feijão com arroz. Saudade dos pássaros e das nuvens.
Eu ando mesmo com uma bruta saudade de um pouco de leveza, lucidez e esperança, em meio à barbárie destes dias.
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quarta-feira, 13 de maio de 2020
A queda de Chet Baker em direção ao infinito
Jorge Finatto
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Chet Baker, 1983. foto: Michiel Hendryckx Wikipedia |
Faz hoje 32 anos que Chet Baker (1929 - 1988) morreu após despencar da janela de um quarto de hotel em Amsterdam. Nunca se esclareceu se foi suicídio ou morte acidental. Um mistério.
O que não é mistério é a enorme contribuição dele ao jazz e à música. Com seu maravilhoso trompete e sua voz cálida, quase sussurrada, inventou uma nova maneira, personalíssima, de fazer música.
Aos 58 anos perdeu a vida, uma vida atormentada que lhe pregou dolorosas peças. O envolvimento com as drogas foi um capítulo dramático em sua existência.
Aos 58 anos perdeu a vida, uma vida atormentada que lhe pregou dolorosas peças. O envolvimento com as drogas foi um capítulo dramático em sua existência.
A música foi sua salvação. Nos palcos onde pisou, com big band ou solitário, uma aura de silêncio tomava conta quando, sentado, silhueta esguia, empunhava seu instrumento. Naquele diminuto território ele era o mágico senhor dos sons e sentimentos.
No vasto fundão do universo, imagino que, em certa noite de melancolia, Deus criou Chet para aquecer o seu coração e o coração dos homens.
Não me abandones*a Chet Baker
Não me abandones
povoa a noite
com teu suprimento
de afeto
enche o deserto
com teus passos
em segredo
devolve-me
a delicadeza
daqueles dias
me dá outra vez
o diamante
da tua
presença
________
*Do livro O Habitante da Bruma, Jorge Finatto, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Leia também Chet on poetry:http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/uma-viagem-sentimental.html
terça-feira, 12 de maio de 2020
Dádiva na tarde de outono
Jorge Finatto
photo: jfinatto, 11 maio 2020 |
Quando desci a Serra, aos seis anos, para visitar a mãe em Porto Alegre, não imaginava que nunca mais voltaria para a casa à beira do arroio. Não voltaria para perto dos pinheiros, das parreiras, dos caminhos de chão. Não sentiria mais o cheiro de vinho no porão. Não veria mais os amigos.
A morte repentina da avó, ao meu lado, em Porto Alegre, teve consequências desastrosas para mim e para o avô. Ela era a nossa verdadeira casa. A nossa amada querência. Sem ela, não havia para onde voltar. Não havia mais nada sem ela. Foi difícil sobreviver.
Os anos passaram como passam as nuvens no vento. Sempre alimentei no íntimo o desejo de regressar à Serra um dia. Quase quarenta anos depois isto de fato aconteceu. Não na mesma casa, não na mesma cidade, mas em outra não muito distante dela.
Reconstruí a casa desmoronada. É um lugar cálido, com horta, pinheiros, plátanos, quintal, jardim, frutíferas, pássaros. Principalmente com a querida família a quem devo esse tempo feliz, pouco importando a peste e todos os problemas.
Pensei nessas coisas enquanto caminhava nesta tarde de outono. Pisando nas folhas, agradecendo a Deus por estar vivo e poder assistir ao incrível espetáculo da natureza nessa época. Sinto que valeu a pena ter sobrevivido.
Dádiva na tarde de outono.
Dádiva na tarde de outono.
photo: jfinatto, 11 maio 2020 |
segunda-feira, 11 de maio de 2020
Um homem só
Jorge Finatto
photo: jfinatto |
Escutei o relato de um médico, numa entrevista de rádio, a respeito de sua experiência com pacientes da covid-19. Trabalha num hospital de Porto Alegre. Disse que um paciente com cerca de trinta anos estava internado para tratamento de um câncer agressivo. Perdera a capacidade de falar em razão disso.
Durante a internação apresentou sintomas que o levaram ao teste do novo coronavírus. Enquanto aguardava o resultado, estava em isolamento no quarto há alguns dias.
O médico contou que, através de gestos, o homem fez um único pedido. Queria poder ver a filha. Foi-lhe dito que, naquele momento, isto não poderia ser diante do risco de contágio. De modo que teria de ficar só por enquanto.
Eu fiquei impressionado e triste com a história. Percebi como se fosse minha a enorme solidão daquele jovem submetido a tanto sofrimento. Pensei numa palavra que pudesse levar-lhe algum conforto. Não encontrei.
Quem já passou por hospital sabe que contamos minuto após minuto o tempo que falta para melhorar e ir embora. O único consolo que nos resta é a presença das pessoas que amamos. Só esta presença e a fé podem nos fortalecer.
Estou rezando por aquele homem, que Deus lhe dê ânimo e forças para vencer. Que nesta hora tremenda Deus ampare os doentes espiritualmente, não os deixe esmorecer, e salve a todos.
segunda-feira, 4 de maio de 2020
Hermann Hesse em Montagnola
Jorge Finatto
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photo: JFinatto. Museu Hermann Hesse, Montagnola, jan. 2020. |
Descrevi e louvei muitas vezes tudo isso. Gastei centenas de folhas de bom papel de pintura, muitos tubos de tinta, para provar minha veneração pelas velhas casas e telhados de madeira, muros de jardim e bosque de castanheiros, montanhas próximas e distantes, com minhas aquarelas ou bico de pena. Plantei aqui muitas árvores e arbustos, um pequeno bambuzal na fímbria do bosque, e muitas flores. (Quarenta anos de Montagnola, Hermann Hesse)¹
Em janeiro último viajei a Lugano, no cantão (estado) do Ticino, sul da Suíça (a Suíça italiana), com o objetivo principal de conhecer o lugar onde viveu e escreveu Hermann Hesse (1877-1962). O Museu Hermann Hesse, na pequena Montagnola, abriga o acervo deste que é, segundo dizem, o autor de língua alemã mais lido no mundo. Nascido em Calw, Alemanha, tornou-se cidadão suíço em 1924. Em 1946 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.
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photo. J.Finatto. Museu Hermann Hesse, jan. 2020 |
Montagnola é um lugarejo pertencente ao município de Collina D´Oro, situado nas cercanias de Lugano. Chega-se lá de ônibus (que tomei junto à estação ferroviária de Lugano) após cerca de 15 minutos de íngreme subida, vislumbrando-se, do alto, o belo Lago Lugano e suas montanhas na fronteira com a Itália.
O museu funciona na Torre Camuzzi, ao lado da Casa Camuzzi onde o poeta e escritor viveu em um apartamento entre 1919 e 1931. Foi viver em Montagnola "em busca de refúgio", sendo na época um homem "na flor da idade".²
Depois, mudou-se para a Casa Rossa, perto dali, que lhe foi oferecida por um mecenas como morada permanente - vitalícia - até sua morte, em 1962. Ambas as propriedades onde ele viveu são privadas, não podendo ser visitadas.
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photo do escritor. Museu Hermann Hesse, Montagnola. |
A vista desde Montagnola é belíssima. O lago, as montanhas, as videiras, jardins, quintais e demais elementos enchem os olhos. Pacifista e naturalista, Hesse ficou também conhecido pelas longas caminhadas que costumava fazer. Diz-se que, às vezes, pelado.
Antes de chegar ao museu existe um café literário com livros dele, mas não só, e com publicações de suas pinturas. O cappuccino é ótimo, assim como os doces e sanduíches. A senhora que atende no local é muito querida.
Conhecer Hesse pintor (aquarelista principalmente) foi pra mim uma grata descoberta. Não conhecia este seu lado. As pinturas são muito bonitas.
Entrando no museu encontram-se objetos que marcaram sua vida e obra, como uma velha máquina de escrever, edições originais de seus livros, móveis, fotografias, quadros, correspondências, chapéus, aquarelas, etc. Alguns instrumentos lembram que ele se dedicou ao cultivo de plantas, árvores, flores, hortaliças. Foi um jardineiro amoroso do ofício.
Existe, além disso, um pequeno cinema no porão que mostra um documentário sobre a vida do escritor em italiano, alemão, inglês e francês, com audioguides (em alemão e italiano). No museu se acha um amplo programa de leituras, palestras e concertos que ocorrem ao longo do ano.
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máquina de escrever de H. Hesse. photo: JFinatto |
A trilha "Nos rastros de Hermann Hesse" passa por locais em que o escritor gostava de estar e contemplar a paisagem de Collina d'Oro. O ponto de chegada da caminhada de cerca de meia hora é o túmulo de Hesse no cemitério de Montagnola-Gentilino.
O autor de O Jogo das Contas de Vidro diz muito à alma de pessoas sensíveis. Não li toda a sua obra, mas o que li foi suficiente pra saber que se trata de um grande escritor, alguém preocupado com a vida. Teve sua obra proibida na Alemanha nazista. Sua voz aproxima nosso coração das coisas simples e profundas, fugindo dos estereótipos, da mercantilização e da coisificação do ser humano. É um escritor que escolhe sempre o silêncio em meio à gritaria, a contemplação, o mergulho em viagens espirituais. Para isso contribuiu seu conhecimento de culturas como as da Índia e China.
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photo: JFinatto. jan, 2020. Museu H. Hesse |
Em tempos tão duros, ler Hermann Hesse, travar conhecimento com seu pensamento e com a beleza de seus escritos, é um antídoto contra a mediocridade, a grosseria, o autoritarismo, a estupidez e a falta de esperança.
Agradeço a Regina Bucher, diretora da Fondazione Hermann Hesse e do Museu, pela gentileza da atenciosa recepção.
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objetos do escritor. photo: JFinatto, jan, 2020 |
Tanto quanto me lembro, sempre encarei a função do escritor sobretudo como memória, como não-esquecimento, como preservação do efêmero na palavra, como retorno do passado através de apelos e carinhosa descrição. (idem, ibidem) ³
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1, 2, 3 Pequenas Alegrias. Hermann Hesse. págs. 5 e 305. Tradução: Lya Luft. Editora Record, Rio de Janeiro, 1977.
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quinta-feira, 30 de abril de 2020
Alberta de Montecalvino
Jorge Finatto
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photo: jfinatto |
VENEZA é o sonho de toda Colombina.
Eu passei a vida em Passo dos Ausentes. O que é esse lugar? Um território sitiado pelo vento. A neblina, o frio e a solidão povoam a aldeia o ano inteiro.
Habito com amargura e ironia esta estação de fim de mundo.
Casei-me aos 14 anos com Dom Alberto de Montecalvino, o Solitário da Biblioteca. Contrato de gaveta. Era eu de pobre origem. Estudava as primeiras letras e ajudava no serviço de casa. A mãe, viúva de quatro filhos, lavadeira, no inverno vendíamos lenha na porta das casas.
Na época Dom Alberto contava 69 anos. Desde aquele quando, passei a viver neste austero castelo de basalto e vidro. Hoje tenho 70 anos, sou deveras viúva e, às vezes, me perco nos salões da memória. As intermitências.
Na época Dom Alberto contava 69 anos. Desde aquele quando, passei a viver neste austero castelo de basalto e vidro. Hoje tenho 70 anos, sou deveras viúva e, às vezes, me perco nos salões da memória. As intermitências.
Daqui de cima, na larga janela da biblioteca, avisto o Contraforte dos Capuchinhos. Gosto muito dessa visão porque por ali é que se vai embora de Passo dos Ausentes. Mas nunca passei naquela longa estrada. Dom Alberto me pediu que jamais o fizesse. Os medos. Atendi o bom homem. Passaram-se os anos.
O muito amado do meu coração é Pedrolino. Dom Alberto sempre soube, suportou, era como um pai pra mim. O meigo Pedrolino. Amoroso e fiel. Seu amor é casto e resignado. Tem as delicadezas, carrega bosques de ilusão na alma gentil.
Arlequim é o senhor das labaredas.
Inconstante e fútil. Nunca vem ao meu coração. Tem meu corpo, jamais minha alma. Com ele muito me rio, é engraçado, leviano. Incapaz de amar alguém além de si mesmo. Não tem sentimento.
Inconstante e fútil. Nunca vem ao meu coração. Tem meu corpo, jamais minha alma. Com ele muito me rio, é engraçado, leviano. Incapaz de amar alguém além de si mesmo. Não tem sentimento.
O corpo tem fome e a fome, seus apetites.
Arlequim é malicioso, egoísta, por isso sabe agradar quando quer. Pedrolino é terno, quase um menino, vai direto ao assunto. Não conhece as sutilezas.
Arlequim é malicioso, egoísta, por isso sabe agradar quando quer. Pedrolino é terno, quase um menino, vai direto ao assunto. Não conhece as sutilezas.
Quem pudera reunir, na mesma criatura, as gratas virtudes. Mas o mundo humano foi costurado imperfeito, eu sei. Tal felicidade ninguém merece.
Ambos os dois, Arlequim, o devasso, e Pedrolino, o amado, são a minha devoção. Cada qual no seu momento.
Sou a Senhora da Biblioteca. Viúva mui constante em negras vestes de luto. Os respeitos a Dom Alberto. Tenho a minha idade, conheço os regulamentos, mas só os cumpro à minha vontade. Cultivo a fé, no discreto. Véu de seda e missal.
Sou a Senhora da Biblioteca. Viúva mui constante em negras vestes de luto. Os respeitos a Dom Alberto. Tenho a minha idade, conheço os regulamentos, mas só os cumpro à minha vontade. Cultivo a fé, no discreto. Véu de seda e missal.
Não me julguem tão depressa. Poupem-me da moral de almanaque.
De metafísica e solidão o cemitério está cheio. Conheço os reveses.
Eu vivo os enquantos.
De metafísica e solidão o cemitério está cheio. Conheço os reveses.
Eu vivo os enquantos.
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Texto revisto, publicado em 7/7/2011
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