quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

4 rosas

 

photo: jfinatto, jardim da casa

sábado, 23 de janeiro de 2021

Da amorosa arte de guardar peixes e flores*

 Jorge Finatto

photo: Henrique do Valle, 1979
autora: Ana Maria Lopes de Almeida Bastos


Te chamei porque queria que guardasses
meus peixes e flores
agora que vou viajar.

Conhecerei novas terras, outras pessoas
e isso me enche de tanta alegria
que nem sei como expressar.

Prometo que te trarei presentes
e que te contarei tim tim por tim tim
tudo que passei.

Mas até eu voltar, dá uma força,
cuida bem dos meus peixes e flores. 

Henrique do Valle


Há trinta e dois anos trago comigo os peixes e as flores de Henrique do Valle. Em 1981, pouco antes de morrer, ele me confiou um envelope com trinta e um poemas datilografados em folhas de caderno. Escreveu à mão na primeira: "Estive aqui mas não havia ninguém. Espero que aproveites estes textos".

Chovia muito naquela tarde. Ele deixou o envelope na porta e foi embora. Nunca mais o vi.

Eram tempos estranhos aqueles. Trazíamos no peito o sol dos vinte e poucos anos. Em nossa volta, porém, a realidade era sombria e maniqueísta: civis e militares, comunistas e patriotas, Arena e Mdb, direita e esquerda, bons e maus. Não havia meio-termo. A Semana de Arte Moderna de 1922 era ainda o grande acontecimento da literatura brasileira nas salas de aula.

O Brasil era preto e branco, cinema mudo sem Carlitos, cidade morta.

O poema inaugural do envelope falava dos peixes e das flores que o poeta cultivava em seu mundo espiritual. Era talvez o que tinha de mais precioso na vida. A breve existência do Henrique foi toda dedicada à escrita. Foi a maneira que ele encontrou - possivelmente a única - de suportar a passagem pelo mundo.

A entrega do envelope foi um gesto simbólico. A metáfora da preparação de uma longa viagem - a última - que o levaria para muito longe, para bem depois dos moinhos, vales e montanhas estelares. Só entendi isso depois que ele partiu.

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* Primeira parte do meu depoimento no livro Henrique do Valle, Obra Reunida, organizado por Paulo Seben e publicado pelo Instituto Estadual do Livro em 2014. É uma publicação de resgate da obra deste grande poeta que morreu aos 22 anos (21 de março,1958 - 28 de fevereiro,1981). Um livro precioso.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Um certo Terêncio Horto

Jorge Finatto


O escritor Terêncio Horto.* Autor: André Dahmer


O ESCRITOR DESCONHECIDO, frustrado, amargurado e massacrado pela indiferença em torno de seu trabalho certamente encontrará um aliado na figura incansável e batalhadora de Terêncio Horto. Ele é a prova viva de que um autor não deve desistir jamais da luta diante da folha em branco e do pouco caso de editores e leitores.
 
Nós, esforçadas criaturas que escrevem em solitários cubículos, formamos uma invisível e numerosa família. Com poucas exceções, vivemos confinados na caverna do anonimato. Mas somos teimosos, nada de desespero. Pelejamos mesmo nas piores condições. A dura lida nos constrói.

Olhemos o exemplo do irmão Terêncio. Lá na sua clausura, qual isolado monge sentado diante da velha máquina de datilografia, ele não se entrega ao fracasso; luta de sol a sol, nuvem a nuvem, quadrinho após quadrinho, para dar ao mundo os frutos suculentos do seu duro ofício.


O Senhor Horto e seu amigo imaginário. Autor: André Dahmer
 
Terêncio Horto é desses assinalados pelas musas e pela tragédia de escolher a escrita num ambiente grosseiro e de poucas luzes como o nosso. Alcançou algum reconhecimento, mas não perdeu a rebeldia. Faz parte de uma geração de escritores em vias de extinção. 

A esmagadora maioria deles passou a vida sem ser notada pelos leitores, pela crítica, pela mídia e pelos vizinhos dos prédios onde moram. Nunca receberão jabutis, quatis, sagüis, sambaquis e outros importantes galardões literários nacionais. Entanto, lutam a terrível luta de trazer à luz as páginas fadadas ao fundo sombrio de injustas gavetas. 
 
Não apenas escreve bem o Senhor Horto; possui notável poder de observação (notaram o ponto-e-vírgula ali atrás? isto é estilo, senhores!). A sua visão de mundo está impregnada do caos da vida com seus intervalos (raros) de poesia e humanismo. 

Os temas são os mais diversos, desde remotas (e dolorosas) memórias de infância até intrincadas questões de fundo filosófico e outras, não menos tormentosas, inerentes às relações humanas. Nada escapa de sua pluma corajosa e vertical: internet, brigas de família, humilhações, desilusões, sexo, cultura, cinismo, encontros marcantes e alguns nem tanto, amizade, amor, cumplicidade, arte, literatura.
 
O Senhor Horto. Autor: André Dahmer
 
Horto não poupa a si nem ao restante da humanidade de sua ironia e de seu humor corrosivo. Porém, não perde de vista certa dose de ternura e empatia diante da tragicomédia da existência.

O escritor Horto. Autor: André Dahmer
 
Li com prazer e sentimento de vingança este Vida e Obra de Terêncio Hortoe me reconheci em muitas de suas páginas (ri muito, chorei um pouco). O livro já faz parte do meu manual de sobrevivência na selva literária. De forma direta injeta ar fresco e claridade no ambiente de boçalidade do mundo das letras e das artes, além de aliviar a barra pesadíssima do cotidiano. Só resta agradecer ao quadrinista e escritor André Dahmer por nos ter revelado esse grande autor e pensador brasileiro. Com especial destaque para as ótimas ilustrações.

O escritor Horto. Autor: André Dahmer
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*Vida e obra de Terêncio Horto. André Dahmer. Ilustrações do autor. Editora Schwarcz S.A., São Paulo, 2014. 
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Texto revisto, publicado antes em 16.10.2017 

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Noites do hospital

 Jorge Finatto

photo: jfinatto



O câncer colocou-o pra  flutuar numa nuvem de morfina.

Na sala de cirurgia, gente vestida de branco, teto alto, máscaras, luz chapada sobre seu corpo.  Uma vaga claridade entrava pela janela fechada. Um sono longo e induzido. O corte, o sangue, aparelhos. A urgente luta pela vida.

Tinha passado muitos anos ilhado em gabinetes, mergulhado em processos, decifrando histórias, conflitos, decidindo destinos. Enquanto habitava a ilha, o Guaíba fluía sonoro do outro lado da janela.

O rio e seus barcos. O rio e seus peixes. O rio e os admiradores do pôr do sol. O rio e a promessa de viagens nunca feitas.

Os sonhos há muito tinham batido em retirada. Quando foi a última vez que teve tempo para si, para a família e amigos? Não lembrava mais.

Pensava nessas coisas nas noites do hospital, deitado na cama, quando a dor cedia. Voava na nuvem gris, entre brancos aventais e a parafernália eletrônica.

Depois ficou tudo pra depois.

Passou a olhar o mundo com outra mirada. Nada valia mais do que estar vivo, vivo simplesmente.

O risco de desaparecer fez com que se voltasse, sem mais demora, para o que havia de mais precioso na Via Láctea: o pequeno planeta dos seus afetos. 
Somos um sopro de Deus, pensou. 

Sentia-se por um fio, como um astronauta fora da nave-mãe.
 
Precisava de uma chance pra refazer laços perdidos, dar abraços, agradecer, pedir desculpas.

Precisava sobreviver e chegar do outro lado daquele rio sem margens. 
Uma oportunidade foi tudo que pediu a Deus. 

Naquela noite não dormiu até ver o sol clarear a janela do quarto de hospital. Era o primeiro dia da nova vida. Não podia desperdiçar um segundo sequer.

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Texto revisto, publicado em 26 agosto 2015.
 

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Conversando com Deus

 Jorge Finatto

photo: jfinatto. Vale do Quilombo


O SILÊNCIO DE DEUS é cheio de significados. Há pessoas que se ressentem por não escutar a voz de Deus. De fato, Ele não anda tagarelando por aí. Eu, pessoalmente, nunca conversei, face a face, com Deus, quem me dera. Mas talvez a voz Dele seja muito diferente da que imaginamos e se manifeste de muitas maneiras. Quem sabe nos deparamos com ela todos os dias sem nos dar conta...
 
Precisamos aprender a ouvir a voz de Deus. No silêncio.
 
O silêncio não quer dizer que Deus seja indiferente ou surdo às nossas palavras, sentimentos e angústias. Tenho motivos para achar que Ele nos ouve. 

Não sou pregador nem pastor. Apenas observo. Creio que existem realidades além das coisas visíveis e tangíveis. Como explicar a poderosa criação que existe por trás de uma flor, uma nuvem, um pássaro, uma pessoa? Há algo espiritual que não se explica pela razão nem pelo acaso.

Sim, Deus não perde tempo com bobagens. Por exemplo, penso que Ele nunca se envolve com resultados de futebol ou de qualquer outro esporte (se fosse atender, todos os jogos terminariam empatados). Ele tem outras prioridades.
 
O silêncio de Deus escuta o coração e o sofrimento humano. É o que parece. E de algum modo misterioso nos responde quando entende que é o caso. Depende muito - digo eu - da qualidade da conversa. Tem gente que só sabe pedir, pedir mais e mais, esquecendo-se de agradecer.

Creio que, sim, Deus gosta de boas conversas. Imagine como deve ser solitário não ter com quem dialogar... Se Ele nos criou à sua imagem e semelhança, como está escrito na Bíblia (Gênesis 1:26), deve estar disponível para um bom bate-papo. Mas precisamos saber e querer ouvir também.

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Texto revisto, publicado em 6 de agosto, 2019.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

La que "Nunca tuvo novio"

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


La que Nunca tuvo novio. A melodia nostálgica, suave e doce deste tango de 1930 (Augustín Bardi e Enrique Cadícamo) me levou a encontrar a mulher que nunca teve namorado, que triste!

E a vi horas sem fim na janela, olhando a calle desierta, onde algum moço passava de vez em quando, e ela então sonhava. Mas o moço apenas passava diante de sua janela, todos os moços passavam e se iam para outras moças em outras calles.

Ela morava com a mãe, cuidava da casa e dos sobrinhos. Numa calle com casas coloridas e flores humildes nas janelas, num bairro distante.

Uma ruazinha perdida em Buenos Aires, um lugar escondido de Deus, um ermo esquecido ao sul do planeta. Igual a tantos no mundo. Lá ela morava.

Aos sábados, la que nunca tuvo novio se enfeitava com um vestido florido que ela mesma fizera e se ia pelas ruas do barrio com a sombrinha lilás doendo sob o sol. Olhava as vitrines, conversava na praça com as vizinhas, tomava refresco do vendedor ambulante. Saboreava algodão doce. Esperava.

Depois voltava sozinha pra casa por ruas estreitas. Assim passaram-se os anos. As amigas de infância se casaram, depois as filhas delas. A vida passou. E as vizinhas diziam: la que nunca tuvo novio. Pobrecita!

Essas coisas eu vi e senti enquanto ouvia o tango portenho. Caminhei pela calle triste da pobre moça que nunca teve namorado.

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Texto revisto, publicado em 24 de janeiro de 2015.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Enchendo o saco de Deus

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


AS BARBARIDADES que o ser humano faz todos os dias. Seremos nós um ato falho da criação? Fico pensando nessas coisas que me perseguem desde os tempos do Dilúvio.

Está escrito em Gênesis 6: 5-8: "Por conseguinte, Jeová viu que a maldade do homem era abundante na terra e que toda inclinação dos pensamentos do seu coração era só má, todo o tempo. E Jeová deplorou ter feito os homens na terra e sentiu-se magoado no coração."

"De modo que Jeová disse: "Vou obliterar da superfície do solo os homens que criei, desde o homem até o animal doméstico, até o animal movente e até  a criatura voadora dos céus, porque deveras deploro tê-los feito." Mas Noé achou favor aos olhos de Jeová."

O Dilúvio veio, choveu durante quarenta dias e quarenta noites, destruiu tudo, salvo Noé, sua família e os animais que levou junto na famosa arca. A vida recomeçou.

A solidão e a tristeza de Deus me comovem. Não se sentirá Ele muito sozinho, sem ter com quem conversar, em tempos de tanta maldade e incompreensão como agora? Terá o Criador alguém com quem desabafar nas horas difíceis?
 
Refiro-me àqueles dias em que Ele olha para a Terra e assiste ao deplorável espetáculo que continua sendo apresentado por homens e mulheres. Como se sente um Pai ao ver os filhos nos descaminhos da perversidade, do puro egoísmo, sem falar na solene indiferença ao sofrimento dos outros? Deve ser muito doloroso.

Espero que Deus perdoe a minha intromissão em seus assuntos de foro íntimo. Ainda mais partindo da milionésima parte de um grão de areia como eu.

O pensamento é o parque de diversões de filósofos, poetas e outros seres inúteis. Essa gente que passa os dias obstinada em encher o saco de Deus como se o Criador não tivesse mais o que fazer.

Eu aqui nessa puta solidão a querer falar da solidão do Todo Poderoso. Tem gente que não se enxerga.