Jorge Finatto
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photo: jfinatto, grafite em Montevideo |
a vida de todos os dias, a que eu sempre quis {textos e imagens: Jorge Finatto}
Jorge Finatto
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photo: jfinatto, grafite em Montevideo |
Clara Finatto*
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Ilustração: Clara Finatto |
Era o começo de uma noite fria
do mês de junho e eu estava caminhando pelas ruas do bairro quando vi, ao
longe, um homem deitado na calçada bem debaixo de um poste de luz.
Ao me aproximar percebi que era
um morador de rua. Naquele chão frio, com um cobertor até o pescoço, segurava na mão
esquerda um livro aberto e, com a direita, pegava bolachas de um saco
plástico para comer - no intervalo entre uma página e outra.
Fiquei muito tocada ao ver a
cena. Custei a acreditar.
Que homem seria aquele? Mesmo diante
da pobreza extrema cultivava o hábito de ler. Como conseguia manter assim viva
a sensibilidade naquelas condições?
Chegando mais perto pude ver
que ele lia “O Fantasma de Canterville” de Oscar Wilde. Fato este que me deixou
mais emocionada, pois sou apaixonada por esse escritor.
Nada sabia sobre aquele homem,
mas me identifiquei instantaneamente com ele.
Perguntei qual era o seu nome.
Ele respondeu, com uma voz suave, que se chamava João. Quis lhe fazer mais perguntas, mas me segurei. Não queria incomodá-lo.
Na sequência questionei se
teria interesse em ler outros livros. Ele abriu um largo sorriso
e disse que sim.
Então, combinamos que eu faria
a entrega de um livro diferente a cada 10 dias, sendo a entrega feita naquele
mesmo local que chamamos de Poste da Leitura...
No dia seguinte emprestei-lhe
o primeiro livro. Escolhi “O Retrato de
Dorian Gray” do mesmo Oscar Wilde já que ambos gostávamos do autor.
Passados 10 dias fui ao Poste
da Leitura para entregar o segundo livro e para saber o que havia achado do
anterior. Ele, muito educado, agradeceu e disse que tinha gostado bastante do
livro. Assim, ele devolveu o primeiro e entreguei “Os Dragões não conhecem o
Paraíso” de Caio Fernando Abreu.
Decorridos mais 10 dias fui,
muito contente, ao encontro do meu amigo João para alcançar-lhe o terceiro
livro: “Dom Casmurro” de Machado de Assis.
Transcorrido outro período saí para a próxima troca, mas, de longe, percebi que João não estava lá. E quando
cheguei ao Poste da Leitura vi que ele havia deixado o livro entre folhagens
enrolado em um papel de pão.
Ao pegar o livro vi que ele
havia escrito um bilhete que dizia:
“ESSE
LIVRO FOI O ÚLTIMO. COM HISTÓRIAS ASSIM VOU ACABAR ME MATANDO”.
Nunca mais o vi nem tive
notícias dele. Queria muito revê-lo para pedir desculpas pela seleção que
não lhe agradara e, quem sabe, tentar outros livros.
Espero que João, onde estiver, continue com suas leituras.
______
*Advogada e artista plástica.
Jorge Finatto
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photo: jfinatto |
As hortênsias estão floridas em volta da casa. Isso, em meados de fevereiro, alto verão, é raro. O sol violento de dezembro em diante costuma castigar as hortênsias e outras flores, e é comum restarem secas ao final de janeiro. Este ano não foi assim. Plantas e flores estão bem vivas.
Um verão cordial, portanto. A brandura das temperaturas faz pressentir os primeiros acenos do outono que começa em 20 de março. Tem chovido cordialmente, também, afastando-se a hipótese de seca. Plantações prometem, reservatórios não se ressentem.
De modo que, ao menos nisso, estamos bem. Não vou falar da lentidão brutal da vacinação contra a covid-19, da impiedosa disseminação do vírus nas últimas semanas, do triste aumento das mortes, da insubordinação de parte da população contra normas básicas de prevenção, do sofrível desempenho das autoridades ao lidar com a crise.
Não vou falar do modo patético como alguns indivíduos, que deveriam dar exemplo, lidam com esta realidade, promovendo aglomerações, não usando máscara, subestimando a gravidade do que está acontecendo, ao invés de estimularem os cuidados necessários.
Eu nunca vi nada parecido com o que está acontecendo no Brasil. A situação geral piorou muito. Não se veem horizontes por perto. E não apenas devido à pandemia. Parece que os nossos piores defeitos enquanto sociedade resolveram aflorar ao mesmo tempo.
Como estava dizendo, as flores e plantas estão vivas em volta da casa, e resistem.
Jorge Finatto
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Contraforte dos Capuchinhos. foto: jfinatto |
VAMOS para meados de fevereiro, quase um ano depois que isso tudo começou. As primeiras doses de vacina começaram a ser aplicadas em janeiro, mas a aplicação segue tão lenta aqui no Brasil que não sabemos se estaremos vivos quando a nossa vez chegar. Enquanto isso, tome confinamento longe da família, dos amigos, da antiga vida.
É preciso paciência, é preciso não enlouquecer enquanto se aguarda. É preciso esperar, também, pela apuração de responsabilidades dos que subestimaram os efeitos da pandemia e, assim agindo ou se omitindo, contribuíram para o mau gerenciamento da crise sanitária que resultou na maior disseminação do vírus, na enorme pressão sobre serviços de saúde, nos milhares de mortos (233.588 até o dia de hoje).
Sinto saudades não do tempo de antes da pandemia, mas dos dias que virão (um dia virão). Me vejo caminhando nas ruas do bairro outra vez, indo ao café na frente da praça para conversar com o atendente sobre o tempo e futebol, e para beber um cappuccino folheando livro ou revista.
Saudade de comprar jornal na banca da esquina, pão no balcão do armazém, de ir ao barbeiro como nos velhos tempos (meu Deus, quanto tempo!).
De tanta saudade das coisas do futuro, chego a sentir um nó no peito. Mas corto por aqui essas visões. Não dá para enfartar agora em que esse amanhecer surge - tímido embora - no horizonte.