domingo, 30 de maio de 2021

A vida sem pandemia

Jorge Finatto

Festa das folhas. Outono. photo: jfinatto



Ah, saudade que eu sinto daquele tempo em que éramos eternos...

Adão e Eva tiveram tudo à mão. Dos mais doces frutos aos mais delicados perfumes.

De lambuja, Deus lhes ofereceu a vida eterna.
 
Mas nossos vetustos avós, por razões difíceis de entender, decidiram chutar - e chutaram mesmo - o pau da barraca, comendo do fruto interdito da árvore do conhecimento. Contrariando o Criador, foram expulsos do Paraíso e tornaram-se mortais, transmitindo-nos, desde então, a finitude.

O Paraíso situava-se nas cercanias da rica região do Tigre e do Eufrates, devastada, nos últimos tempos, por guerras, atentados terroristas e saques ao antiquíssimo acervo de objetos históricos.

Com sua desobediência, o famoso casal nos deixou a morte de herança.

Com Cristo veio a esperança da reconquista da eternidade perdida.

Eu não entendo. Por que não podiam comer do fruto do conhecimento? Por que a pena eterna da perda da vida?

Isso tem a ver com o grave conflito que se trava nas altas esferas entre o Todo Poderoso e o Coisa Ruim. Os estilhaços sobram para o povo da Terra, nós. Que não somos grande coisa, vá lá. Mas talvez pudéssemos receber alguns benefícios durante o cumprimento da pena. Como, por exemplo, neste momento, ver a pandemia ir embora do planeta. Tanto sofrimento, tantas lágrimas, tantas mortes.

Quem sou eu para questionar os desígnios do Alto. Mas que a coisa está duríssima e tristíssima aqui embaixo não resta dúvida. Desde a tremenda insignificância dessa página, eu ouso pedir vênia ao Criador, solicitando um armistício que nos dê, nessa hora difícil, o benefício da dúvida, tornando, se possível, menos dolorosa nossa passagem pela existência.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Coisas que o mar trouxe à praia

 Jorge Finatto

photo: a meio do voo. Lugano, Suíça. jfinatto

Uma garrafa com bilhete do náufrago, datado de 1956, um tênis enrolado em algas, um canudo de plástico, uma lágrima guardada num lenço azul de renda, uma lata de cerveja, uma boia amarela, um diário com o nome do(a) autor(a) riscado, um lápis de cor,  uma anêmona desfalecida, uma flauta doce soprando uma cançoneta medieval, uma bola de borracha, um livro de Rilke que se desprendeu de uma mala do navio afundado, um pôr do sol cor de laranja, um audiobook com o livro do desassossego em mandarim, um bronzeador cheio, um barco a vela quebrado sem ninguém a bordo com um flamingo na proa, um chinelo de dedo pé direito, um coco verde, uma máscara de colombina, uma lupa da Finlândia, um guarda-sol com a inscrição philosofia à beira mar, uma concha cor-de-rosa, um búzio enorme, um chapéu de palha, uma boneca de porcelana com olhos fechados, uma cortina de tule, uma toalha com desenho de um palhaço atônito, uma tartaruga em viagem, um pingüim perdido, um grito distante de afogado, um boné de marinheiro branquinho, uma canção de ninar gente velha, um pelicano pimpão, um livro de poemas em inglês de robert frost, um óculos preto e redondo sem lentes, um canivete suíço, uma caixa de música polonesa, uma bailarina de papel machê sem uma perna, a memória de um homem sentado sozinho num café em Paris, uma mulher sentada no lado oposto deste mesmo café, um dente que caiu em 1963, o latido de um cachorro aflito atrás do dono, uma foto 3x4 em que o sujeito aparece com a mão direita tapando um olho, um piano que escorregou do convés e foi quando o baile terminou, um relógio de corda marcando 17h em ponto do dia 10 de maio do ano da peste de 2021.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Vigília

 Jorge Finatto

photo: jfinatto

a Mauro Carboni


Faz três dias que não durmo.
Enquanto isso ele dorme
profundamente.
Tenho de aceitar que ele não acordará
como se isso fosse normal
como se não fosse a negação da velha
amizade
como se ele não fosse um desses
essenciais
que andam invisíveis pelo mundo
tecendo generosidade
cuidando dos amigos
velando sua solidão.
Ele sequer se despediu
não avisou
nem disse nada
nem escreveu.
O sono
brutal e traiçoeiro
assaltou-o em pleno dia.
Simplesmente adormeceu
saiu de cena
partiu em silêncio
num retiro absoluto, irrevogável.
Faz três dias que não durmo
sentado junto à janela
vendo a noite e o dia lá fora.
Ele dorme profundamente
sem se despedir, sem dizer nada
sem ao menos pedir desculpas
pela inumerável ausência
dolorosa saudade.

terça-feira, 27 de abril de 2021

Ocaso

 Jorge Finatto

photo: jfinatto

Um belo pôr do sol iluminou a copa dos pinheiros, dos plátanos e dos telhados, hoje, aqui na montanha. Vermelho suave no início, depois rosicler, viva aquarela. 

Uma pintura delicada num tempo desesperado. Um concerto de trompa alpina a céu aberto. Um mergulho na maravilha. 

Clareira de luz em meio à treva absoluta.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Clorofilizemo-nos

 Jorge Finatto

bergamotas. foto: jfinatto


A tentação da carne leva os mortais a cometer loucuras. Apaixonados e obsedados, esquecem todo o resto e submergem na vertigem luxuriante dos sentidos. Estremecem, deliram, lambuzam-se. Depois, prostram-se saciados diante do prato vazio.

Eu parei de comer carne. Acolhi o mantra: não matarás do reino animal para teu sustento. Sublimei a tentação, tornei-me um ser frugal. Clorofilizei-me. 

Inaugurei uma nova dieta: verdes alfaces, tenros chuchus, meigas ervilhas-tortas, nédias melancias, socados abacates, recatadas couves-flores, risonhas bergamotas. Sem esquecer o inefável melão gaúcho, as inolvidáveis morangas e as voluptuosas batatas-doces.

Substituí o verbo matar pelo plantar. Troquei os rebanhos pela horta; o peso pela leveza.

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Todos os mortos

 Jorge Finatto

Em breve estaremos todos mortos e com saúde. 

Esta parece ser a lógica negacionista que renega medidas recomendadas por médicos e cientistas para enfrentar a covid-19. De tanto não fazer o que precisa ser feito, o Brasil está com transmissão e óbitos em níveis elevadíssimos. Só nas últimas 24 horas morreram 4.249 pessoas, conforme dados oficiais, alcançando o total de mais de 345 mil mortes.

Os números terríveis saem todos os dias à tarde, estragando as restantes horas do dia. E dizer que com lockdown ou, pelo menos, distanciamento social rígido por cerca de 21 dias, fornecendo às família necessitadas auxílio para manter-se em casa, milhares de vidas poderiam ser salvas, como ocorreu recentemente em Araraquara e Manaus.

Eu já vi muita estupidez na vida. Nada se compara, contudo, ao que acontece hoje no país. O mau jeito dos governantes em lidar com a crise sanitária, com poucas exceções, e a falta de união nacional em torno do combate à hecatombe produzem efeitos nefastos.  

Quem ainda não perdeu um parente, um amigo ou conhecido? Quem, sendo pessoa razoável, não teme por sua família e por si? Quem não sofre com o noticiário vertiginoso dando conta de hospitais superlotados, unidades de terapia intensiva esgotadas, médicos e enfermeiros em prolongado estresse diante dos casos que são obrigados a ver e administrar todos os dias? 

Quem não se sente abalado ao saber das mortes sem oxigênio, sem que o doente (isolado) tenha um familiar ou amigo a quem dar a mão?

Já se fala que o número de mortos poderá superar o de nascimentos no Brasil.

Por que a razoabilidade foi expulsa do nosso país? Por que esse bate-boca diário e infernal sobre política e temas tão mesquinhos que em nada ajudam? Em que momento nos tornamos isto, um lugar onde a  morte e o sofrimento invadiram o cotidiano de forma avassaladora? O que foi feito de nós?

Que triste mensagem estamos transmitindo ao mundo! Que assustadora visão: a imensa caravana de mortos indo para os cemitérios! 

A percepção negacionista da realidade e seu discurso venceram entre nós. Resta saber quantas pessoas mais perderão a vida devido ao obscurantismo. Porque hoje, no Brasil, o que mais se faz é contar e numerar cadáveres, esquecendo-os em seguida.

terça-feira, 6 de abril de 2021

Ressuscita-me

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


Durar não é viver. Viver não é só durar. É ser um pouco feliz a cada dia. É pedir perdão antes que os laços se cortem para não haver remorsos depois. É abrir o coração antes que as pessoas desapareçam de nossas vidas e só restem nos retratos. Antes que nós sejamos apenas memória para os outros.
É preciso ter uma nova oportunidade para acertar as coisas, os sentimentos. Ver a casa cheia e feliz na Manhã de Páscoa.

Ouvir as conversas, os risos. Mas hoje isto não é possível; quem sabe no ano que vem? Poder ficar em paz no Domingo de Páscoa longe de tanta tristeza.

E levar no coração essa vaga esperança de Ressurreição, como a do Cristo.
Porque uma vida só é pouco.
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Como diz Maiakóvski neste poema que é um grito humano em meio à solidão:
"Não vivi até o fim o meu bocado terrestre.
Sobre a Terra
não vivi o meu bocado de amor.
(...)
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!"
Maiakóvski*
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*O poeta-operário. Antologia poética. Vladímir Maiakóvski. pp. 154-156. Tradução e estudo biográfico de Emílio Carrera Guerra. Cìrculo do Livro S.A., São Paulo, 1991.
photo: jfinatto