Jorge Finatto
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cerejeira do Japão. photo: jfinatto |
a vida de todos os dias, a que eu sempre quis {textos e imagens: Jorge Finatto}
Jorge Finatto
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cerejeira do Japão. photo: jfinatto |
Jorge Finatto
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Obra: Totenklage, de Hermann Scherer Kunsthaus, Zurich, foto: Jfinatto |
A Rua São João, onde vivi até os seis anos, era um resumo do mundo. Tinha toda gente ali. Gente muito pobre, gente remediada, gente com algum dinheiro metida a besta. Eu morava com os avós a meio caminho entre o início e o fim da rua. Meus amigos vinham dos dois lados.
A Rua São João foi nossa ilha de Patmos, lugar humilde e esquecido. Fragmento de uma civilização da qual era apenas um minúsculo reflexo. O apóstolo, porém, vivia lá conosco e, comovido, deve ter escrito muitas histórias daquele pequeno mundo.
Jorge Finatto
photo: jfinatto |
A fúria do tempo não dá trégua e açoita os vivos. Os que são por um instante.
No alto da colina os mortos velam a cidade. Olham o Guaíba e os marinheiros que partem cedo da manhã nos cargueiros para outros mundos.
Os mortos observam a cidade do alto da colina. Não há movimento nas ruas, casas, praças, parques e edifícios. Os vivos adormecem em fundas grutas de sombras e cansaços.
Os mortos na alta colina procuram sentidos e não há mais sentidos.
Na cidade dos mortos os mortos velam os vivos.
Jorge Finatto
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Lago Lugano. Suíça. photo: jfinatto |
Jorge Finatto
Rio Guaíba. photo: jfinatto |
As lembranças mais antigas que carrego de Porto Alegre estão ligadas ao Rio Guaíba. Rio que especialistas em assuntos hídricos denominam lago.
Eu jamais cederei ao conceito científico de chamar de lago o meu amigo Guaíba. Nos conhecemos de muitas décadas pelos nomes com que fomos apresentados, na infância ainda, não tem por que mudar isso.
Quando ando perto dele, sinto no rosto a brisa ou o vento que vem de seu eterno movimento, e do mar. O aroma adocicado de suas águas impregna os barcos de madeira dos pescadores.
Os habitantes das ilhas adivinham o mau tempo pelo encrespado nervoso das ondas. Às vezes um grande navio adentra ou sai lentamente pelo canal. Chegadas e partidas do povo das águas.
O cais ensina que todos estamos de passagem.
Tinha seis anos quando viemos - os avós e eu - visitar a família em Porto Alegre. Ficamos no pequeno apartamento da Rua Washington Luiz de frente para o Guaíba.
O que era para ser uma simples viagem de passeio transformou a minha vida. A avó morreu, de repente, no sofá da sala, assistindo à televisão comigo ao lado. Nunca mais voltei para a casa serrana.
Foi ali que, com os olhos cheios de lágrimas, esperando o bonde passar, atravessei a rua e visualizei de perto, pela primeira vez, o rio, longo, largo, cheio de vida.
Os pequenos barcos, as grandes embarcações. As gaivotas, os biguás, os peixes. A solidão.
O Guaíba foi meu primeiro amigo em Porto Alegre.
Jorge Finatto
Li agora, no informativo da Ajuris, que morreu ontem José Paulo Bisol aos 92 anos. Desembargador aposentado, desenvolveu também intensa atividade como homem público na política após a aposentadoria. Lembro dele antes da política como comentarista de futebol, no século passado, acho que na TV Educativa. Teve presença marcante também na TV Gaúcha uma época. E, sobretudo, para mim, como apresentador de um comentário, às 7 da manhã, na Rádio Gaúcha, Bom Dia, Mano, se não me engano era o nome. Eu morava então numa quitinete na beira do Guaíba, trabalhava como revisor de livros e a vida era na sobrevivência, raça pura. O comentário do Bisol me ajudava a enfrentar a dureza do cotidiano. Uma escuridão tremenda ainda sob os efeitos da ditadura militar que assolou o país (1964-1985). Nunca esqueci a força, a energia, a crença no amanhã que ele passava nas palavras. Como juiz estive com ele uma única vez, quando ele era Secretário da Segurança Pública do Estado, governo Olívio Dutra, num Encontro de Execução Penal do Tribunal de Justiça. Não houve oportunidade de dizer-lhe o quanto suas lúcidas e cálidas palavras tinham sido importantes. Fica aqui o registro. Que Deus o acolha no coração.
Jorge Finatto
Em memória dos 500 mil mortos durante a pandemia covid-19 no Brasil
"A pessoa tenta puxar o ar para dentro dos pulmões mas o ar não vem. Uma, duas, três, várias vezes. Até que o ar não é mais preciso. A pessoa não está mais ali. Meu pai do céu amado!"
De um sobrevivente de UTI.
A todos aqueles que subestimaram a pandemia e negaram seu imenso poder de destruição está reservado um capítulo na história. Como se diz, a semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória. Ninguém foge disso.
Muitos dos que debocharam e ainda hoje debocham da gravidade do que estamos vivendo, da dor e do sofrimento de milhões de pessoas, amanhã ou depois, diante de um tribunal local ou internacional, haverão de fazer-se de inocentes ou arrependidos. Mas então será tarde.
Tiveram todas as chances de perceber o que estava acontecendo e de agir de modo diferente e, no entanto, desprezaram os fatos movidos sabe-se lá por quais sentimentos.
Como se o horror de 500 mil mortos fosse o preço razoável (e necessário) a pagar pelo aumento do pib.
Como se todas essas mortes fossem inevitáveis e não fruto da mais abjeta e cultivada maldade de uns e ignorância de outros.
Como se medidas simples e universalmente aceitas não fossem capazes de evitar muitas dessas perdas, se tivessem sido adotadas tempestivamente em programa nacional de prevenção voltado para a população em todos os entes federados.
Como se a politização da pandemia, o conflito permanente, a vaidade pessoal exacerbada, a sede absurda de poder não fossem a chave do abismo. O futuro chegará e haverá julgamento para todos que usaram a pandemia para obter vantagem.
500 mil vidas perdidas serão registradas para sempre na História e permanecerão em nossos corações, nas nossas preces e na memória das gerações que virão.