sábado, 4 de setembro de 2021

Perdendo contato com a torre

 Jorge Finatto

Castelo de Gruyères, Suíça. jfinatto


Na quarta-feira saí para dar uma volta no bairro, em Porto Alegre, levando o Gambelo a passear. Na frente de um edifício, no gramado interno, reconheci um vizinho de muitos anos que ali estava com seu cachorrinho. Percebi que lembrou de mim, ainda que de um jeito meio vago. Aproximei-me para cumprimentá-lo. Não nos víamos há mais de três anos, desde que fui morar no interior. Perguntei-lhe como estava.

Ele respondeu que estava bem e quis saber meu nome. Estranhei mas respondi. Ele então falou que conhecia outro Finatto, seu vizinho, que morava ali perto. E era juiz. Indagou se eu não o conhecia. Respondi que não, mas que também morava no bairro, naquela rua, e tinha a mesma profissão. Pensei que ele ia se dar conta. Ele ficou surpreso...

Dei-me conta de que meu vizinho de mais de 20 anos não me reconhecia mais. Está com 80 anos e aparenta boa forma física. Engenheiro, construiu muitos prédios. Era capaz de recordar quem eu era, no passado, sabendo alguns detalhes da minha vida, mas não me reconhecia no presente. Voltei pra casa desalentado.

Comentei com um médico que disse tratar-se, possivelmente, de Alzheimer. A pessoa "perde contato com a torre", disse ele, tem falta de memória, fica desorientada, não reconhece pessoas, coisas que acontecem aos vivos, ninguém está livre, etc. 

Eu fiquei muito tocado com o episódio. É duro demais. Rezo pelo meu vizinho desejando que siga a vida. De qualquer forma, seja feliz com ou sem memória.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Vivendo e escrevendo

 Jorge Finatto

capa livro Viveiro, 1981


Há 40 anos escrever, e publicar, poemas era um ato de vida e de resistência. Em meio à ditadura civil-militar, era preciso cultivar a esperança, a beleza da palavra, o direito de viver e lutar por dias melhores diante da escuridão vigente. Importava menos a literatura em si do que o grito.
Já não tenho 24 anos e seria absurdo voltar ao calabouço depois de conhecer a claridade da democracia (ainda que imperfeita).
A pior democracia é melhor do que a melhor das ditaduras, seja ela de esquerda ou direita.

Seria demais esperar que os donos do poder refletissem sobre isto? Sobre o que quer que seja?
Viveiro” (plaquete, livro artesanal) foi publicado em 1981, em São Paulo, pelo Grupo Sanguinovo, liderado pelo talentoso e incansável poeta Antonio Carlos Lucena, o Touchê. As apresentações foram escritas por Heitor Saldanha e Leila Míccolis. E a bela capa foi feita por Rita H. Pedroso.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Cerejeira do Japão

 Jorge Finatto

cerejeira do Japão. photo: jfinatto


As pequenas flores da cerejeira do Japão anunciam para breve a chegada da primavera.
Em setembro haverá menos mortos e doentes pela pandemia. Mais vigor com as vacinas, mais enfermos curados.

A vida se renova e com ela a esperança de dias mais claros, mente lúcida e coração calmo. Renascimento.

No meu jardim resiliente nascerão mais flores e os pássaros retornarão depois do longo e triste inverno.
Continuar vivo sob o Sol é o grande projeto de vida.

domingo, 1 de agosto de 2021

Rua de mulheres

 Jorge Finatto

Obra: Totenklage, de Hermann Scherer
Kunsthaus, Zurich, foto: Jfinatto

     Beco das minhas tristezas.
Não me envergonhei de ti!
Foste rua de mulheres?
Todas são filhas de Deus!
Dantes foram carmelitas...
 
(fragmento de Última Canção do Beco, Manuel Bandeira) 

A Rua São João, onde vivi até os seis anos, era um resumo do mundo. Tinha toda gente ali. Gente muito pobre, gente remediada, gente com algum dinheiro metida a besta. Eu morava com os avós a meio caminho entre o início e o fim da rua. Meus amigos vinham dos dois lados.

Era uma rua de terra batida, pedras soltas. Por lá passavam carretas puxadas por bois levando lenha, tarros de leite, cestos com frutas, etc., além de conduzir pessoas para compras no centro da cidade, para a estação de trem, para a missa, hospital, visitas a parentes e cemitério. Às vezes corríamos atrás e pagávamos carona enquanto o carroceiro não percebia.
Tinha meninos e meninas de origem africana, italiana, árabe, portuguesa, alemã, sei lá mais o quê. De tempos em tempos apareciam uns ciganos que acampavam com suas tendas, seus tachos e panos coloridos, ficavam um tempo e depois iam embora.
O pai de um amigo era mágico, outro fazia vinho no porão, um outro emprestava dinheiro, outro via o futuro nas folhas da videira, tinha também um carteiro, uma benzedeira e uma parteira, Dona Noca (que me trouxe à luz).
Havia uma família que assaltava bancos. Eu era muito amigo do menino desta família. A polícia ia lá de vez em quando e levava o pai e os irmãos mais velhos dele. Depois eles voltavam. Até que um dia a família anoiteceu e não amanheceu, foram embora de madrugada pro Paraná. Nunca mais vi o Paulinho.
A vida não tinha novidades. Uma noite um vizinho (Luís, o comunista) estendeu um grande lençol branco na frente de sua casa e começou a passar um filme. Aquilo foi um assombro, mexeu com todo mundo. Dali por diante passou a exibir filmes duas vezes por mês. Levávamos as cadeiras de casa, pipoca e outras coisas. O Natal era triste como as noites de domingo para nós, pobres. Mas os dias de cinema eram a maior alegria graças ao Luís. Diziam que filmes, projetor e etc. ele tinha trazido da Rússia.
Diziam os homens mais velhos que a nossa rua tinha sido rua de mulheres há muitos anos. Algumas venerandas senhoras ainda viviam por lá mas já então aposentadas do ofício e com família.
Contavam eles que as mulheres da vida recebiam os homens das mulheres que não eram da vida para oferecer-lhes coisas que não tinham com as esposas. Era um complemento necessário para a harmonia do casamento, segundo falavam enquanto jogavam truco. E, além do mais, evitava que os rapazes buscassem sexo com meninas casadoiras retirando-lhes o selo da virtude.
As putas eram fiadoras dos "bons costumes e da moral". Viviam, porém, no subsolo, no qual a "gente de bem e honesta", hipocritamente, insistia em enterrá-las. Eu não entendia nada daquilo.
Mas depois tudo se esquecia, porque era talvez o melhor a fazer. Afinal, São João era o Apóstolo que a todos iluminava na treva, na injustiça, na dor. O homem que escreveu o Apocalipse não havia de nos deixar à deriva no abismo da condição humana.

A Rua São João foi nossa ilha de Patmos, lugar humilde e esquecido. Fragmento de uma civilização da qual era apenas um minúsculo reflexo. O apóstolo, porém, vivia lá conosco e, comovido, deve ter escrito muitas histórias daquele pequeno mundo.

domingo, 25 de julho de 2021

São Miguel e Almas

Jorge Finatto

photo: jfinatto


A fúria do tempo não dá trégua e açoita os vivos. Os que são por um instante. 

No alto da colina os mortos velam a cidade. Olham o Guaíba e os marinheiros que partem cedo da manhã nos cargueiros para outros mundos.

Os mortos observam a cidade do alto da colina. Não há movimento nas ruas, casas, praças, parques e edifícios. Os vivos adormecem em fundas grutas de sombras e cansaços. 

Os mortos na alta colina procuram sentidos e não há mais sentidos. 

Na cidade dos mortos os mortos velam os vivos.

sábado, 10 de julho de 2021

Sexo gostoso

 Jorge Finatto

Lago Lugano. Suíça. photo: jfinatto


Na adolescência, tive uma namorada que reclamava porque eu não fazia sexo com ela. Dizia que eu era paternalista, meio estranho. De fato eu vivia com a cabeça nos meus livros, distante do mundo, numa caverna existencial cheia de perdas, seres voláteis, sombras e mistérios. Acho que buscava outras realidades, transcendentes, inventadas, porque a minha, de estudante pobre e sem perspectiva, vindo do interior, em plena ditadura militar, era muito dura.  

Gostava de caminhar com ela de mãos dadas, tomar um café, sentar numa praça, andar na chuva, saber de sua vida, falar da minha. Eu achava tão bom ficar desse jeito, conversando, que nem precisava sexo. Era, talvez, um modo diferente de transar. Mas ela não entendeu assim. Não demorou muito, terminou comigo, claro. E eu fiquei sem aquele sexo gostoso.
 

domingo, 27 de junho de 2021

Guaíba, mar de lembranças

Jorge Finatto

Rio Guaíba. photo: jfinatto


As lembranças mais antigas que carrego de Porto Alegre estão ligadas ao Rio Guaíba. Rio que especialistas em assuntos hídricos denominam lago. 

Eu jamais cederei ao conceito científico de chamar de lago o meu amigo Guaíba. Nos conhecemos de muitas décadas pelos nomes com que fomos apresentados, na infância ainda, não tem por que mudar isso. 

Quando ando perto dele, sinto no rosto a brisa ou o vento que vem de seu eterno movimento, e do mar. O aroma adocicado de suas águas impregna os barcos de madeira dos pescadores. 

Os habitantes das ilhas adivinham o mau tempo pelo encrespado nervoso das ondas. Às vezes um grande navio adentra ou sai lentamente pelo canal. Chegadas e partidas do povo das águas. 

O cais ensina que todos estamos de passagem. 

Tinha seis anos quando viemos - os avós e eu - visitar a família em Porto Alegre. Ficamos no pequeno apartamento da Rua Washington Luiz de frente para o Guaíba.

O que era para ser uma simples viagem de passeio transformou a minha vida. A avó morreu, de repente, no sofá da sala, assistindo à televisão comigo ao lado. Nunca mais voltei para a casa serrana.

Foi ali que, com os olhos cheios de lágrimas, esperando o bonde passar, atravessei a rua e visualizei de perto, pela primeira vez, o rio, longo, largo, cheio de vida. 

Os pequenos barcos, as grandes embarcações. As gaivotas, os biguás, os peixes. A solidão.

O Guaíba foi meu primeiro amigo em Porto Alegre.