segunda-feira, 16 de abril de 2012

A claridade do coração

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

A trevosa sintaxe da vida.

A escuridão das almas. Fugidias imagens me perseguem. Nos urdimentos do bandoneón, busco outras claridades. Viver longe do abismo, no vero amanhecer, eu busco. Eu, Juan Niebla, venho do neblinoso. Trouxe o calepino?

Tenho andado pela vida à procura de luz. Essa que vem de dentro. A escuridão está por toda parte, principalmente nos corações.

As trevas-mestras sustentam o mundo.

Bem-vindo o que vem em paz e desarmado. Os regulamentos da amizade eu cumpro. A minha casa está sempre aberta. Nos enquantos, porque amanhã é escuro. Anote, por favor.
 
A treva foi inaugurada com a luz principial.

Isto é demanda antiga. A velha contradição, o bem contra o mal. A luta imemorial. Mas também o complemento ideal, um não existe sem o outro. Em termos de arriscada filosofia, caminho em beira de precipício.

A maldade não tem sala na minha casa. Sou músico de bandoneón e antiga memória, na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes.

Espero com o ouvido a chegada do invisível trem. Cego desde os 16 anos, sim, senhor. O resto é o breu e se dissipa quando toco meu instrumento no velho banco.
 
A vida é dura? Pra completar, é breve. Somos um ato-falho da criação.

Sou homem de fé, Deus me perdoe. Se vive. Fazemos o que é possível, às vezes muito menos, às vezes pouco mais. Somos ferida em carne viva, vivo pensamento. Se vive. Está anotando?
O certo é que, na vida como na arte, a gente fracassa sempre. Falta aquele grito, aquela palavra, aquela revolta na hora certa, o remate contra a escuridão, aquilo que não foi dito nem lembrado.

O ora-veja na arte só a divina obra tem. Deus é artista caprichoso, no atacado e no miúdo, como outro não há. Conseguiu escrever?
 
Pediram-me um ensaio falado sobre as cores remotas do outono. Mas eu só sei, só vejo isso que sinto.

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Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo de músico municipal desde 1943. Toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade. Tem 85 anos, é cego desde os 16.

Texto revisto, publicado anteriormente em 23 de março, 2011.


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