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quinta-feira, 26 de junho de 2014

Sótão, porão e assombração

Jorge Adelar Finatto

Vale do Olhar. photo: jfinatto
 

Leitores costumam perguntar se os textos que escrevo sobre Passo dos Ausentes têm um fundo de realidade ou são apenas páginas mal ajambradas de ficção.
 
Suspeitam que os Campos de Cima do Esquecimento são um território mítico, habitado por seres imaginários que brotam de uma mente que funciona aquecida à beira do fogão a lenha e que se deleita no estranhamento.

Passo dos Ausentes é um lugar abandonado ao sul do mundo, que nem sequer está no mapa do Rio Grande do Sul. Somos poucos. Somos invisíveis. Temos uma história que começa com a destruição dos Sete Povos das Missões.

Algumas famílias de índios guaranis e uns poucos jesuítas fundaram o povoado. As casas eram de pau a pique e barro, cobertas com capim-santa-fé. Vieram fugindo do massacre movido contra os missioneiros por espanhóis e portugueses, em 1756, durante a Guerra Guaranítica, de tristíssima memória.

Depois dos fundadores aqui chegaram pessoas de outras etnias (africanos, judeus, árabes, ciganos, etc.),  todas tendo em comum uma história de violência e perseguição.

Quem se importa com isso, raro leitor? Nem o governo tampouco, que se nega ao reconhecimento político da cidade (por sem-razões que maltratam a inteligência e a sensibilidade das pedras).

E assim vamos vivendo. Os jovens cedo vão embora em busca de um futuro. Os vetustos resistem. A solidão nos devora e nos une. Mas não perdemos tempo com lamentações, porque amamos a vida assim mesmo com suas trampas e lágrimas.

A cidade existe e, apesar de tudo, nela ninguém passa necessidade, pelo contrário. Os serviços básicos nos orgulham. A estação de trem está abandonada desde 1950. Mas nela está localizado o famoso Café da Ausência onde se toma o melhor café colonial da serra gaúcha.

A Sociedade Filosófica, Literária, Histórica, Geográfica, Artística, Antropológica, Astronômica, Geológica, Esportiva, Recreativa e Antropofágica é nosso órgão de governo e deliberação.

Não temos aviões, mas temos alguns balões e até dirigíveis. Lampiões de gás alumiam as ruas esquecidas. Somos poucos.

As nuvens são nossas testemunhas.

Ingmar Bergman esteve aqui em 1958 após filmar Morangos Silvestres. Fez amigos, como não? Ficou três meses. Dizem os mais velhos que chorou na hora de partir, do mesmo modo que Oscar Wilde, conforme aqui já relatado. Disse que ia voltar, mas isso não aconteceu.

A casa que o cineasta sueco ocupou, com a frente voltada para o Contraforte dos Capuchinhos, está como ele deixou. Com vários de seus pertences, inclusive a câmera que ele utilizava e três latas de filmes filmados nessas montanhas. Ninguém toca em nada. É patrimônio espiritual.
 
Quem dera tudo isso não passasse de um delírio de uma mente carcomida pela invenção! Uns transportes d'alma, como diz o nosso poeta Farandolino Brouillon. Mas não, ai de nós.
 
Ficção, estimado leitor, é o que se vive na duríssima realidade.  
 
Passo dos Ausentes, território de gentes e voláteis falantes, perdido nas álgidas alturas dos Campos de Cima do Esquecimento. Esta é a cidade. Somos invisíveis.

Os fantasmas andam sobre os telhados,  sentam nas soleiras das velhas casas. Caminham pelas ruas e praças com suas roupas antigas, suas mantas, seus olhares distantes, seu silêncio. Aqueles que gostam de ler e filosofar passam as tardes no Café da Ausência, conversando entre si sem dizer palavra e mirando o Vale do Olhar.
 
Este é o mundo onde vivo e escrevo, raro leitor. Recolho as histórias dos seres que povoam esse pequeno universo. Sou apenas o confidente de um mundo em extinção e seus habitantes.

Escritos disparatados em que almas do outro mundo conversam com os vivos, afirmam com galhofa os doutos e os de pouca fé. Pois é o que eu digo: todas essas criaturas pertencem ao mundinho que é, afinal, toda a Terra.
 
Sou apenas o interlocutor, o escrevedor, a antena torta que capta essas vibrações. Se não resgatar esse mundo da sombra e do oblívio, quem o fará?
 
O único personagem de ficção que povoa essas histórias é o autor dessas mal traçadas.

O inverno é feito de espessas neblinas, vultos, remorsos, folhas secas, memórias. E esperança. Sim, esperança. E uma pitada de canela no chá de maçã.

O que não está escrito não existe. É o que me dizem as estrelas no seu infinito, é o que eu sinto vivendo no farelo das horas. Como se alguém se importasse com essas migalhas. 
 

segunda-feira, 12 de maio de 2014

A hora do abraço

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

 
Como a vida é escassa, buscamos na arte a beleza e o sentido de que somos carentes.
 
A arte em geral, a literatura em particular, têm o dom de mostrar a vida em doses concentradas de movimento e emoção.
 
É mais vida o que se procura. Além de sobreviver, a pessoa quer viver. Com um pouco mais de  encanto, um pouco mais de alegria, um tanto menos de sofrimento e desespero.

A maioria das pessoas se ressente da falta de vida verdadeira. Hoje, quando a tecnologia nos remete a possibilidades nunca antes imaginadas de comunicação, existe no ar uma sensação de mal-estar, uma insatisfação com o mundo a nossa volta.

A realidade está de tal modo dolorosa que nem mesmo a obra de arte mais iluminada tem o condão de nos trazer consolo.

O ser humano está valendo muito pouco no mercado. Nenhum computador, nenhuma internet e nenhuma rede social substituem o respeito e a consideração.

Estamos numa espécie de encruzilhada, uma perigosa encruzilhada. Ninguém sabe o que vem por aí. Um vendaval de angústia varre nossos dias.

As palavras perdem oceanos de significado em bocas vazias, os gestos são feitos e calculados no interesse egoísta de um ou de poucos.

Há ansiedade e medo diante das coisas que estão acontecendo. Por exemplo, aqui no Brasil. Assistimos desde linchamentos aterrorizantes e inaceitáveis até aos elevados níveis de corrupção, passando pela insuportável violência de nossas cidades.

Vivemos o esvaziamento do sentimento de justiça. Nada é mais devastador para uma sociedade.

As pessoas que dirigem o país são incapazes de nos transmitir, com atos e exemplos, a esperança de que amanhã será melhor. A ausência de atitudes concretas em direção ao interesse público, visto como regra e não como exceção, semeia a desesperança e o desamparo.

O Brasil está numa encruzilhada, precisa decidir o que quer ser. Cada um de nós precisa fazer mais pelo conjunto da sociedade. Um coisa, porém, parece clara: nenhuma pessoa de bem aceita o labirinto e a escuridão que estão instalados.

A quem interessa tudo isso que estamos vendo? É este o país que queremos para nós e para aqueles que estão vindo? Estou certo que não.
 
Viver honestamente custa uma existência de sacrifícios, mas é a única forma que vale a pena. Nenhum atalho, nenhuma malandragem, nenhum "jeitinho" podem se comparar à consciência limpa, à convicção de estar dando o melhor de si para o bem comum.
 
Se me perguntam que obra de arte considero urgente, essencial e superior neste momento, não tenho dúvida em dizer: o abraço. Respeitar, afagar o nosso próximo.

Nós, que somos o próximo do próximo, temos o poder de, como as estrelas, produzir claridade e calor, expulsando a treva, o frio e o isolamento. É só querer e lutar.