quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

La que "Nunca tuvo novio"

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


La que Nunca tuvo novio. A melodia nostálgica, suave e doce deste tango de 1930 (Augustín Bardi e Enrique Cadícamo) me levou a encontrar a mulher que nunca teve namorado, que triste!

E a vi horas sem fim na janela, olhando a calle desierta, onde algum moço passava de vez em quando, e ela então sonhava. Mas o moço apenas passava diante de sua janela, todos os moços passavam e se iam para outras moças em outras calles.

Ela morava com a mãe, cuidava da casa e dos sobrinhos. Numa calle com casas coloridas e flores humildes nas janelas, num bairro distante.

Uma ruazinha perdida em Buenos Aires, um lugar escondido de Deus, um ermo esquecido ao sul do planeta. Igual a tantos no mundo. Lá ela morava.

Aos sábados, la que nunca tuvo novio se enfeitava com um vestido florido que ela mesma fizera e se ia pelas ruas do barrio com a sombrinha lilás doendo sob o sol. Olhava as vitrines, conversava na praça com as vizinhas, tomava refresco do vendedor ambulante. Saboreava algodão doce. Esperava.

Depois voltava sozinha pra casa por ruas estreitas. Assim passaram-se os anos. As amigas de infância se casaram, depois as filhas delas. A vida passou. E as vizinhas diziam: la que nunca tuvo novio. Pobrecita!

Essas coisas eu vi e senti enquanto ouvia o tango portenho. Caminhei pela calle triste da pobre moça que nunca teve namorado.

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Texto revisto, publicado em 24 de janeiro de 2015.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Enchendo o saco de Deus

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


AS BARBARIDADES que o ser humano faz todos os dias. Seremos nós um ato falho da criação? Fico pensando nessas coisas que me perseguem desde os tempos do Dilúvio.

Está escrito em Gênesis 6: 5-8: "Por conseguinte, Jeová viu que a maldade do homem era abundante na terra e que toda inclinação dos pensamentos do seu coração era só má, todo o tempo. E Jeová deplorou ter feito os homens na terra e sentiu-se magoado no coração."

"De modo que Jeová disse: "Vou obliterar da superfície do solo os homens que criei, desde o homem até o animal doméstico, até o animal movente e até  a criatura voadora dos céus, porque deveras deploro tê-los feito." Mas Noé achou favor aos olhos de Jeová."

O Dilúvio veio, choveu durante quarenta dias e quarenta noites, destruiu tudo, salvo Noé, sua família e os animais que levou junto na famosa arca. A vida recomeçou.

A solidão e a tristeza de Deus me comovem. Não se sentirá Ele muito sozinho, sem ter com quem conversar, em tempos de tanta maldade e incompreensão como agora? Terá o Criador alguém com quem desabafar nas horas difíceis?
 
Refiro-me àqueles dias em que Ele olha para a Terra e assiste ao deplorável espetáculo que continua sendo apresentado por homens e mulheres. Como se sente um Pai ao ver os filhos nos descaminhos da perversidade, do puro egoísmo, sem falar na solene indiferença ao sofrimento dos outros? Deve ser muito doloroso.

Espero que Deus perdoe a minha intromissão em seus assuntos de foro íntimo. Ainda mais partindo da milionésima parte de um grão de areia como eu.

O pensamento é o parque de diversões de filósofos, poetas e outros seres inúteis. Essa gente que passa os dias obstinada em encher o saco de Deus como se o Criador não tivesse mais o que fazer.

Eu aqui nessa puta solidão a querer falar da solidão do Todo Poderoso. Tem gente que não se enxerga.
 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

A propósito do Troféu Apolinário Porto Alegre 2020

 Niamara Pessoa Ribeiro

Graduada em Letras e Especialista em Teoria Literária. Porto Alegre.


Niamara Pessoa Ribeiro


Caro amigo Finatto.


Um brinde ao seu sucesso pelo Prêmio Troféu Apolinário Porto Alegre 2020, da Academia Rio-Grandense de Letras. 

A homenagem da Academia ao seu talento não surpreende, mas sim enaltece e envolve a todos os leitores na alegria de ver o que o seu coração e o seu intelecto já sabem, quando, com todas as entranhas, o senhor elabora as letras do alfabeto, que surgem novas em suas mãos.

Também não surpreende a distinção ao seu livro, pois observei que “Navegador”, incluso no título de sua premiada publicação, já prenunciava o destino de que estamos falando.

Comecei a comparar o que é dito de certos símbolos e suas prováveis dicas herméticas ... assim ... divagando ...

Cristo, “Pastor” (do rebanho humano).

Maçons, “Pedreiros” (buscando construir sociedades igualitárias).

São José, “Carpinteiro” (entalhando modelos de qualificação humana).

Apóstolos, “Pescadores” (de almas).

Deus ultérrimo, “Pai” (Modelo original ao qual retornaremos).

E... “Navegador”... Mestre Supremo, designação abrangente, ocultando função além-náutica...

E o senhor, Navegador do fazer literário, já no título da obra prognosticou a vitória do Barco de Papel.

Parabéns pela merecida homenagem. Parabéns, Navegador, Mestre Supremo na segurança com que conduz as palavras ao longo de ondulações, ventos, da imensidão do mar de ideias e sentimentos.

Navegador preciso, o senhor e seu Barco nos conduzem mais além.

E vamos navegar, pois o senhor, Doutor Finatto, autor/comandante, se mostra preciso, mesmo atravessando águas da vida nas quais precisão alguma acena para os que saem da imobilidade terrena para se alçar sobre a líquida mobilidade de águas perigosas e atraentes.

Esses são os navegadores que vão a distâncias e de lá nos trazem o fruto de suas observações.

Esses são os bravos navegadores que nos permitem ser maiores por meio de seus barcos repletos de poéticas criações.

Creio representar a voz coletiva de leitores ao dizer o quanto sou grata pelo fato de o senhor aportar suas naves em nossos ancoradouros.

Os grandes navegadores se lançam aos mares, e os mais corajosos o fazem pela filosofia poética, arrojando-se em barcos de papel. O senhor é um deles. Sabe dominar esses mares.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Prêmio Academia Rio-Grandense de Letras 2020

 Jorge Finatto


O livro Navegador de barco de papel conquistou nessa segunda-feira, 14 de dezembro, o Prêmio Academia Rio-Grandense de Letras 2020, na categoria crônica, recebendo o Troféu Apolinário Porto Alegre. 

Em cerimônia virtual, foram divulgados os vencedores do concurso que destacou, também, as categorias romance, narrativa curta, tese acadêmica ou dissertação, poesia e livro infantil.

Sensibilizado e muito feliz pelo reconhecimento, agradeci à notável instituição cultural que é a Academia Rio-Grandense de Letras, fundada em 1901. Trata-se de um grande estímulo para seguir neste difícil caminho da literatura.

Dediquei o prêmio aos poetas e escritores que, através do trabalho solitário e silencioso, contribuem para a humanização da nossa sociedade. 

A bela capa e as ilustrações do livro foram concebidas por Clara Finatto, minha talentosa filha.

Agradeço de coração a honrosa distinção.

domingo, 13 de dezembro de 2020

Em busca da rosa

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


Não suspiro
pelo tempo
que passou

não planejo
navegações
em solitário
através do oceano

não almejo a fuga
até a constelação
de Rio Erídano

tudo isso
eu fiz
e foi em vão

quero ficar
contigo
íntimo como
um segredo

como gotas
de chuva
sobre a rosa

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Os sintomas da alegria

 Jorge Finatto

photo: jfinatto



Acordou com uma insuportável vontade de viver. Foi no tempo da peste covid-19. Abriu a janela do quarto e recebeu no corpo o ar fresco do amanhecer. Respirou fundo. Olhou o Contraforte dos Capuchinhos ao longe. Suspirou, fechou os olhos. 

Descobriu que as velhas mágoas e dores já não doíam como antes. Passaram porque tudo tem que passar. Porque o perdão é talvez  o melhor dos remédios. 

A peste também haveria de passar.

Sentiu uma terrível vontade de agradecer. Estava vivo, respirava e olhava as montanhas junto à janela. A morte, esse injusto evento, nunca teria a palavra final. Era apenas uma mudança de capítulo. Uma passagem para algo desconhecido e, provavelmente, melhor. 

A vida é um milagre que germina do encontro de dois ermos. O tempo não é inimigo, antes um aliado. Uma estrada. Uma estrela em movimento na escuridão. Há beleza até nas marcas que o tempo esculpe na face. 

Existe um universo inteiro de perguntas. Mas as respostas essenciais não estão disponíveis.

Somos parte do mistério. 

Somos o mistério.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Açores

 Jorge Finatto

No meio da noite oceânica de Angra do Heroísmo, um passeio pela rua deserta. Onde se ouvem as histórias do mar e a conversa de velhos fantasmas de marinheiros em navios afundados.


Sé de Angra do Heroísmo. Açores.
photo: jfinatto


sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Navegações

 Jorge Finatto

photo: jfinatto



Não existem chegadas
e partidas definitivas
rijos itinerários nascidos
na rota turbulenta
dos abismos


o que há é esta
necessidade de navegar
que começa não sei
em que rio 
ou fundão
e depois se expande


um dia toda busca
cristaliza
e se pode, enfim,
recolher as velas
no porto do outro
mundo


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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990. 

sábado, 21 de novembro de 2020

Mais um negro

                                                                                                                                               Jorge Finatto

Dor, indignação, revolta, vergonha. São alguns sentimentos que nos invadem diante da terrível morte de João Alberto Freitas, 40 anos, pai de quatro filhos, por espancamento praticado, segundo amplamente divulgado, por seguranças no estacionamento do supermercado Carrefour em Porto Alegre. O fato, ocorrido na quinta-feira, 19/11, véspera do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, é revelador, mais uma vez, da intolerável violência existente na sociedade brasileira, que atinge visceralmente os segmentos mais vulneráveis da população.

O homem que foi morto era negro (mais uma vítima). O que justifica bater numa pessoa até a morte? Como pode semelhante agressão acontecer no ambiente de um supermercado? Por certo o processo judicial irá esclarecer os fatos e suas circunstâncias e aplicará a lei. Todavia, a aplicação da lei penal não tem o condão de devolver a vida à vítima. Tampouco consegue desfazer o incomensurável trauma causado aos familiares, amigos e à sociedade em geral.

O tema do racismo vem à tona em meio à perplexidade. Negar a existência de racismo, no Brasil e no Rio Grande do Sul, é negar a luz do Sol. Basta atentar para a posição em que a população negra está colocada, ainda sem igualdade de acesso aos bens da vida que outros grupos sociais possuem. 

O tratamento discriminatório é uma triste realidade. Os negros foram deixados à margem e à míngua durante os últimos quatrocentos anos. O racismo é, em si, uma forma perversa de marginalização e de negação da dignidade da pessoa humana. Um sistema de opressão econômica, social e política que estrutura a sociedade.

Joaquim Nabuco afirmou que a luta pela liberdade, no Brasil, não se esgotaria com o fim da escravidão (que ocorreu com a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888). Ela se prolongaria por muito tempo no combate aos efeitos do regime abominável. A realidade brasileira insiste, todos os dias, em dar razão ao notável abolicionista pernambucano.

Sendo de natureza estrutural, estando impregnado no funcionamento da sociedade, e se reproduzindo ao longo de séculos, é necessário lutar contra o racismo a cada dia. Por isso, têm razão os que sustentam que não basta não ser ou não se considerar racista, é preciso ser antirracista, praticando atitudes contra este monstruoso e detestável sistema de opressão. 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

A segunda onda à vista

 Jorge Finatto

A má notícia deste final de ano é que a pandemia, depois de arrefecer um pouco nos últimos três meses, parece que volta a intensificar-se. A julgar pelos números recentes, estão aumentando a transmissão e a ocupação de leitos e UTIs de hospitais em várias cidades e Estados do Brasil. O número de óbitos permanece elevado. 

Em suma, a primeira onda mal começava a diminuir e uma segunda vaga anuncia-se pela fresta sombria das estatísticas. O sistema de saúde ainda não se recuperou e torna a sofrer grande pressão.

O agravamento demonstra que os cuidados diminuíram. Muita gente quer ter vida social como antes e faz aglomeração. Esquecem-se de que só houve melhora quando se adotaram cuidados básicos como uso de máscara e distanciamento. Um coisa é sair para trabalhar e estudar. Outra é querer viver sem os limites necessários enquanto não se vence o vírus. 

Não há mais paciência com esta doença. Ela desmontou a vida de milhões de pessoas em todos os cantos. Há quase nove meses trancado, com pouquíssimas saídas à rua (só em caso de necessidade), sinto-me, como todos, mareado, exausto.

A falta de um plano do governo federal para enfrentar a grave crise de saúde pública, a ausência de lucidez e sensibilidade para lidar com a situação, colaboraram muito para o tamanho da tragédia que se abateu sobre o Brasil: 166.743 mortos até agora.* 

Ao invés da construção conjunta de ações para mitigar a pandemia, com os entes da federação e a sociedade, preferiu-se negar-lhe o poder de destruição, optando-se por politizar a doença. Comportamento absolutamente incompreensível à luz da razão. 

Enquanto isso, só nos resta redobrar os cuidados e esperar pela vacina. E rezar pedindo proteção a Deus, rogando-lhe por generosas doses de resiliência pra suportar tudo isso.

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*Estadão:

https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,taxa-de-transmissao-da-covid-no-brasil-volta-a-passar-de-1-diz-imperial-college,70003518266

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Por quem choras, Maria Filipa?

 Jorge Finatto 

photo: jfinatto. Amsterdam
 

Por quem choras, Maria Filipa?

Quem mastigou teu coração e depois cuspiu no fundo das águas?

Estás sentada à beira do canal, na tarde de outono, em Amsterdam.

Me olhas com os olhos mais tristes do mundo. Passageiro efêmero no barco, numa cidade distante e povoada de ausência, eu nada fiz naquela hora.

Eu estava de passagem entre um cais e outro, um canal e outro, um deserto e outro.
 
Devia ter me jogado nas águas turvas da tarde de domingo. Nada era mais importante do que ir ao teu encontro.

Devia ter ficado o resto do dia contigo, em silêncio, ali naquele banco, sem nada esperar. Exceto talvez dizer e receber um pouco de consolo.

A cara de anjo, o capuz azul da solidão, os olhos mais tristes do mundo, me olhaste.
 
Da minha solidão eu te acenei.
 
Foi tudo que fiz, um gesto na garoa fina. Por um instante tuas lágrimas diminuíram e pude perceber que teus olhos me seguiram. Depois tua cabeça caiu sobre o colo outra vez, onde as mãos pálidas repousavam.

O barco sumiu sob as pontes atravessadas pelos ventos de novembro. Eu dentro dele.
 
Entre dois cais, entre dois nadas.
 
photo: j.finatto
 
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Texto revisto, publicado antes em 16 outubro, 2012.

domingo, 8 de novembro de 2020

Pela construção de pontes, não de muros

 Jorge Finatto

Joe Biden. photo: Reuters

O povo dos Estados Unidos acaba de dar um presente ao mundo: a eleição de Joe Biden.
Isto significa, entre outras possibilidades, fortalecimento da democracia, antirracismo, multilateralismo, respeito às diferenças, tolerância, preservação do meio ambiente, busca de negociação entre opostos, preocupação com as pessoas.
E uma certeza: aos quase 78 anos não se tem muito tempo nem direito de insistir em velhos erros, preconceitos, vaidades, arrogâncias e truculências.
É hora de celebrar a esperança. Chega de tanta escuridão lá como aqui (o exemplo americano há de chegar ao Brasil em 2022).
Pela construção de pontes, não de muros.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Drummond 118

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


O jovem leitor afeiçoou-se ao poeta. Compartilhou com ele, mais do que palavras, a viva vida que elas expressam. E como diziam coisas as palavras do bardo itabirano!

Havia entre poeta e leitor uma secreta cumplicidade. Um andar juntos pelo mundo. Uma troca de confidências, alegrias, queixas, protestos, malquereres, desertos, amores e esperanças. O invisível amigo percorria com o moço os duros caminhos da vida

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) será sempre o lúcido, o lírico, justo enlace razão-emoção, construtor de versos indeléveis na língua universal da poesia. Enquanto houver livros e leitores, Drummond será sinônimo de altíssima poesia e claro pensamento.

O ser-no-mundo, às vezes cambaio, às vezes indescritivelmente só, mas sempre comprometido com a vida em sua humana jornada.

O poeta não se esquivava e respondia as cartas que lhe chegavam todos os dias. Generoso, sabia colocar-se, não acima, mas ao lado do leitor que o procurava ávido por um contato, mínimo que fosse. Respondia com incomum e delicada atenção.

Quando escreveu, na resposta, o nome do missivista interiorano, manuscrito com tinta azul na folha branca (que o tempo esmaeceu), retirou-o do anonimato, reconheceu-lhe a existência, tratou-o como um semelhante. 

Sensível ao outro, ele sabia que o poema só existe quando desvelado aos olhos do cúmplice leitor. A carta que dele recebi é, para mim, verdadeira relíquia literária e sentimental guardada no cofre do coração. 

Drummond fez um imenso bem à minha alma, aos meus dias de juventude e aos dias que vieram depois. Neste 31 de outubro, em que se comemoram seus 118 anos de vida (vida estendida no numeroso testamento da palavra), renovo a emoção de abraçá-lo com amor de leitor. Afeto que o tempo não apaga.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

O processo

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


SOU habitante
da beira do rio
condenado
a não ver o rio

afundado em seco
decifro papéis
que nada me dizem

a página em branco
espera o verso
que não escreverei

o que encontro
no gabinete
a essa hora
da manhã
é não ter tempo
pra mais nada

enfrento a trama
invencível
a dor sem abrigo

a grande trituração
das almas
no processo

resta apenas
o duro ofício
que não pode
ser adiado

impossível fugir

o carteiro
envelhece
enquanto aguarda
as cartas
que não enviarei

observo por um momento
o voo branco
da gaivota
sobre o Guaíba

nesse instante
invade-me a tristeza
do prisioneiro
(a essa hora da manhã)

desapareço
na névoa

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Poema do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.

sábado, 24 de outubro de 2020

O jardineiro amoroso

 Jorge Finatto

photos: jfinatto

                    Omnia humana brevia et caduca sunt.*

Cultivarás o teu jardim.

Não cobiçarás o jardim do próximo.

Aprenderás que o jardim perfeito não existe, só na tua imaginação.

As flores que habitam teu jardim não te pertencem. 

Elas nasceram para embelezar o mundo.

Não deixes que o orgulho de jardineiro te faça esquecer que o tempo das flores, como o teu, se esfuma entre os dedos. 

O jardineiro amoroso cultiva beleza e perfume à margem da eternidade. 

Aceita o outono e suas folhas secas, sem desespero nem remorso. 

Sabe que tudo é transformação.

E a morte é só passagem para outros jardins.

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*As coisas humanas têm vida curta e são transitórias.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Pensar com o coração

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


Não fiques justo demais, nem te mostres excessivamente sábio. Por que devias causar a ti mesmo a desolação? Eclesiastes 7:16

Começar a pensar  é começar a ser atormentado.¹ Albert Camus


Pensar causa dor. Os caminhos do pensamento levam à desolação. Mas, sem ele, onde a alegria, a descoberta do mundo, a esperança, o êxtase? Talvez a fuga do desalento esteja em pensar com sentimento. Em outras palavras, pensar com o coração, sentir com o pensamento, como disse Fernando Pessoa. Ouçamos o poeta:

"Sentir é compreender. Pensar é errar. Compreender o que outra pessoa pensa é discordar dela. Compreender o que outra pessoa sente é ser ela. Ser outra pessoa é de uma grande utilidade metafísica. Deus é toda a gente." ²

A razão solitária, isolada do sentir, é um lugar profundamente ermo. Uma paisagem vazia e inóspita. Um cálculo matemático, se feito com razão e sensibilidade, é muito mais belo. Olhemos as cores, formas e movimentos dos corpos celestes. Onde entra o sentimento nisso? Entra na motivação do olhar, naquilo que nos move a tentar compreender, nas razões e emoções que nos levam a pôr nossa força vital nessa direção.

A natureza está construída, em toda sua extensão e profundidade, sobre alicerces de ciência e beleza. Em toda coisa existente há um pensamento e um desejo que a precedem, a volúpia da criação. Quanto mais observo e reflito sobre a obra do mundo e da vida, mais admiro a mão de quem a concebeu. Deus é um artista perfeito e apaixonado pelo que faz e fez. E tem todos os motivos para isso. 

______ 

¹ O Mito de Sísifo. Albert Camus. Editora Record, 16ª ed. Tradução: Ari Roitman e Paulina Watch. pág. 19. Rio de Janeiro. 2019.

² http://arquivopessoa.net/textos/1709

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Brinquedo de criança pobre

 Jorge Finatto

do meu jardim. photo: jfinatto

Uma das alegrias da minha infância eram os brinquedos caseiros. Brinquedos rústicos de criança pobre, feitos com materiais descartados. Não obstante humildes, nos levavam a viajar pelo cosmos, expandindo nosso universo.

O porão da velha casa de madeira, lá na Serra, não abrigava somente quinquilharias. Era uma oficina de brinquedos. O artesão desse mundo mágico, que transformava latas de azeite em belos carrinhos e caminhões, era o primo Nego (Rogério). Eu era auxiliar de feiticeiro.

De suas mãos saíam também carrinhos de lomba com rodas de rolimã (rolamentos de aço), cavalinhos, balanços pra pendurar no plátano à beira do Arroio Tega, arcos e flechas, pernas de pau, trenzinhos, espadas, escudos, revólveres, espingardas, bonecos, aviões. Tudo trabalhado com serrote, martelo, lima, formão, goiva, torno, lixa e pedaços de madeira que buscávamos na madeireira perto de casa.

Os brinquedos dos outros meninos e meninas da rua também eram caseiros, mas não se comparavam aos nossos (na nossa imodesta opinião). 

Devia haver uma espécie de museu para esses brinquedos de antigamente. Cheios de imaginação e criatividade, povoavam de fantasia nossas brincadeiras e nos levavam além do mundo em preto e branco.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Beija-flor no galho pensador

 Jorge Finatto

photo: Clara Finatto. Canela/RS

Na tarde de neblina e frio desta instável primavera, o beija-flor cisma.

Pensando na vidinha, no galho pensador, ele faz uma pausa. Que ninguém é de ferro. 

Fica um tempo, dá uma saída e depois volta. Não se incomoda que o observem da janela. Tampouco que abelhudos lhe façam fotos. Há um pote com líquido de néctar no galho ao lado que muito o agrada. E não só a ele: tem irmãos ou amigos que vêm ali toda hora todos os dias. 

No que estará pensando? 

Há de ter lá os seus compromissos o beija-flor, uma casa pra voltar, filhos pra criar, contas a pagar, preocupações de quem vive neste mundo de Deus.

Mas, nesse momento, ele precisa ficar sozinho e em silêncio. Precisa disso pra saber quem ele é. 

Porque, às vezes, na dura faina da sobrevivência, a gente esquece quem é.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

"E se todos nós vivêssemos?"

 Jorge Finatto

duas rosas. photo: jfinatto

                                                

Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos? 
Carlos Drummond de Andrade, no poema O medo


A palavra morte é a palavra da moda. Nunca se pronunciou tanto como neste 2020. A boca fala o que o coração sente, parafraseando Mateus 12:34. Se for assim, atravessamos um momento em que o medo é um sol escuro no céu da nossa angústia. 

Não se trata apenas de uma palavra e seu sombrio significado, mas da vida que perdemos nos últimos 8 meses. A pandemia da covid-19 retraiu passos, limitou movimentos, mudou itinerários, mostrou que ninguém tem controle sobre nada. 

Temos ideias, projetos, sonhos, concentramos esforços em determinada direção. Mas o resultado final é imponderável.

O dia de amanhã é inescrutável como a face de Deus. 

O dia de hoje, por outro lado, tem um peso às vezes insuportável. Pelas perdas de muitas vidas todos os dias, pelo risco de que a peste nos alcance e nos leve para onde não queremos ir. Uma danação.

Não sei como isto vai acabar. Sei que mudanças estão ocorrendo rapidamente e coisas que antes pareciam improváveis tornam-se realidade. 

Para nós, do Brasil, que vivemos um dia a dia de enorme desestruturação social, violência, injustiça, indiferença dos governantes e da própria sociedade, a peste é só uma página a mais no triste livro da nossa história. Temos à volta todo o resto a nos sufocar. 

Olhemos as queimadas na Amazônia e no Pantanal e suas gravíssimas consequências sócio-econômico-ambientais. A desordem do clima, a destruição da fauna e da flora, os problemas na produção de alimentos, a tremenda poluição. 

Sem esquecer a depressão psicológica diante da falta de perspectivas em relação ao futuro.

Estou/estamos exaustos diante de tanto sofrimento. Ainda que não nos atinja diretamente (conservar-se com saúde é o que mais importa), o ambiente está carregado demais, difícil demais, dolorido demais. 

Precisamos celebrar a alegria de viver outra vez. Não imagino como a travessia se dará. Mas acho que virá aos poucos, como uma manhã de sol após a noite de tempestade. Será uma alegria diferente, que passará longe da celebração privada, fechada em si mesma, egoísta, excludente. Uma alegria simples, dividida entre todos. Como respirar.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Conversa com meu anjo da guarda

 Jorge Finatto

photo: jfinatto

O anjo de Jeová acampa-se ao redor dos que O temem. E ele os socorre. (Salmos, 34:7)


DIZIAM OS ANTIGOS que cada pessoa tem o seu anjo da guarda. Anjo bondoso e santo que vela o sono, releva os erros, protege dos perigos, aconselha, sabe perdoar. Anjo zeloso e guardador que anima o coração e ajuda a viver.

Não sei se os anjos ainda estão por aqui, tal o estado em que os homens deixaram o mundo. Se pudesse fazer um pedido, pedia ao meu anjo que inventasse depressa a máquina de desmorrer.

Sim, para acabar de vez com o problema do desnascimento. Porque desnascer, ou deixar de caminhar sob o sol, é coisa a mais triste, sem nenhum sentido, um desperdício enorme de tempo, trabalho, sonhos e esperanças.

Uma vez expulso o desnascer de nossas vidas, quanta coisa bonita vamos fazer e conhecer! Teremos os dias necessários para consertar o que ficou torto, o que não deu certo.

Vou aproveitar para construir muitos barcos de papel e soltar no Arroio Tega, nas manhãs da eternidade. Passearei com meu guarda-chuva nas ruas molhadas e vazias de Passo dos Ausentes. Subirei no telhado nas noites de junho pra ver estrelas cadentes, olharei a Lua da janela do meu quarto e pescarei estrelas com o chapéu.

Descobrirei o nome de todas as flores e árvores. Pedirei, também, ao meu anjo protetor, que traga de volta, sem mais tardança, os seres amados que já partiram. Sim, estou cansado de viver longe deles.

Quero todos por perto nessas noites de inverno, tão povoadas de ausência e memória. 

 É preciso inventar urgentemente a máquina de desmorrer.
 
_______ 
Crônica do livro Navegador de Barco de Papel. Livraria Pocket Store, Rua Félix da Cunha, bairro Moinhos de Vento, Porto Alegre.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Paiuia

 Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

                        Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.
                                                   Saint-Exupéry, O pequeno príncipe

Quando eu era criança, tinha medo-pânico de cortar o cabelo. O drama se estendeu até os cinco anos mais ou menos. Era um medo primitivo, do tempo das cavernas, pavor diante do raio e do trovão. O avô me levava ao barbeiro, na ruazinha central de Passo dos Ausentes, aquilo era um suplício.
 
Havia na aldeia um homem que vivia na rua. Vestia sempre um casacão de lã, fosse inverno ou verão, tinha longos cabelos cor de cobre, uma cara amarrotada, chupada, fustigada pelo sol e pelo vento. Sobrevivia ele com os trocados que ganhava pelas momices e mugangas que fazia aos passantes na calçada, onde instalava seu escritório de saltimbanco.
 
O nome dele era Paiuia.
 
Para amenizar minha sessão de tortura, o avô contratava Paiuia a fim de distrair-me junto à cadeira do barbeiro. O fato é que ele conseguia me acalmar menos pelos trejeitos que fazia do que pela sua feiura. Eu ficava impressionado: como é que alguém tão feio era ao mesmo tempo tão engraçado?
 
Eu já não chorava nem sofria como antes, deixava o barbeiro fazer seu trabalho. Com sua arte humilde, Paiuia me consolava no sofrimento. 

Acaso não será esta a sublime missão do artista?
 
No dias difíceis, recordo com ternura de Paiuia, que não está mais neste mundo pra me dar consolo com suas visagens. Hoje percebo que a beleza que ele tinha era invisível ao olhar. Ele a carregava pura dentro da alma e com todos compartilhava generosamente.

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Texto revisto, publicado em 22.4.2016

domingo, 13 de setembro de 2020

O milagre dos pavões

Jorge Finatto
 
photos: jfinatto
 

Na quinta passada, dois pavões apareceram no quintal aqui de casa. Não me perguntem como. Um acontecimento absolutamente raro e inesquecível.
 
Eles andaram no pátio calmamente, pra lá, pra cá, na santa paz. Atrás da janela, eu observava aquele movimento elegante e silencioso. Num breve voo, subiram na pérgola e ficaram mais um tempo. Num bater de asas, deram uma passada na sacada do vizinho. Depois alçaram-se no espaço e partiram, deixando saudades.
 
Nunca tinha visto pavões livres na natureza. E menos ainda na minha humilde querência. Aquelas cores brilhando. Não chegaram a abrir o leque da cauda. Seria incrível. Mas pensando bem, nem precisava. O milagre já estava consumado com a presença deles ali, iluminando a tarde gris de setembro. Aí eu pensei: foi um presente de Deus para este velho bardo que às vezes sonha voar. 
 
 

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Saudade nos tempos da peste

Jorge Finatto

photo: jfinatto


A esquina tem saudade dos amigos.
O voo tem saudade do pássaro.
O poço tem saudade da Lua.
A abelha tem saudade da flor.
O avião tem saudade do céu.
O homem tem saudade de Deus.
Eu tenho saudade de nós.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Maquinista de fogão a lenha

Jorge Finatto

photo: jfinatto


O inverno é um velho rabugento, de barba branca, capote preto, com olheiras e óculos de lentes de fundo de garrafa, afeito ao silêncio e a remotas recordações.

Inícios de setembro, ele prepara a carroça com seus pertences pra fazer a longa viagem ao outro lado do mundo. Viagem na névoa em direção ao hemisfério norte onde vai suceder o outono. As despedidas do inverno ouvem-se na voz do vento anunciando a primavera. 

Todavia, como maquinista de fogão a lenha, não posso descuidar. São os últimos frios, as últimas cerrações e geadas. Se o maquinista vacila, as coisas congelam na casa. 

Adeus, folhas secas, galhos retorcidos, grinfas de pinheiro, fantasmas no sótão. Adeus, nuvens de chumbo. O tempo das folhas verdes novas pede passagem. Tempo de cores e perfumes. O que melhor do que o aroma da flor de laranjeira impregnando o ar? 

Anúncio da primavera.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

A palavra no agora

Jorge Finatto

Estação da Luz. fonte: site do Museu da Língua Postuguesa


Com o objetivo de ajudar as pessoas a lidar com os sentimentos advindos da pandemia, o Museu da Língua Portuguesa lançou no mês de julho o projeto virtual A palavra no agora. A ideia é estimular as pessoas a expressar este momento difícil através de exercícios de escrita. O projeto acolhe textos que traduzem sentimentos e pensamentos em face da grave crise que enfrentamos, mostrando como cada um está vivendo a situação. Está disponível no endereço http://www.noagora.museudalinguaportuguesa.org.br/. 

Para compartilhar o texto no site do Museu, o interessado deve encaminhá-lo para noagora@museulp.org.br, informando nome, idade, cidade, bem como se deseja publicar com seu nome ou pseudônimo, iniciais ou anonimamente. 

Andei lendo algumas das contribuições. É surpreendente a diversidade do material, seu conteúdo, sua qualidade. A riqueza de percepções deste tempo sombrio se manifesta em linhas de espanto, tristeza, ansiedade, imaginação, saudades e, acima de tudo, em um olhar generoso sobre a vida e o futuro.

O Museu da Língua Portuguesa é um órgão da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo e foi criado em 2006 com a finalidade de valorizar a diversidade da língua portuguesa, celebrá-la como elemento fundamental e fundador da cultura e aproximá-la dos falantes do idioma em todo o mundoAs atividades que desenvolve nessa direção são preciosas e muito variadas.

O local escolhido para abrigá-lo foi a Estação da Luz, edifício histórico no coração de São Paulo (cidade com a maior população de falantes de português do mundo). Um incêndio ocorrido em 21 de dezembro de 2015 fez com que se suspendessem as visitações enquanto o prédio está sendo reconstruído.

Entre os escritores que já foram homenageados, em mais de 30 exposições, estão Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Cora Coralina, Jorge Amado, Agustina Bessa-Luís, Rubem Braga e Guimarães Rosa.

Parabéns a toda equipe do Museu da Língua Portuguesa pela bela iniciativa.

Exposição temporária Grande Sertão: Veredas