O inconsciente é como o fundo de certos rios.
Sob a tênue linha que o protege do mundo, existe um espaço habitado, povoado de seres, histórias, descobertas, sentimentos. Há lugares ocos também, medos do escuro, sonhos que não viram a luz do sol.
Somos filhos da claridade atravessando a sombra.
Não existe outra saída além de abrir as janelas para a aurora entrar, tirar a casa da escuridão. Raízes profundas nos ligam ao intangível.
Aqui um riacho com água corrente, seixos, vozes; ali o pássaro, uma borboleta; adiante um pinheiro, um plátano, depois uma ponte de pedra. Depois, a névoa.
Magnólias e buganvílias habitam o jardim.
O passado imóvel, o tempo amarelecido nos retratos.
A lágrima quente verte no escuro.
Como o fundo de certos rios, carregamos tesouros secretos, peixes vivos. Andorinhas cruzam a altura dos penhascos submersos.
A luminosidade oblíqua clareia o recanto onde o menino sonha.
Não há escuridão indevassável. O medo da travessia é só um breve instante.
A palavra salva o que ficou calado no porão.
Nunca se esquece o vento esculpindo a dura face do basalto. Nunca se olvida a partida da cidade pequena.
No alforje do coração, todos os que ficaram caídos no alçapão do oblívio.
Entre ruínas procuramos o menino que respira sob destroços.
Esse que a tortuosa estrada jogou na cidade grande. Esse que perambulou por ruas mortas, entre desvalidos, que habitou quartos fétidos e sinistros, em longas noites de espera.
É preciso acolher o menino que se levantou da noite fascista, esse que pensávamos afundado no esquecimento.
Um círculo de luz ilumina a sombra da sala.
O presente é infinito, gosto de nuvem na boca, porcelana côncava azul acima da cidade e seu cais.
É tarde de outono. O mergulhador sai do fundo do rio. O lampião ainda quente nas mãos.
O caderno escrito com o toco do lápis.
Vida, teu sopro é agora.
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