I
que escrever
poemas
é ofício
de pouco valimento
mas pouco se revelou
sobre a memória
da sombra
as paredes úmidas
da velha casa de madeira
o soturno corredor
onde se morria
um pouco todos os dias
sem notícia
sem amanhã
II
alguém precisava
recordar
os soturnos habitantes
da rua humilde
na cidade serrana
lembrar o cheiro
de suas vestes
as pedras soltas
na porta das casas
os casacos pretos
nas manhãs de geada
III
nada ou muito pouco
se disse
dos segredos do implúvio
eu me pergunto por que
esse vazio em torno
estaria no silêncio
acre das caves
o destino de partir?
trabalho lento
nas escarpas
do coração
IV
não fossem
os trilhos
do trem
o barulho santo
do trem
atravessando
a madrugada
criando ao menos
em tese
a possibilidade
da fuga
muitos teriam
desistido de tudo
ali mesmo
como fez Chico
o Esquecido
V
o coração não é
assim mero
cresce em segredo
na dura colheita
não se esvazia
o coração
como se esgotam
as cisternas
VI
alguém precisava contar
a náusea persistente
a longa e tortuosa estrada
que desce na Capital
melhor não inventar
histórias
de castelos e linhagens
que nunca existiram
e se houve
federam
como podem feder
as escadarias
dessas obscuras passagens
perdidas no planeta
que recolhem
seres rastejantes
VII
o que se registra
no tombo do tempo
é que há um menino
imóvel
à beira da jovem defunta
naquele lugar
a despedida
com alguma flor
sussurros abafados
ele pergunta
onde ela foi habitar
o que vê
é a morte
e seu absurdo trabalho
convertendo em pó
a luz dos olhos
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Do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.