quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Helena Jobim

Jorge Adelar Finatto
 
Helena Jobim

A vida das coisas pende por um fio, se te calas.
 
                                                     Helena Jobim, no poema Princípio

A morte é um negócio que não precisava nem devia existir. Pra quê? Só pra gente chorar e sofrer a perda das pessoas queridas. E passar o resto dos dias lembrando delas e sofrendo sua espessa ausência.
 
Eu carrego meus mortos num lugar secreto e luminoso dentro da alma. Ali eles estão vivos, caminham entre os campos floridos, brincam nos córregos e pontes, convivem e riem muito das bobagens da vida aqui embaixo. Agora veio juntar-se ao grupo Helena Isaura Brasileiro de Almeida Jobim, ou a Nena, como o irmão famoso a chamava. Certamente vai encantar muito a vida de todos nos Campos de Cima do Esquecimento. E reencontrará o mano Tom Jobim, que tanta falta lhe fazia.
 
Convivi por mais de 10 anos com ela e com o marido Manoel, de quem me tornei amigo também. Adorava quando eles vinham para o sul e ficavam uns dias aqui em casa. Helena tinha histórias incríveis e uma memória prodigiosa, capaz de recuperar coisas dos primeiros anos de vida. A memória dos Jobim, ela dizia.

Às vezes, à noite, ao redor da mesa e de uma garrafa de vinho, passávamos horas conversando. É claro que eu queria era escutar. Ela esteve presente em todos os momentos da vida do irmão, escutou os primeiros acordes de muitas de suas canções, como Águas de Março, no sítio da família, em Poço Fundo, região serrana do Rio de Janeiro. Viajamos, passeamos, rimos, trocamos afetos, histórias, presença.
 
Um certo dia uma doença terrível caiu sobre mim. Emocionalmente comecei a despedir-me do mundo e das pessoas. No meio da explosão, Helena ficou sabendo. Daquele dia em diante, ela e Manoel me telefonavam quase diariamente de Belo Horizonte onde viviam. Não me deixaram mais quieto e sofrido no recanto sombrio.
 
Eles me deram tanto apoio, tanto conforto, me transmitiram tamanha esperança, força e fé que eu parei de me despedir da vida. Um belo dia eu reapareci vivo na saída do longo túnel escuro.  Eles me esperavam com flores e um caloroso abraço. Muito da travessia se deveu aos dois.
 
A Helena morreu no dia 13 de setembro passado. Eu não consegui e ainda custo a encarar o fato.
 
A escritora Helena Jobim não tem o reconhecimento que merece. Escrevia com grande talento, poesia, imaginação. Além de romancista, era poeta de mão cheia (como o pai, Jorge, poeta parnasiano, amigo de Alberto de Oliveira, que lhe dedicou um poema).

Uma mulher sensível, elegante, discreta, culta, humilde, extremamente bonita. Não há rigorosamente excesso nos adjetivos. Alguém me disse que ela foi a verdadeira inspiradora da canção Garota de Ipanema. Não duvido. Nunca vi olhos como os dela, nos quais balançavam as águas azuis e claras do mar de Ipanema, do tempo em que ela e Tom eram adolescentes.
 
Pouca gente sabe das ligações dela e do irmão com o Rio Grande do Sul. O pai deles, Jorge de Oliveira Jobim, era gaúcho de São Gabriel.*
 
 "Jorge, no fim do ano vamos passar o Natal ou o Ano Novo juntos, se Deus quiser. E ele vai querer", ela me disse mais de uma vez. 

Passamos juntos festas de fim de ano e dias de inverno na serra. Deus quis que assim fosse. E foram dias de intensa claridade. Ela tinha razão, as pessoas amadas nunca desaparecem. Estão sempre no nosso coração.
 
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Republico, em memória da amiga, esta crônica.


O livro na praça
                                            Helena Jobim

Vim para Porto Alegre a convite, participar da Feira do Livro. E aqui estou, nessa terra generosa, terra de meu pai Jorge Jobim. Tornei-me filha de três cidades, e assim posso dizer que sou carioca, belo-horizontina (recebi o título com muita honra) e porto-alegrense. A Feira é uma beleza. Ocupa toda a Praça da Alfândega, onde grandes barracas brancas oferecem livros de todo o tipo. Algumas têm o teto transparente, e é muito bonito ver os jacarandás floridos enfeitarem os tetos com suas pétalas roxas.

Assim que cheguei à Feira, deparei-me com uma grande estátua do General Osório, montado a cavalo. No pedestal de pedra, uma inscrição gravada. Chamou-me muito a atenção. Tomei nota: "O dia mais feliz da minha vida seria aquele em que me dessem a notícia de que os povos civilizados comemorariam a sua confraternização queimando seus arsenais". Vem a calhar para a hora difícil que vivemos.

A Feira é uma grande festa invadindo a praça, com suas árvores antigas, gigantescas, de troncos retorcidos pelo tempo, verdadeiras esculturas. Essa paisagem, de largas sombras e bancos para descanso, sugere a leitura. O ambiente combina com reflexão e cultura. Sabiás e pardais cantam ocultos nas copas de folhagens espessas, como um pano de fundo construído de sons que nos remetem a dias felizes.

Esta é a 47ª Feira do Livro de Porto Alegre. Chegou o sol e o calor e havia tanta gente pelos largos corredores entre as barracas, que tínhamos de andar devagar, parando a cada instante para examinar os livros. Vontade de comprar tudo. Os homenageados desse evento estavam bem representados em bronze, lado a lado. Carlos Drummond de Andrade, de pé, segurando um livro como se o lesse. E bem junto dele, sentado, Mario Quintana olhava-o, absorto. Tirei retratos junto às estátuas desses dois grandes poetas, pensando em colocar depois as fotos enfeitando meu escritório.

E como foi proveitoso estar com artistas mexicanos! Escritores, roteiristas, editores. Chegavam em comitivas alegres e coloridas, representando o seu país, também homenageado este ano na Feira. Sons e imagens que nos aproximam definitivamente.

Depois de muito andar, palestrar (junto com meu amigo e poeta Jorge Finatto) e autografar "Recados da Lua", atravessei a rua e sentei-me no pequeno Café Antigo, dos anos 30, perfeitamente conservado. E nesse ambiente calmo, de frente para a praça, me dei conta de como é importante para mim o ofício de escrever.

Lá estava eu, testemunha deste importante evento, de lápis e papel na mão, registrando minhas impressões. Dentro de mim vibrava a grande festa do artista, irmanada com as pessoas mais simples que observava folheando livros de todos os tipos, de todas as cores. Poucas vezes na vida um escritor pode saborear tão de perto a avidez do leitor pelo livro, a ponto de me fazer esperançosa em prosseguir na luta com o papel em branco, na busca da sensibilidade, na entrega total aos meus leitores. E me lembro de novo de Cecília Meireles: "Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta".

Quero hoje agradecer especialmente aos e-mails de Clara e Fred. Suas palavras ajudaram-me também a acreditar na palavra escrita, como forma de melhorar o mundo.

Para se pensar:

A vida era por um momento.
Não era dada. Era emprestada.
Tudo é testamento.

Antonio Carlos Jobim


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Helena Jobim era escritora, autora, entre outros, de Antonio Carlos Jobim, Um Homem Iluminado (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1996), Trilogia do Assombro (Editora Nova Fronteira, 1998) e Pressinto os Anjos que Me Perseguem (Editora Record, Rio de Janeiro, 2000).

Esta crônica foi escrita por Helena durante sua passagem por Porto Alegre, na Feira do Livro de 2001. Agradeço à querida amiga a autorização para publicação do texto.

Fotos: 1) Helena Jobim. Fonte: livro Antonio Carlos Jobim, Um Homem Iluminado. 2) Helena e o irmão Tom Jobim em 1945. Fonte: site oficial do Instituto Antonio Carlos Jobim: http://www.jobim.org/
Texto publicado no blog em 11 de abril, 2011.

*Maestro Antonio Brasileiro, entre o Guaíba e Ipanema:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/04/maestro-antonio-brasileiro-entre-o.html