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sábado, 10 de maio de 2014

Um fantasma quer conversar

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto


Olha só pra mim. Quem me dera. Eu vivo no sumiço. Vento de maio me leva por diante.

Alberta de Montecalvino, a dama deste não-lugar, foi quem me deu a idéia de visitar essa efêmera página virtual.

Sou um dos fantasmas de Passo dos Ausentes, a cidade perdida nos Campos de Cima do Esquecimento, na serra do Rio Grande do Sul. Me chamo Heitor dos Crepúsculos.

Escrevo essas linhas sem muita fé de ser lido. Meu amigo Juan Niebla diz que escrever num blog é escrever na água.

Eu não ligo, sou só de passagem, não tem importância, nada tem muita importância. Não tenho idéia de permanência, compreende?
 
- Escreve alguma coisa, Heitorzinho. Te mostra um pouco, meu querido. Entre os mortos-vivos dessa cidade, és um dos mais sentimentais e engraçados - disse Juan, tocador de bandoneón da estação de trem abandonada.

Não pretendo me dar ares de escritor. Sou, talvez, um escrevedor póstumo, alguém que publica suas histórias no vento. Não escrevo, claro, pra publicar em livro.
 
Olha só pra mim. Não tenho mais a literária vaidade.

Passou o tempo e me levou.

Eu era poeta. Sempre vivi dentro do nevoeiro. Conversava, e às vezes me desesperava, com a folha em branco. As danações do criador.

Depois atravessei a ponte, depois vim para o invisível. Saí do mundo aos 27 anos por vontade própria. A vida era insuportável, não via saída, a esperança não entrava na minha alma. Eu poeta trevoso.

Quem me vê, hoje, pode dizer sem engano: ali vai o arrependido.

Apareço e desapareço, tenho as superiores autorizações. Um fantasma é um ser virtual. Ora está, ora não está. Às vezes choro de saudades da vida com a cabeça entre as mãos pelos telhados. O menino que eu era quando saltei!

Não moro no pequeno cemitério, porque nunca encontraram meu corpo. Me joguei do penhasco, no belvederezinho aprazível que tem na descida do Vale do Olhar.

Foi um momento de infinita angústia, nem queira saber. Cansei de ser gente (o menino que eu era!). Os tristes apressamentos. Cada coisa que se faz na vida.

Nunca quis morrer de verdade. Queria um pouco só, pra sentirem pena. Quando vi o que tinha feito, já era tarde. Agora só existo no oblívio.

Aqui em Passo dos Ausentes todos me aceitam do meu jeito neblinoso, não se incomodam com o lusco-fusco que eu sou. O interrompido. O volátil.

Na dimensão esvoaçante e nevoenta, tudo é muito em paz, mas é uma paz cinza e sozinha.

Escrevo esse breve apontamento na mesa perto da janela que dá para o Vale do Olhar, no Café dos Ausentes, na estação de trem abandonada.

Observo o vento nas palmeiras da tarde gelada de maio. Meu amigo Juan Niebla, músico cego, com seu bandoneón na gare vazia e silenciosa, espera um trem de passageiros que não virá. Agora está tocando As Quatro Estações Portenhas, do Astor Piazzolla.

O último trem partiu faz muito tempo. Esqueceram de desligar a esperança no coração do Juan. Feliz dele assim.

Só a música é eterna. O resto é bruma.

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Heitor dos Crepúsculos é fantasma e poeta em Passo dos Ausentes.
Texto revisto, publicado antes em 30 de maio, 2011.

terça-feira, 29 de abril de 2014

A invasão dos balões misteriosos

Jorge Adelar Finatto

photo de balão*


Um estranho balão singrou os ares e montanhas de Passo dos Ausentes em junho de 2010. O fato provocou um grande alvoroço na pequena cidade. Não estamos acostumados com coisas voando por cima das nossas cabeças.

Porém, o que no início foi motivo de admiração e espanto, depois tornou-se razão de preocupação.

Outros balões e dirigíveis, de cores e formas variadas, passaram a cruzar, nos últimos tempos, nosso espaço aéreo, vindos sabe Deus de onde. Demoram-se em voos lentos e circulares, a observar-nos sem a menor cerimônia, e depois desaparecem pelos lados do Contraforte dos Capuchinhos.
 
As aparições misteriosas dos aerostatos começam a causar apreensão, principalmente entre os fantasmas, que transitam livremente pelas nossas ruas, habitam os sótãos, telhados e as copas de árvores. Eles vivem por aqui desde tempos imemoriais sem ser incomodados. Sempre conviveram bem com os vivos. Se forem descobertos por olhos indiscretos, seus dias entre nós estarão contados.

Palomar Boavista, astrônomo-mor, e Claudionor, o Anacoreta, foram convocados para explicar as possíveis razões das incômodas e coloridas visitas, em reunião extraordinária da Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Geológica, Astronômica, Teatral e Antropofágica de Passo dos Ausentes, que tem na presidência Don Sigofredo de Alcantis, o velho filósofo guardião da nossa memória.

Somos uma cidade invisível a 1800 metros de altitude na região serrana a nordeste do Rio Grande do Sul. Condições atmosféricas intratáveis nos isolam do resto do mundo, desde que por aqui chegaram nossos antepassados, um grupo de índios guaranis e padres jesuítas que conseguiram fugir e sobreviver à destruição dos Sete Povos das Missões, levada a cabo por exércitos espanhóis e portugueses no século XVIII. Os sobreviventes fundaram Passo dos Ausentes em 1759.

Lugar íngreme, difícil de sair e mais ainda de chegar, está situado no topo de antiquíssimo maciço de montanhas de rude basalto na Serra da Ausência.

O açoite implacável dos ventos nos fustiga o ano inteiro.

Vivemos na região conhecida pelo nome de Campos de Cima do Esquecimento. Não estamos no mapa do Rio Grande do Sul (nem ao menos um pontinho).

Não existimos oficialmente. Tramita um processo junto aos órgãos da administração do Estado, desde o ano de 1805, no qual pedimos o reconhecimento da nossa comunidade, com sua história e cultura, e a inclusão nos mapas.

As respostas sempre foram negativas. Dizem que não há provas concretas da existência desse lugar e menos ainda de que aqui vivem pessoas. Não fosse patético, seria cômico. 

photo de balões e dirigíveis. autor: Jean-Pierre Clatot (AFP)

Nos tomam por seres imaginários, de tinta e papel. O governo mandou, no passado, duas expedições para nos localizar, uma em 1936 e outra em1989, isso depois de muita insistência de nossa parte.

Ao comando de geógrafos e historiadores de gabinete e muy pouco engenho, as tais expedições perderam-se no caminho, desistiram e foram embora.

O lugar é quase inacessível devido à acidentada topografia que envolve os imensos paredões de basalto, cobertos de verde mata, córregos e pinheirais. Além das névoas eternas, as chuvas recorrentes e o frio intenso nos separam do mundo dos vivos lá embaixo.

Claudionor e Palomar, após alguns dias de estudos e observações, expuseram à ansiosa assistência as duas prováveis explicações para os balões e dirigíveis.

Com voz grave e pausada, Palomar disse que a primeira hipótese é a de que estamos sendo visitados por seres de outro planeta, que consideram Passo dos Ausentes a melhor porta de entrada na Terra, um lugar invisível que não chama de ninguém a atenção.

- A segunda, menos plausível - acrescentou Palomar, figura magra, alta e de farta barba branca -, é que se trata de observadores aéreos do governo para nos localizar. Diante do fracasso das expedições terrestres do século passado, estariam enviando novas equipes para investigar. Essa hipótese beira a quimera, diante da incompetência e desinteresse dos homens que dirigem o Estado, ontem como hoje.
Don Sigofredo de Alcantis após tomou a palavra. Para ele, a primeira explicação seria a menos perigosa.

- Se forem seres de outra esfera cósmica, não haverá qualquer problema ou dificuldade, porque alguns esquisitos a mais por aqui não vão fazer a menor diferença. Estamos habituados a toda sorte de estranhamento. Mas se for gente do governo querendo nos espionar, aí tudo de ruim pode acontecer. No dia em que o asfalto e a política chegarem a Passo dos Ausentes, será o nosso fim. A invisibilidade ainda é a nossa melhor arma contra o desaparecimento.

O silêncio que se seguiu fez com que se ouvisse o espesso rumor do vento nas folhas das altas palmeiras da Praça da Ausência.

Para espantar o frio e os arrepios interiores, Mocita de La Vega, secretária-geral e musa amantíssima dos bardos presentes, serviu-nos seu licor de leite com noz-moscada.

Somos poucos. Somos invisíveis. Não nos vêem e não nos sentem. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.

Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade, executou Adios Nonino, de Astor Piazzolla, ao final da sessão. Com tanto sentimento que até mesmo Claudionor, o Anacoreta, não pôde evitar o brilho de uma lágrima.

photo: j.finatto
 
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Outras referências de Passo dos Ausentes:
Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html
A cidade perdida: as origens
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/09/cidade-perdida-as-origens.html
A misteriosa expedição da Nasa a Passo dos Ausentes:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/08/misteriosa-expedicao-da-nasa-passo-dos.html
A viagem do balão vermelho:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/06/viagem-do-balao-vermelho.html
*O crédito da photo do balão será dado quando conhecida a autoria
Texto revisto, publicado originalmente em 9 de julho, 2010.
 

sábado, 18 de janeiro de 2014

Milonga del Ángel

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto

 
Habitamos entre nuvens. Os ventos nos açoitam aqui nos Campos de Cima do Esquecimento em sua louca debandada em direção ao sul do continente. 

Juan Niebla fez o convite para ouvi-lo tocar seu bandoneón. Estamos agora na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. O concerto intitula-se Milonga del Ángel, música de Astor Piazzolla, leitmotiv da reunião.
 
Talvez porque hoje é sábado, e domingo costuma ser um dia agonizante, celebramos a vida escutando músicas que tocam fundo nosso coração.

Niebla é cego, guardião da memória da cidade junto com Don Sigofredo de Alcantis.

Estamos no Café dos Ausentes que é o que restou da velha estação. Fechamos os olhos, sentimos  a melodia que emana dos dedos magros e ágeis.

As mãos do cego apalpam o invisível, ressuscitam sonhos e emoções.

Iniciamos a nossa charla após o concerto, como de costume.
 
Diz Niebla:

- Imaginem uma cidade espiritual, em que os ancestrais vagueiam em silêncio pelas casas e ruas, vivem nos antigos retratos, nas cartas guardadas no fundo de gavetas, sobrevivem na memória dos poucos que ficaram. Isso é Passo dos Ausentes.

- Para onde nos levam os caminhos entre as estrelas, Juan? - indaga Don Sigofredo, piscando o olho em minha direção.

- Não pense que não percebi a piscadela, quimérico amigo. Nunca duvide das antenas deste velho morcego. Mas já que pergunta, na verdade não sei aonde levam aqueles caminhos. Tu és o filósofo, esforçado tradutor do intangível.

- Sou só um cego numa estação de trem abandonda esperando o comboio fantasma que vai levar-me um dia por trilhos desconhecidos. Por enquanto é música e é fraterno encontro, estamos todos vivos, graças a Deus.

- Também ando pela vida à procura de respostas -, continuou Niebla. - Ouçamos o que nos disse o nunca suficientemente lembrado poeta e filósofo Hölderlin, no seu Fragmento de Hipérion*:

"Interrogo as estrelas e elas permanecem mudas. Interrogo o dia e a noite, mas eles não respondem. De mim mesmo, se me interrogo, entoam apenas sentenças místicas, sonhos sem interpretação".

A solidão é o que mais nos aproxima nessas reuniões. Estamos sós na beira dos penhascos. Caminhamos para o oblívio nesse esquecido fim de mundo.

Acreditamos em anjos, nos consolamos. Entre nuvens.

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* Hipérion ou O Eremita na Grécia. Friedrich Hölderlin. Tradução, notas e apresentação por Marcia Sá Cavalcante Schuback. Forense, Rio de Janeiro, 2012.

Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo desde 1940, na estação de trem abandonada da cidade. Tem 89 anos, é cego desde os 15.

A cidade perdida: as origens:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/cidade-perdida-as-origens.html
 

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Um fantasma quer conversar

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Olha só pra mim. Quem me dera. Eu vivo no sumiço. Vento de maio me leva por diante.

Alberta de Montecalvino, a dama deste não-lugar, foi quem me deu a idéia de visitar esta efêmera página virtual.

Sou um dos fantasmas de Passo dos Ausentes, a cidade perdida nos Campos de Cima do Esquecimento, na serra do Rio Grande do Sul. Me chamo Heitor dos Crepúsculos.

Escrevo essas linhas sem muita fé de ser lido. Meu amigo Juan Niebla diz que escrever num blog é escrever na água.

Eu não ligo, sou só de passagem, não tem importância, nada tem muita importância. Não tenho ideia de permanência, compreende? 
 
- Escreve alguma coisa, Heitorzinho. Te mostra um pouco, meu querido. Entre os mortos-vivos dessa cidade, és um dos mais sentimentais e engraçados - disse Juan, tocador de bandoneón da estação de trem abandonada.

Não pretendo me dar ares de escritor. Sou, talvez, um escrevedor póstumo, alguém que publica suas histórias no vento. Não escrevo, claro, pra publicar em livro. Olha só pra mim. Não tenho mais a literária vaidade.

Passou o tempo e me levou.

Eu era poeta. Sempre vivi dentro do nevoeiro. Conversava, e às vezes me desesperava, com a folha em branco. As danações do criador.

Depois atravessei a ponte, depois vim para o invisível. Saí do mundo aos 27 anos por vontade própria. A vida era insuportável, não via saída, a esperança não entrava na minha alma. Eu poeta trevoso.

Quem me vê hoje, pode dizer sem engano: ali vai o arrependido.

Apareço e desapareço, tenho as superiores autorizações. Um fantasma é um ser virtual. Ora está, ora não está. Às vezes choro de saudade da vida com a cabeça entre as mãos pelos telhados. O menino que eu era quando saltei.

Não moro no pequeno cemitério, porque nunca encontraram meu corpo. Me joguei do penhasco, no belvederezinho aprazível que tem na descida do Vale do Olhar.

Foi um momento de infinita angústia, nem queira saber. Cansei de ser gente (o menino que eu era!). Os tristes apressamentos. Cada coisa que se faz na vida.

Nunca quis morrer de verdade. Queria um pouco só, pra sentirem pena. Quando vi o que tinha feito, já era tarde. Agora só existo no oblívio.

Aqui em Passo dos Ausentes todos me aceitam do meu jeito neblinoso, não se incomodam com o lusco-fusco que eu sou. O interrompido. O volátil.

Na dimensão esvoaçante e nevoenta, tudo é muito em paz, mas é uma paz cinza e sozinha.

Escrevo esse breve apontamento na mesa perto da janela que dá para o Vale do Olhar, no Café dos Ausentes, na estação de trem abandonada.

Observo o vento nas palmeiras da tarde gelada de maio. Meu amigo Juan Niebla, músico cego, com seu bandoneón na gare vazia e silenciosa, esperando um trem de passageiros que não virá. Agora está tocando As Quatro Estações Portenhas, do Astor Piazzolla.

O último trem partiu faz muito tempo. Esqueceram de desligar a esperança no coração do Juan. Feliz dele assim.

Só a música é eterna. O resto é bruma.

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Heitor dos Crepúsculos é fantasma e poeta em Passo dos Ausentes.