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sábado, 16 de agosto de 2014

A crônica de Nelson Rodrigues

Jorge Adelar Finatto

Nelson Rodrigues


Ah, é problemática a sorte de um velho "reaça", como me chama o Hélio Pellegrino.
                                                  Nelson Rodrigues
 
Um livro tem me cativado nos últimos tempos. É O óbvio ululante: as primeiras confissões, de Nelson Rodrigues (1912 - 1980). Foi publicado em 2007 pela Editora Agir. Não conhecia o trabalho literário do jornalista, escritor e dramaturgo nascido no Recife. O pouco que tinha visto de Nelson Rodrigues eram alguns filmes feitos sobre suas peças teatrais, e não gostava por me parecerem muito apelativos.
 
Mas bastou ler algumas linhas deste livro de crônicas, de pé na livraria, para ser fisgado por suas boas e saborosas histórias, entregues ao leitor em excelente escrita.

Em suma, descobri só recentemente a qualidade da literatura de Nelson Rodrigues.
 
Um senhor escritor. Não pode faltar na estante (ultimamente é um dos meus livros de cabeceira). As crônicas do Óbvio ululante foram publicadas no jornal O Globo, no período de dezembro de 1967 até junho de 1968, com exceção de duas, publicadas no Correio da Manhã em maio de 1967. Os parágrafos dos textos são numerados, numa espécie de evolução dos temas que vão surgindo.

Conforme diz a nota do editor, Nelson era, naquele época, uma personalidade cercada de frases lapidares por todos os lados.

Observo que ninguém estava livre de ser personagem das crônicas rodrigueanas, o que acontecia com certa freqüência inclusive com seus amigos e colegas. Nomes importantes da cultura e da política desfilam nas suas histórias, tais como Dom Hélder Câmara, José Lino Grünewald, Alceu Amoroso Lima, Olgário Mariano, Carlos Heitor Cony, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Proust, André Malraux e muitos outros.

"Era incômodo ser amigo e personagem do Nelson", afirma Cláudio Mello e Souza no prefácio da obra. E acrescenta:

Fui um deles. Sei do que falo. Tirava-nos de nossas realidades e nos transpunha para a sua imaginação, para o seu palco. Havia carinho? Talvez, mas tão impregnado de ironia que nunca soube, quando citado, se devia me humilhar ou me ofender. "Nem uma coisa nem outra", aconselhava o Otto [Lara Resende]. "Diga-se feliz e lisonjeado. Se reclamar, piora". Mais do que eu, ele sabia do que falava. Segui o conselho e me dei bem.
 
Há intimidade e originalidade na relação de Nelson Rodrigues com as palavras. Não à toa muitas de suas frases tornaram-se memoráveis, a começar pela própria expressão óbvio ululante, por todos conhecida. Muitas dessas criações traçam perfis sociológicos e psicológicos, como ocorre com o famoso complexo de vira-latas, para definir a baixa autoestima do brasileiro.

Mas Nelson não é apenas um fazedor de frases de efeito. Na construção do texto, percebe-se o capricho com que lapida a linguagem e o resultado, em geral, é de expressiva riqueza estética, apesar da circunstância de escrever para jornal.

Destaca-se nessas linhas o observador esmerado da vida, não obstante implacável, às vezes melancólico, às vezes bem humorado, quase sempre irônico, eventualmente injusto no julgamento de pessoas, mas ao mesmo tempo capaz de cálida ternura.

É difícil começar a leitura de uma crônica e não emendar logo em seguida na outra.

Veja o leitor algumas frases:

Para os meus três anos, o mar, antes de ser paisagem, foi cheiro. Não era concha, nem espuma. Cheiro. Meu pai, antes de ser figura, gesto, bengala ou pura palavra, também foi cheiro. Ninguém tinha nome na minha primeira infância. A estrela-do-mar não se chamava estrela, nem o mar era mar. Só quando cheguei ao Rio, em 1916, é que tudo deixou de ser maravilhosamente anônimo.  (pág. 17)

Eis o que eu queria dizer: - para mim, o amigo é o grande acontecimento. (pág. 27)

O ônibus apinhado é o túmulo do pudor. (pág. 33)

A pior forma de solidão é a companhia de um paulista. (pág. 48)

Morte tão leve como a euforia de um anjo. (pág. 107)

Cada época sepulta uns tantos autores. (...) O que envelheceu em Dickens não foi o próprio Dickens. Não. Foi a sua ternura que desapareceu da nossa época. Olhem em torno. Não há mais o terno, o compassivo. Vivemos uma época feroz. (pág. 268)

Fazia um frio de rachar catedrais. (pág. 271)

Este mundo é a casa do ódio. (pág. 319)

Se querem saber, não sei francês. Não sei nenhuma outra língua, além da minha. As coisas só existem na minha própria língua. (pág. 333)

Na Rua do Ouvidor há um ceguinho que toca violino. Seu repertório é um tango único e, repito, sempre o mesmo tango. (371)

Eu me mato, não para pagar as dívidas, mas os seus juros. As dívidas permanecem maravilhosamente intatas. (idem)

São apenas fragmentos recolhidos de um rico manancial. No interior dos textos, na arquitetura com que o autor constrói as crônicas, revela-se o trabalho luminoso.

Nelson Rodrigues é um atento e perseverante leitor de costumes e comportamentos. Analisa com obsessão o modo de ser e a visão de mundo do brasileiro. Nesse caminho foi capaz de compor grandes e reveladoras sínteses.

Ele próprio tornou-se personagem da absurda realidade: tendo falecido na manhã de domingo de 21/12/1980, aos 68 anos, no final da tarde daquele dia Nelson faria os treze pontos da Loteria Esportiva, num "bolão" feito com o irmão e colegas de O Globo...

É por autores como Nelson Rodrigues que a leitura se torna um exercício de encantamento e instigante reflexão. Não podemos passar longe dessas crônicas, sem sofrer irreparáveis perdas.

Ler continua sendo o melhor antídoto para atravessar tempos tão secos e difíceis como estes.

A vida com literatura já é difícil, imagine sem ela...

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O óbvio ululante: as primeiras confissões, Nelson Rodrigues, 445 páginas. Agir Editora Ltda., Rio de Janeiro, 2007. A frase de epígrafe deste artigo está na pág. 271 do livro. 

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Saudade da crônica

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Oceanário de Lisboa
 
Por que se gosta de um autor? Gosta-se de um autor quando, ao lê-lo, tem-se a experiência de comunhão. Arte é isso: comunicar aos outros nossa identidade íntima com eles. Ao lê-lo eu me leio, melhor me entendo. Somos do mesmo sangue, companheiros no mesmo mundo. Não importa que o autor já tenha morrido há séculos... 
                                                                             Rubem Alves*

Como leitor de jornais e revistas, quero partilhar uma falta. Não encontro hoje nenhum grande cronista na imprensa brasileira. Assim como o futebol, a nossa crônica passa por momento de pungente anemia.

O mais que se lê, com poucas exceções, são textos de autoajuda ou de rasa interpretação da realidade, escritos por jornalistas ou escritores que, apesar do esforço, não encontram na crônica sua melhor forma de expressão.
 
O bom cronista, na minha opinião, é aquele cuja arte nos encanta. Sentimos sua falta quando não o lemos. Esse que nos faz sonhar e ver o mundo de um modo diferente. Nele encontramos o prazer da leitura. Um certo mal-estar nos invade na ausência de seus textos.

Quando vou à banca da esquina, hoje, não tenho mais a quem procurar.

O cronista de que sinto falta é o que cultiva a minha sensibilidade, apurando-a. Pela mão dele as pequenas coisas do cotidiano ganham relevo. Ele ilumina a vida comum com sua lente sensível e, assim procedendo, me ilumina. É o artista que sabe ver os fragmentos que fazem da existência esse curioso, difícil e belo caleidoscópio.

Agora, para encontrar um cronista de fé, tenho de recorrer a velhos jornais e velhas revistas, ou aos livros. Menciono alguns deles, mas existem outros: Tarso de Castro, Nelson Rodrigues, Alvaro Moreyra, José Carlos Oliveira, Rubem Braga, Drummond, João do Rio, Rubem Alves (este, infelizmente, falecido no último sábado).

Todos grandes talentos, todos mortos. Os meios de comunicação prestariam um relevante serviço aos leitores se republicassem, de vez em quando, alguns de seus textos. E se os lessem em rádio e televisão.

Estarei exagerando? Não estou fazendo justiça aos cronistas da praça? Caso o leitor conheça algum, terei prazer em registrar aqui a informação.

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Ostra feliz não faz pérola, Rubem Alves, Editora Planeta, pp. 178/179, São Paulo, 2012.