Carlos Alberto de Souza
Retrato de Iberê Camargo, por Graça Craidy; acrílica sobre tela, 2013 |
Nos estertores, ele encontrou forças e deu uma entrevista bombástica, criticando o mundo das artes. Não era homem de tocar nas coisas com a ponta dos dedos nem na hora da morte.
Na condição de jornalista, mantive contato com Iberê Camargo.
Evito dizer "conheci Iberê Camargo", porque poderia estar dando a ideia de uma relação íntima de amizade que não houve.
Volta e meia a redação do jornal de São Paulo pedia ao correspondente de Porto Alegre que ouvisse o artista sobre isto ou aquilo. As pautas não eram exclusivamente relacionadas com as artes plásticas.
Lembro que uma vez o pedido foi para ouvi-lo sobre controle de natalidade. Nunca esqueci a resposta: “É preciso costurar a boceta dessas mulheres”, disse ele, em alto e bom som, ao ruborizado repórter.
Acho que essa declaração revela um pouco da personalidade de Iberê. Ele era franco, direto, intenso, falando ou pintando. Não era homem de fazer média.
No livro de contos que publicou, No Andar do Tempo, ele próprio diz não ser homem de tocar nas coisas com a ponta dos dedos. Lembro ter visto essa frase estampada como epíteto em uma das paredes do Margs no dia do seu velório, em agosto 1994.
O historiador Décio Freitas, amigo do peito de Iberê, contou certa vez que o empresário Jorge Gerdau Johannpeter desejava ter um retrato seu de autoria do artista, depois de se entusiasmar com uma obra do gênero que encomendara tendo a sua mulher como modelo.
Iberê teria recusado a oferta do “rei do aço” sob a alegação de que seu rosto não lhe dizia nada, não lhe causava inspiração e que olhar para ele era o mesmo que olhar para um “ovo”.
Há mais de 20 outonos estive, a trabalho, na casa em que Iberê morou na Cidade Baixa. Era um sábado, a conversa foi no pátio para aproveitar a mornidão do sol da tarde. Havia um fotógrafo junto. Se a memória não falha era Achutti, que muito fotografou Iberê e sua obra, a ponto de editar o livro Iberê Camargo por Achutti.
No fim do papo, em meio às despedidas, Iberê me surpreendeu: “Aparece qualquer hora que vou fazer um retrato teu”. Quem não ficaria seduzido por esse convite?
Mas, constrangido, nunca apareci. E oportunidade não faltou. Como trabalhava no Centro, às vezes encontrava o velho Iberê caminhando pela Rua da Praia, anônimo no meio da multidão.
Em uma dessas vezes, metido em um casacão que lhe dava ares parisienses, queixou-se que um dos efeitos colaterais da medicação à qual estava submetido para combater o câncer era a falta de saliva, e mostrava a boca tão seca quanto a sua Restinga natal. Esses encontros eram fortuitos, mas havia afetividade neles.
Estive na casa de Iberê no bairro Nonoai, onde ele também tinha o ateliê, nos seus derradeiros dias. Lembro do abatimento de sua mulher, Maria, e da filha.
Nos estertores, ele encontrou forças e deu uma entrevista bombástica, criticando o mundo das artes. Não era homem de tocar nas coisas com a ponta dos dedos nem na hora da morte.
Nos estertores, ele encontrou forças e deu uma entrevista bombástica, criticando o mundo das artes. Não era homem de tocar nas coisas com a ponta dos dedos nem na hora da morte.
Em poucas pinceladas, pela superficialidade da relação que mantive com ele, pinto esse quadro de Iberê, mantendo na memória o que ele pintou de mim naquele sábado outonal, apesar de nunca tê-lo executado por indesculpável omissão do modelo.
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Graça Craidy é publicitária, professora, escritora, artista plástica. Mantém o blog: