sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O homem que tira sentimento de pedra

Jorge Adelar Finatto



Deus está no seixo como está no homem, na nuvem, no vento  e no peixe.



O ser humano pode conversar com pedras. É possível desvelar emoção adormecida na densa concentração de matéria.

À luz da obra escultória de João Bez Batti Filho, as pedras são seres vivos.

As esculturas de basalto do artista conversam com o observador, fazem pensar e comunicam sentimento. São seres falantes que pulsam e querem partilhar beleza. Transcendem a condição de coisa vulcânica, arrepiam-nos ao leve toque.



São rochas que, antes de tornarem-se esculturas e adquirirem vida, dormiam como qualquer outra em remota obscuridade. Agora que nasceram e respiram, têm histórias para contar, e nos contam.

A visão desses objetos de criação nos leva a algumas considerações.

Existem memória e mistério ocultos na profundeza da pedra.

A emoção habita o álgido coração da rocha.

A vida é breve, o basalto é eterno

Uma secreta linguagem irmana Bez Batti e as pedras.

O trabalho paciente do escultor demanda força física para o duro enfrentamento. Com inspiração, ideias claras e perseverança, ele extrai raras revelações.

Ouçamos o que diz Ferreira Gullar: "Em arte, todo fazer é uma aventura imprevisível. Por isso, como o basalto é duro, e o risco, maior, Bez Batti, antes de atacá-lo, desenha a forma que pretende esculpir. Mas com isso não exclui de todo o imprevisível que nasce da resistência da pedra à ação que a agride, embate em que se misturam a sabedoria adquirida pelo escultor e a aceitação do acaso que se infiltra em sua ação".¹

O basalto é a terceira rocha mais dura que há na natureza. Origina-se de antiquíssimos derramamentos vulcânicos.

Egípcios, sumérios e pré-colombianos estão entre os poucos povos que se aventuraram a trabalhar com gravação e escultura em basalto.

O irmão rio
Bez Batti dialoga com as pedras desde a infância, na beira do Rio Taquari, no Rio Grande do Sul, onde vivia com a família.

O menino saía em solitárias caminhadas pela beira do rio (que é uma continuação do Rio das Antas), indo ao encontro dos seixos em suas margens e leito. Atravessava escarpas, sumia na sombra frondosa do arvoredo sobre a correnteza azul.

Nascido em Venâncio Aires (RS) em novembro de 1940, Bez Batti (tem o mesmo nome do pai, um imigrante italiano severo e trabalhador) um dia mudou-se para Bento Gonçalves. Fixou ateliê e residência na Linha São Pedro, numa casa de basalto com mais de cem anos, que faz parte dos Caminhos de Pedra, itinerário cultural onde se documenta a história da imigração italiana.





Desde então nunca ficou muito tempo longe do Rio das Antas. E quer que suas cinzas sejam espalhadas sobre as águas no dia em que morrer.

O Rio das Antas, essa criatura murmurante que caminha pela Serra do Rio Grande do Sul desde o início dos tempos.

O rio e seu ambiente ocupam o centro das preocupações ecológicas de Bez Batti. Há alguns anos administradores públicos vêm ali desenvolvendo projetos de engenharia, envolvendo represamento de águas e instalação de usina elétrica. Estas obras estão alterando a conformação do leito, submergindo áreas onde antes se podiam ver corredeiras, cristalinos lajeados entre as encostas verdes da mata. O rio escorrendo sobre o basalto.

De tanto conversar com as pedras e as águas, Bez Batti ganhou-lhes a confiança. Tornaram-se conviventes.

Os pequenos seixos e os altos penedos confidenciam-lhe coisas.

Falam de um tempo ancestral em que o Rio das Antas era um lugar povoado de claridade. Nele homens, bichos, plantas e pedras viviam em harmonia. Entendiam-se através da língua da intuição, do toque, do olhar demorado, da conversa, do respeito.

As esculturas do artista nos remetem ao encantamento de formas silenciosas, poéticas, sensuais. As saliências e concavidades nos levam à aurora da criação do mundo.

A arte africana toca o escultor muito de perto. Também marcam sua sensibilidade artistas como Pablo Picasso, Amedeo Modigliani, Constantin Brancusi, Henry Moore, e a arte antiga.

Basalto sanguíneo e o Arroio Tega

Em suas longas caminhadas pela natureza (ele não dirige, alguém o leva até os lugares de observação, pesquisa e meditação), descobriu novas faces, formas e cores do basalto. Segundo afirma, Caxias do Sul está erguida sobre uma das mais impressionantes províncias minerais de basalto que se tem conhecimento. Provavelmente não existe outra região com essa característica.



Além do basalto cinza, o mais comum de todos, ali se encontram inusitadas rochas de cor verde, verde-oliva, cacau, negra, rosa.

O basalto sanguíneo é resultado da persistente procura de Bez Batti. Identificou-o pela primeira vez no leito do Arroio Tega, que atravessa Caxias do Sul. Uma pedra tão bela quanto rara. O escultor acredita que, pelas evidências que colheu até hoje, o sanguíneo só existe no leito do Tega.

O encantador de pedras

Bez Batti é este artista que ousou abrir portas para uma maneira diferente de fazer escultura. Pagou um alto preço por isso. O caminho foi duro como um paredão de basalto.

Onde só havia rigidez mineral e o peso abissal da noite de milênios ele encontrou delicadeza e sentido.

Só um homem obstinado pela vida e pela beleza, absolutamente devotado à sua arte, poderia atingir os resultados que Bez Batti alcançou. Isto depois de enfrentar todas as incompreensões, limitações materiais e espirituais que o nosso meio costuma impor àqueles que se arriscam pelos caminhos da arte e da sensibilidade.




Ele nos mostra que existe beleza em estado bruto, esperando quem a desvele. E comprova, com seu ofício, que é preciso trabalhar muito para merecer o belo.

O senhor das pedras é também o homem da fé inabalável no trabalho. Nunca esperou apoios e estímulos, infelizmente quase inexistentes.

Construiu com as mãos uma arte inaugural.

Um encantador de pedras, ele diz que gostaria de ser (e é).

Bez Batti consegue extrair claridade do elemento mais primitivo que existe na natureza.

O que acontece com as rochas nos interstícios, nos poucos momentos de descanso do escultor? Elas se calam, retornam ao estado inanimado, por falta de seu poeta.

A arte, caminho para a iluminação

O que será o trabalho de uma vida senão esse lapidar constante sobre nossas imperfeições?

Ninguém nunca está completo. Ninguém é um bom ser humano por acaso.

Há que pegar o cinzel e reconstruir o homem e a mulher. É preciso reinventar a vida.

Sim, de toscas pedras podem brotar preciosos pássaros, plantas, frutos, cabeças humanas, torsos, semblantes, nichos, naturezas vivas, maternidades, segredos, tartarugas, peixes, rios, abstratos jardins.



Das mãos e da obstinação de Bez Batti nasce a maravilha. 

Até Bez Batti ir viver na beira do rio, ninguém conversava assim com os seixos e as rochas. Ninguém saía a andar pelo mundo armado apenas com o coração e a força do invencível cinzel.

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1. Uma poética do basalto. Texto de Ferreira Gullar no livro Bez Batti - Esculturas, do Instituto Moreira Salles, São Paulo, outubro de 2006.

2. Crédito das imagens:  1 - A foto de Bez Batti é de autoria de Ricardo Chaves. 2 - As fotos das esculturas são de Valdir Ben, que acompanha o escultor há mais de trinta anos; algumas delas estão publicadas no portal Artista Net.   

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Ilha de San Michele, ilha dos mortos


Jorge Adelar Finatto


vitrine veneziana. photo: j.finatto

A Ilha de San Michele repousa serena diante de Veneza.

Não devemos perturbar o sossego de seus habitantes. Na gôndola em que navegamos em torno desse território calado, nada deve ser ouvido além do remo na água verde-safira. Entre os altos muros de ocres tijolos, à sombra de ciprestes, os mortos descansam na antiquíssima ínsula.

San Michele é um pequeno pedaço de terra no Mar Adriático, mas é, acima de tudo, uma metáfora.

A ilha dos mortos tem o olhar voltado desde o exílio para a República Sereníssima.

Ilha de San Michele, ao fundo. photo: j.finatto

A ilha-cemitério é um testemunho da brevidade humana e um alerta contra as vaidades do mundo.

Façamos silêncio, portanto, nessa viagem pelas cercanias de lugar tão despojado.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Borges e a névoa do tempo

Jorge Adelar Finatto




Gradualmente, o aprazível universo o foi abandonando; uma insistente névoa apagou as linhas de sua mão, a noite se despovoou de estrelas, a terra era insegura sob seus pés. Tudo se afastava e se confundia. Quando soube que estava ficando cego, gritou; o pudor estóico ainda não fora inventado e Heitor podia fugir sem menoscabo. "Não verei mais (sentiu) nem o céu cheio de pavor mitológico nem este rosto que os anos vão transformar." ¹

Jorge Luis Borges

Buenos Aires, calle Tomás Manuel de Anchorena, 1660. Neste endereço está a Fundación Internacional Jorge Luis Borges (http://www.fundacionborges.com/lafundacion/lafundacion.html).

Aqui se encontram objetos de uso pessoal e documentos que pertenceram a Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo, entre eles duas bengalas, manuscritos, fotografias, talismãs, medalhas, títulos, coisas curiosas como uma vestimenta de samurai, e livros, muitos livros, como as primeiras edições de suas obras, e publicações de outros escritores, como Os Lusíadas, de Luís de Camões.

O lugar é silencioso. Os iniciados na obra de Borges vêm a esta casa numa peregrinação em busca da memória do mestre. Querem ver algum sinal, algum vestígio, saber se Borges de fato existiu ou se foi só um sonho sonhado pelo outro Borges, o fantasma que vaga pelos espelhos e bibliotecas.



Na escadaria da antiga casa, paira o seu retrato. A senhora que atende o visitante é atenciosa. Informa que no andar superior será montado, em breve, o quarto do autor de Fervor de Buenos Aires (1923), Historia Universal de la infamia (1935),  Ficciones (1944), El Aleph (1949), Los Conjurados (1985), entre outros. Neste espaço todos os detalhes passam pelo exame da guardiã da memória de Borges, María Kodama,  viúva do escritor.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Cais

Jorge Adelar Finatto



Tem dias em que saímos

com o corpo nu

para alojá-lo na primeira copa de árvore

e chorar longe dos homens


dias em que os desejos

até os mais secretos

sucumbem apagados

na penumbra


tempo de total privação

da carne e do sonho

tardes em silêncio reveladas

intervalo entre dois mundos

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Os fundamentalistas

Jorge Adelar Finatto

 ”Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo? “
Fernando Pessoa, Poema em Linha Reta


Tenho medo de quem nunca duvida das próprias certezas.

A rigidez das mentes e corações é motivo de desolação. Questionar-se sobre o modo de ser e de fazer as coisas, repensar a vida, é exercício de humildade cada vez mais raro.

Estar aberto à dúvida não é fraqueza, mas capacidade de renovação.

Se a dúvida nos leva a continuar pensando e agindo da mesma maneira, está bem. Se não, muda-se.

O fundamentalismo, seja laico ou religioso, não torna as pessoas melhores nem mais felizes. Pelo contrário, espalha sofrimento, terror, morte.

O fundamentalista é dono de verdades absolutas que só ele conhece. Ele é a pérola luminosa que brilha entre os habitantes das profundezas escuras.

domingo, 17 de janeiro de 2010

O retorno dos peixinhos

Jorge Adelar Finatto




Os peixinhos estão de volta. Estavam em férias coletivas.

Regressam ao blog com saudades. Aproveitaram o período de descanso para um breve giro. Viram coisas, andaram pelas ruas das cidades com a chuva, o sol e o vento, aprenderam, procuraram ouvir o máximo possível (eles sempre ouvem muito mais do que falam).

Os peixinhos voltam animados.

Tudo de bom tem o Brasil, dizem eles. Aqui não existe um povo só: todos os povos nos habitam.

Somos o resumo, a mátria (como diz o senhor Veloso) do mundo.

Mas precisamos melhorar muito o lado humano.

É preciso tratar as pessoas como gente no país dos pássaros e das palmeiras.

Entre os dez principais problemas que enfrentamos, os dez primeiros estão relacionados com a corrupção. Depois vem o resto. Isso tem a ver com criação, formação, valores, limites.

Eu aprendi desde muito menino que a regra número um da vida é: se eu me respeito, tenho que respeitar os outros. Eu sou o outro do outro.

Isso não depende de pós-doutorado, e é mais importante do que qualquer título.

Viver, apesar de tudo, é sempre bom, dizem os peixinhos.
E navegar é uma maravilha.
Vamos com o rio.

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Foto: Fragata Sarmiento, Puerto Madero, Buenos Aires. Jorge Finatto
jfinatto@terra.com.br



sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Mario Benedetti

Jorge Adelar Finatto

Mario Benedetti

Não tive a ventura de conhecer pessoalmente Mario Benedetti. Mas pude, como muitas pessoas pelo mundo, travar conhecimento com sua obra. Lê-lo desde a adolescência, em livros comprados com grande sacrifício em sebos de Porto Alegre, era tê-lo como companheiro, caminhando na paisagem gris da cidade.

A morte de Mario Benedetti, aos 88 anos, no domingo, 17 de maio de 2009, em Montevideo, significou uma perda para os que amam a literatura feita com emoção, razão e compromisso. Sentem muito os que veem a poesia como revelação e transcendência. Sobretudo aqueles que não separam a beleza estética de uma ética do respeito ao ser humano.

Os atos de viver e de criar, em poetas como Mario Benedetti, são inseparáveis.

A arte que não busca na vida a sua razão e as suas origens está perdida.

O desaparecimento do poeta deixou o mundo um pouco mais sombrio.

A luz que escorria de seus textos alumiou generosamente a vida de muita gente, nos lugares mais distantes do seu Uruguai (nasceu em Paso de los Toros, em 14 de setembro de 1920).

A força da palavra de Mario Benedetti haverá de sobreviver à extinção física do autor, e continuará a distribuir encanto e consolo.

Os que o conheceram no refúgio da amizade, e mesmo aqueles que apenas o encontraram ocasionalmente, falam de sua bondade no trato pessoal, de sua capacidade de ouvir o outro (aptidão infelizmente quase desaparecida), do bom humor, do calor humano, da revolta contra as ditaduras, da gentileza.

Gentileza, essa outra palavra no rumo do exílio.

Caminhei com Mario Benedetti em diferentes estações da vida, na beira do Guaíba e em bairros como Menino Deus, Centro, Cidade Baixa, Moinhos de Vento, Ipanema. Nos invernos, frequentamos as mesas de cafés noturnos. Partilhamos longas conversas, e a inefável meia taça com pão e manteiga. Amizade espiritual, é certo, mas nem por isso menos verdadeira. Essa que reúne pessoas que nunca se viram em torno de um texto, pedaço de vida pulsante.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Obelix e a Bachiana nº 5

Jorge Adelar Finatto


A arte é também um modo de conhecer o mundo sem sair de casa.

Através da convivência com os bens culturais visitamos lugares estranhos, distantes, a começar pelo mais desconhecido de todos: a alma humana.

Há cidades que têm fundações mais sólidas na cultura do que nos alicerces de suas vestustas construções.

Paris é uma cidade espiritual. Habita a nossa memória afetiva mesmo que nunca tenhamos ido lá. Muito tempo antes de conhecê-la, eu já transitava por suas ruas, frequentava seus cafés, salões, navegava nos barcos do Sena, através das páginas de seus escritores e poetas. Conheci o íntimo da cidade do espírito e das luzes nas obras de gente como Balzac, Victor Hugo, Rimbaud, Rosseau, Anatole France, Jacques Prévert, Alexandre Dumas, Verlaine, Baudelaire, Montesquieu, Foucault, Sartre, Voltaire. Também seus pintores abriram portas na minha sensibilidade: Van Gogh, Renoir, Cézanne, Seurat, Monet, Picasso, Modigliani, Chagall e tantos outros.

Aquele foi um dia de viagem. Tinha chegado há poucas horas da Itália. Estava cansado e feliz por retornar ao Quartier Latin. Saí do hotel ao lado da Praça da Sorbonne, na frente da velha universidade. Desci a pé o Boulevard Saint-Michel, quase vazio àquela hora da noite, em direção à catedral de Notre-Dame. Na esquina das ruas Galant e Petit Pont, encontrei o pequeno e acolhedor restaurante Aux Trois Maillet. Enquanto olhava o cardápio, duas mulheres acercaram-se do piano. Uma pianista e uma cantora lírica, esta com traços orientais. O homem que aparentava ser dono ou responsável pelo estabelecimento também era de origem oriental. Todos falavam a língua de Édith Piaf com desenvoltura.

As artistas iniciaram, então, um belo recital. O repertório era encantador. Para quem, como eu, vinha exausto, ouvi-las naquela noite de sábado era um alento.

Alfonsina y el mar

Paulo Fabris
Médico e escritor, Porto Alegre




Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui foram, segundo o maestro Júlio Medaglia, os representantes maiores daquilo que se convencionou chamar latinidade. Os dois cantavam com clareza, simplicidade, exatidão, transformando todas as canções em hinos sinfônicos, folclóricos, coletivos. Quem não lembra de Gracias a la vida, Volver a los 17 e Alfonsina y el mar?

Alfonsina, por sua vez, foi uma personagem real e única: nasceu na Suíça, filha de pais ítalo-argentinos, mas com apenas 10 anos de idade vivenciou o fracasso econômico, a doença e a morte do pai e daí em diante todas as dificuldades que levaram a que abreviasse a sua infância; teve então que trabalhar como costureira e operária, até que conseguiu ser aprovada em concurso para professora rural.

Mais tarde fugiu da província com a companhia teatral de José Tallavi, engravidou e teve seu único filho em Buenos Aires. Depois viajou pela Europa, conheceu artistas de vanguarda, escreveu, apaixonou-se e sofreu as dores de muitos amores. Estudiosos da literatura a comparam a Gabriela Mistral, poeta chilena e primeira latino-americana a receber o Nobel de Literatura (em 1945).

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

As amargas, não


Alvaro Moreyra





Agora é tempo de voltar. Para onde? Naturalmente para o céu, onde os anjos, irmãos remotos, que não desceram à terra, estão com a mesma infância e as mesmas asas. Eu não levo as asas com que vim. Desmanchei-as pela estrada. Levo as penas que sobraram. No percurso às avessas, encontro “um certo reino à esquina do planeta”. Dele recebi as primeiras imaginações. Descanso junto das sombras que me formaram assim, uma espécie de exilado. Se eu quisesse confessar do que fui construído, teria que dizer: de alguns poetas de Portugal e de alguns jesuítas de todo o mundo. O resto foi ornato. Bastante me pintaram. Bastante me rebocaram. Fiquei intacto sobre os velhos alicerces, no mesmo pé direito, com o estilo primitivo, de janelas abertas para a luz e para o ar.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Navegador de barco de papel

Jorge Adelar Finatto





O pequeno barco feito com folha do caderno escolar levanta âncora no bolso do homem sério e triste.

Um homem circunspecto, com tantos casos para decidir.

Quem o vê saindo assim para o trabalho, de manhã cedo, terno, gravata e pasta, não imagina o que leva no coração.

Olha o mundo através das grossas lentes dos óculos, carrega perplexidades e sonhos que ninguém percebe.

O barco de papel desliza entre as vagas do dia pesado e cinza.

O navegador sonha a fuga do real, ao avistar o Guaíba da janela do gabinete.

A cidade vive dentro do rio uma existência invertida. No fundo das águas habitam seres harmoniosos, os gestos são calmos, existe esperança.

O navegador planeja o exílio do mar de conflitos e sofrimentos em que mergulha todos os dias.

No fim da tarde, caminha até a beira do rio, retira o barco do bolso, solta-o na água. Larga a pasta, tira a gravata, o casaco, os sapatos, empurra a embarcação e salta para dentro.

Sobre Maria João Pires


José Saramago


Maria João Pires não teve muita sorte com o país em que nasceu. Sessenta anos de carreira (e que extraordinária carreira a sua) justificariam uma homenagem de âmbito nacional capaz de expressar a nossa gratidão por pisarmos o mesmo chão e respirarmos o mesmo ar. Não será assim, pelos vistos, ainda que não lhe venham a faltar na terra portuguesa outras manifestações de admiração e respeito. Foi em casa de uns amigos que a ouvi pela primeira vez, quando ela não passava de uma adolescente que, com o seu frágil corpo, mal parecia haver saído da infância, e que me fez temer se os braços e as mãos lhe chegariam para enfrentar-se ao gigantesco teclado. O piano familiar, vertical, talvez não estivesse em perfeito estado de afinação, mas as primeiras notas saltaram límpidas, cristalinas, dando-me a sensação, não de serem a mera consequência do choque dos martelos com as cordas, mas de haverem brotado directamente dos dedos da própria pianista. Foi o meu baptismo na arte de Maria João Pires. Depois, ao longo dos anos, sempre que ela, já viajante emérita, aparecia por Lisboa a dar os seus recitais, eu lá estava, rogando às potestades celestes que a protegessem do mau-olhado, de um simples sopro de ar que a perturbasse. Talvez por efeito das minhas petições e do crédito que tenho no céu, todos os concertos e recitais de Maria João Pires a que assisti chegaram felizmente ao seu termo. Desta vez, por razões de distância e também de saúde, não poderei estar presente, dar palmas e beijar as suas mãos tão cheias de música, de humanidade, de beleza. Por tudo o que me fez ouvir e sentir, Maria João, obrigado.


Eunice Muñoz lê o texto "Sobre Maria João Pires":

http://caderno.josesaramago.org/wp-content/uploads/2009/11/maria_joao_pires2.mp3

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O Caderno de Saramago. Texto de 09/12/2009

http://caderno.josesaramago.org/.

Fundação José Saramago

http://www.josesaramago.org/

A grafia é a de Portugal.

ermo. Devez, por razões de distância e também de saúde, não poderei estar presente, dar palmas e beijar as suas mãos tão cheias de música, de humanidade, de beleza. Por tudo o que me fez ouvir e sentir, Maria Jo