sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Velas e remos

Jorge Adelar Finatto


Tem livro novo na praça. É um livro diferente porque as páginas ainda estão em branco. No lugar do nome do autor, aparece o teu nome. A história está por ser escrita. As imagens, cores, tipo de papel, formato da letra, colofão, são as nossas escolhas que  os definirão.

Com nossas velas e remos (velis et remis), encontraremos o amanhecer.

Espero que os queridos leitores escrevam belas histórias de vida em  2011. Um tempo de luz, bondade e saúde é o que desejo a todos.

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Foto: J. Finatto. Céu de Passo dos Ausentes, dezembro, 2010.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Bibliotecas

Jorge Adelar Finatto



Tantos livros me assustam
trago uma ignorância milenar
guardada num lugar claro do meu ser
uma ignorância - ou a sabedoria -
do sol às 7 da manhã

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

Foto: J. Finatto

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A carta

Jorge Adelar Finatto


O carteiro trouxe
muitas notícias
menos aquela
que ia me salvar

esperei dias
                 meses
                           anos
por urgentes palavras
que nunca chegaram
e se viessem
mudariam
a biografia

perdi tempo precioso
aguardando a mensagem
que nunca se confirmou

poucas palavras
dizendo o essencial

a carta que não recebi
extraviou-se no mar
na mão do náufrago
distraído

não cumpriu o destino
de salvar do extermínio
a esperança vazada
em silêncio
a juventude que se perdeu

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Poema do livro O Fazedor de Auroras. Instituto Estadual do Livro, Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

domingo, 26 de dezembro de 2010

Convivência e livros na parada de ônibus

Jorge Adelar Finatto


O nosso erro é que temos delegado nossa felicidade para os governantes, para o time de futebol, para os espetáculos, para a loteria, para esse outro que fará por nós as indispensáveis e inadiáveis mudanças que precisamos construir.

 A rua é lugar perigoso.

Os espaços públicos, em Porto Alegre como em outras cidades brasileiras, são sinônimo de insegurança, violência, medo.

As pessoas acautelam-se de sair à rua. Esse território que era de todos passou a ser área de livre circulação de gente que comete toda sorte de atos contrários à vida em sociedade.

Ninguém, em sã consciência, sai à rua sem temer por sua segurança e pela segurança das pessoas que ama. Estar fora de casa, longe do abrigo provisório, significa entrar na zona de conflito. Vivemos lutas encarniçadas, no trânsito e na selva do cotidiano, que ferem e ceifam vidas todos os dias.

A nossa alegria de viver se empobreceu, porque não há viver que não seja conviver.

Antigamente, era comum ocupar as calçadas. As pessoas colocavam cadeiras na frente da porta e aproveitavam para conversar, saber do outro, as crianças brincavam, e todos conviviam. Festas juninas e carnaval aconteciam no meio da rua. Essas cenas urbanas desapareceram.

A cidade, porém, possui reservas de vida.

 Surge um oásis simbólico no corpo ferido da cidade.

Instalou-se em Porto Alegre, por esses dias, o projeto Estante Pública em paradas de ônibus. Criação de artistas do grupo Estúdio Nômade, a ideia foi premiada pela Funarte.*

A parada de ônibus - que costuma atrapalhar o bom humor das pessoas, pela espera em situação de desconforto, pelo movimento atordoante da rua, pela falta de educação dos condutores de veículos - ganha vida com a iniciativa.

Um lugar inóspito, sem atrativo, no qual, normalmente, as pessoas não têm face, transforma-se num recanto interessante. Os livros ali estão ao alcance da mão de quem quiser ler. Poemas, crônicas, contos, novelas e outros incorporam-se através de doações espontâneas.

A inusitada visão dos livros provoca emoção. Faz com que, anônimos passageiros em trânsito, nos sintamos melhor, conversemos, quem sabe até troquemos endereços de e-mail.

Muito além de ser uma pequena biblioteca ao ar livre, sem nenhum tipo de vigilância, a estante pública torna a parada de ônibus um lugar de convivência.

A incomunicabilidade do indivíduo abre-se para a possibilidade do encontro.

Surge um oásis simbólico no corpo ferido da cidade. Pura criatividade.

É preciso investir na convivência humana, numa cidade que vai perdendo gravemente a sua alma.

Penso no quanto precisamos voltar a ocupar calçadas, praças, parques, ruas. No quanto precisamos voltar a conviver e conversar, sem ter vergonha pelo fato de necessitarmos companhia, do olhar de quem está próximo, uma palavra, um sorriso talvez.

As pequenas estantes públicas são enormes em significado. Ensaiam um jeito de mudar as coisas e de sair da escuridão.

O nosso erro é que temos delegado nossa felicidade para os governantes, para o time de futebol, para os espetáculos, para a loteria, para esse outro que fará por nós as indispensáveis e inadiáveis mudanças que precisamos construir.

A cidade pode ser mais bela, mais humana. Ler e conviver faz bem ao coração e à mente.

Espero que permaneça e cresça entre nós essa beleza que é encontrar livros, convivência e consciência em meio à solidão instantânea da parada de ônibus.

A rua é lugar perigoso?

A rua é lugar do bem.

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*Estante Pública: http://estantepublica.com.br/site/sobre-o-projeto/

Foto: vista de Porto Alegre a partir do Guaíba. J.Finatto

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A vida é mesmo amanhecer

Jorge Adelar Finatto


A minha porta nunca se fecha para a dúvida. O que parece definitivo é, quase sempre, e apenas, provisório. As certezas do mundo são verdades passageiras. Estar aberto a mudanças, quando isso é o melhor a fazer, reconsiderar diante  de novas evidências, significa andar pra frente.

Não se trata de mudar ao sabor do vento.  Mas de querer  ser melhor. Como é que um ser transitório, de limitada capacidade de compreensão, pode ter a pretensão de achar que tem a verdade absoluta? Temos a verdade, sim, até que outra mais verdadeira se apresente. A rigidez excessiva não é boa conselheira.

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Agora, por ser Natal e véspera de Ano Novo (fim da linha pra 2010), há esse simbolismo de nascimento, luz e renovação.

Os livros do Novo Testamento têm impressionante significado literário e espiritual. Há força ativa naquelas palavras, além do insuperável valor estético que lhes é inerente. Essa força é capaz de gerar vida (transformação) dentro de nós.

Acredito que todas as histórias, todos os livros, nasceram da Bíblia, de algum dos 66 livros que a compõem. Está tudo lá, revolta, beleza, drama, esperança, luta, justiça. Quantos livros terão a sensualidade, a delicadeza e o trato da palavra de O Cântico de Salomão?

Cristo está acima das religiões (organizações humanas e, como tal, cheias de falhas) e não é monopólio de nenhuma delas.

Que cada um aproveite da melhor maneira esse período e que a bondade, a justiça e o perdão sejam mais que simples palavras em nossas vidas.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Conversa no scriptorium: primeiro ano do blog

Jorge Adelar Finatto


Não alimento a ilusão do devorador de livros. Sou um leitor calmo e persistente. Nem me atenho demasiado ao cânone. Já li muita bula de remédio e texto de pacote de maisena. Pequenas notícias de jornal podem guardar preciosidades. Descobri frases e versos memoráveis em livros considerados menores. Li grandes embromações de autores famosos.

O lugar onde me sinto menos sozinho, nesse velho mundo de Deus, é o território dos livros. Pode ser a biblioteca, a praça, o escritório, o ônibus, metrô, avião ou trem. Muita vida há nas páginas impressas. Uma existência de tinta e papel. Sim, agora chegou também o livro eletrônico. Não digo que dessa água não beberei.

Corações solitários e livros são bons companheiros. Se além do livro a criatura tiver o luxo de um abraço, então é o passeio no paraíso.

Essas anotações vêm à luz do dia bonito que faz hoje aqui. Esse respirar claro. Na rua em frente o flamboyant é todo flor. Nunca nos falte.

Quero compartilhar com você esse dia luminoso. E agradecer o primeiro ano de convivência no blog que hoje se completa.

Uma joaninha marrom com bolinhas brancas resolveu caminhar sobre o teclado. O mínimo que posso fazer diante da doce visita é desligar a máquina.

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Ilustração: Scriptorium, Monk at work. Autor: William Blades (1824-1890). Domínio público. Fonte: Wikipédia.

Livro Europeu do Ano para Roberto Saviano e Sofi Oksanen



O italiano Roberto Saviano foi distinguido com o Prémio Livro Europeu do Ano, na categoria de não ficção, com A Beleza e o Inferno, e a finlandesa Sofi Oksanen venceu na de ficção, com o romance Purge. O júri, presidido pelo escritor e realizador alemão Volker Schlöndorff, decidiu premiar dois livros marcados pela violência que se exerce no norte e no sul do continente europeu. Purge (Puhdistus, em finlandês), editado pela Stock e já distinguido com o Prémio Femina Étranger 2010, relata a violência de que foram vítimas as mulheres estónias durante a ocupação soviética. Filha de mãe estónia e pai finlandês, Sofi Oksanen tem 32 anos e venceu em 2008, ano em que foi publicado o seu romance na Finlândia, os três maiores prémios literários do país, entre os quais o equivalente ao francês Goncourt. O Prémio Livro Europeu do Ano é organizado pela União Europeia e tem como objectivo promover os valores europeus e contribuir para uma melhor compreensão dos cidadãos da União Europeia como entidade cultural. (fonte: Público)

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Publicado por Casa Fernando Pessoa, Lisboa, em 13/12/2010, às 15:39, no seu blog: http://mundopessoa.blogs.sapo.pt/
A grafia é a de Portugal.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Uma gaivota sonha

Jorge Adelar Finatto


A memória da nave se dissolve no ar.
 
Uma gaivota branca e sonhadora pousa no alto do barco à espera da última viagem.

O ofício de esquecer atravessa as fendas de aço.  A embarcação aderna como um peixe que perdeu as asas.

É duro ser capitão de nau tão desolada.

A cor do tempo, marcas de ferrugem. As escotilhas rotas miram o impossível horizonte.

O colorido infantil recorda felizes partidas ao vento.  Imóvel paisagem nas janelas caladas.

O espectro de Ulisses caminha pelo convés.

Há um barco abandonado no cais.

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Foto: J. Finatto. Barco fantasma com gaivota a bordo. Rio Guaíba, Porto Alegre.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Calle de los suspiros

Jorge Adelar Finatto


De não ver os olhos estão vazios.
De não escutar os ouvidos estão ocos.

Um dia encontrei no mapa aquela cidade ao sul.
Nela havia uma rua chamada Calle de los Suspiros.
Um lugar que nasceu num tempo muito velho.

A rua dos suspiros está povoada de passos perdidos.
Os fantasmas ocupam as casas coloniais.
Quem mora na rua dos suspiros?

A moça na janela olha as buganvílias.
O homem que não sai de casa vê seres incorpóreos nos telhados.
A luz das luminárias é amarelo calmo.

À noite se ouve nas pedras a batida de cascos de cavalos que não existem mais.

A rua dos suspiros é um camafeu pregado na alma do tempo.

Os ventos se reúnem na calle antes de sair a galope pelo mundo.

A dor envelheceu nesta rua.
Neste lugar, todos sofrem pra dentro.

Há um salão de baile desabitado com mesas no escuro.
A orquestra foi embora carregando a música e os casais que dançavam.

A rua dos suspiros habita um retrato no oblívio.

Quem chora a essa hora na calle deserta?


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Foto: J. Finatto
Imagem de Colonia del Sacramento, Uruguai.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Cavalo-marinho

Jorge Adelar Finatto


Enquanto meu filho espera
no útero marinho da mãe
eu escrevo um poema
que ninguém lê
entre peixinhos e caravelas

invento uma alegria simples
um jeito novo de viver
e de querer bem

e vou até a janela
até a estrela mais próxima
onde algum homem há de existir
pra repartir comigo esta ternura
enquanto meu filho espera

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

Imagem: Hippocampus Kuda. Autor: Robbie Cada. Obra constituída pelo autor em domínio público. Fonte: Wikipédia.

O menino do poema, que na época esperava no útero materno entre peixinhos e caravelas, hoje completa 29 anos. Ao Lorenzo, pois, renovo estes velhos versos, com a mesma emoção daquele jovem pai  encantado pela chegada ao mundo do primeiro filho.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Partilha do estar no mundo

Jorge Adelar Finatto


As palavras viajam em torno da essência das coisas. Como num velho barco que se aproxima da ilha, e adormece na praia depois de longas voltas no seu entorno, o poeta navega no poema. As palavras tangenciam, quase tocam, mas seu destino é ficar ao largo. Às vezes mais perto, às vezes mais longe do cais. Nunca alcançamos a expressão exata e ideal daquilo que queremos comunicar. Trabalhar com palavras é deparar-se com a impossibilidade da criação perfeita, a partir dos limites da condição humana, da cognição e do sentimento incompletos que temos em relação ao mundo e a nós mesmos. Somos imperfeitos e nossa percepção e nossa fala também o são. Somos parte de um mistério infinitamente maior do que  o cotidiano. Por isso escrevemos tanto e dizemos tão pouco. Por isso falamos durante uma vida e o resultado é tão escasso.

O que não nos impede de empregar todos os esforços na busca da expressão luminosa.

 Se com palavras é difícil viver, sem elas estaríamos condenados à escuridão da caverna.

Cada palavra clara é um fósforo que se acende no breu. Uma maneira de dizer sim à partilha do estar no mundo.

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Foto: J. Finatto

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O violino perdido

Jorge Adelar Finatto


O sentimento que une o músico ao seu instrumento é de puro amor. Um amor incondicional que não conhece rupturas. Nem chuva, nem sol, nem vento. Quanto mais ao desamparo estiver o artista no mundo, tanto maior será o afeto que terá pelo companheiro. Já vi homens e mulheres dormindo em bancos de estações de trem, aeroportos e praças públicas, tendo como única e fiel companhia o seu instrumento. A música é a grande verdade de suas vidas.

O alemão Conrad Muck, 55 anos, é primeiro-violino do Quarteto Petersen, um dos mais importantes conjuntos de cordas da atualidade. Ao retornar de uma viagem à Ásia,  esqueceu seu violino no trem que o levou do aeroporto até a Gare Central de Munique. Construído na Itália em 1748, está avaliado em 1 milhão de euros. O músico sentiu-se mal assim que se deu conta, precisou de assistência médica. Tão logo avisada, a polícia saiu à procura do objeto, que foi localizado no mesmo lugar onde fora deixado. Durante uma hora violinista e violino (foto abaixo) ficaram longe um do outro, uma pequena eternidade.


A violinista Min-Jin Kym (foto ao alto), de origem sul-coreana, nascida em 1978, passou por dor muito maior no início deste mês. Comia um sanduíche num café ao lado da gare londrina de Euston, quando teve seu Stradivarius (de 1696) furtado. O fato ocorreu enquanto foi ao caixa pagar. Ao retornar, não estava mais lá. O violino tem valor estimado em 1,44 milhão de euros. Junto com ele foram subtraídos dois arcos, avaliados em 80 mil euros. A seguradora da artista está oferecendo 18 mil euros para quem fornecer informações que levem à recuperação do valioso instrumento.

Aqui em Passo dos Ausentes estamos torcendo muito para que a bela instrumentista reencontre logo seu Stradivarius,  raro integrante da família dos cerca de mil violinos  fabricados por Antonio Stradivari, em Cremona, na Itália, considerados os melhores do mundo por sua sonoridade  e qualidade únicas.

Don Sigofredo de Alcantis, o maior filósofo vivo de nossa pequena cidade, observa que, se vivo fosse, o célebre detetive inglês Sherlock Holmes, exímio violinista, certamente sairia da ficção onde viveu para recuperar o instrumento e apagar, desta forma, a tristeza do olhar de Min-Jin.*

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Texto escrito com base em notícia publicada no jornal Diário de Notícias, de Lisboa, edição de 10/12/10, e complementado com pesquisa do blog.
Consulte o artigo completo em: http://mail.terra.com.br/95trr/parse.php?redirect=aHR0cDovL2RuLnNhcG8ucHQvaW5pY2lvL2FydGVzL2ludGVyaW9yLmFzcHg/Y29udGVudF9pZD0xNzMxMzc2JnNlY2Nhbz1tJWZhc2ljYQ==

Fotos: Min-Jin Kym (Diário de Notícias). Violino italiano de Conrad Muck (AFP). Violino Stradivarius: site www.stradivariusviolins.org
 

domingo, 12 de dezembro de 2010

A fala de Pedrolino

Jorge Adelar Finatto


Pertenço à ordem dos amorosos sem camélia. Os que amaram e se pensaram amados sem o ser. Os quase. Os que saíram cedo da festa.

A dama. Meu coração perdido no infinito tabuleiro. O mundo é lugar de barbaridades. Dor, dores.

Chamava-se Alberta, Alberta de Montecalvino. Pertencia à nobre estirpe dos Albertos, de Passo dos Ausentes. Foi quando a vida aconteceu.

O sol brilhou entre as nuvens. Iluminou a escuridão da vida minha. O que eu fui.

Estava na janela da mansarda, como sempre, olhando a vida passar. Então ela atravessou a rua. Trazia a sombrinha vermelha. Olhou pra mim e sorriu. Rasgou minha solidão.

Bailei no ar como folha de plátano no outono, lentamente fui cair a seus pés. Desci correndo, pulando os degraus da escada. Segui o inefável perfume. Enfim, alcancei a dama.

Perguntei se podia fazê-la feliz. Sim.

As iluminações. Passamos a frequentar a Praça da Ausência, nas tardes amarelas daquele outono. Um dia peguei-lhe na mão. Meu coração cavalo louco. Não dormi durante três noites.

Alberta meu sentimento. Camafeu cravado na minha alma. Ela me deu o lencinho branco perfumado, a letra A bordada em lilás. Guardei-o num lugar secreto, bem no fundo de mim.

Aqueles eram dias de ora-veja.

A dama, o tabuleiro, eu nunca aprendi a jogar. Não canto outros amores, que não tive, e, se os tivesse, silenciaria.

Então Arlequim apareceu. Os ódios pularam dentro de mim. Arlequim e seus guizos, seus versos de algibeira, sua palavra sem valia, seu alaúde. Arlequim disse coisas, deitou falas, expandiu-se em canções. Antes calasse. Bazófias.

Arlequim se espalha no mundo. Faz ares. Blasona. Explorador de musas, ladrão de amores. Arrebatou o coração de Alberta, os suspiros, até o corpo de violino que eu nunca toquei.

Eu calado sonhador do fim do mundo. Os devaneios da alma. Voltei só pra mansarda. Nem acreditei.

Quem me visse, a face esculpida da dor. Veio o inverno. Invernos.

O vero solitário da rua triste. O que olha a vida da janela. O que foi quase feliz.

O sem camélia.
 
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Imagem: Pierrô (Gilles). Autor: Antoine Watteau (1684-1721). Museu do Louvre, Paris. Fonte: Wikipédia.
Maiores detalhes sobre o drama de Pedrolino em A fala do Arlequim, post de 30/10/10, e Alberta de Montecalvino, post de 8/11/10.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A casa do anjo

Jorge Adelar Finatto


Antes de começar a chover, arredaram uns móveis bem pesados lá no céu. Um barulho espesso e fundo me fez pensar que talvez fosse a mudança de um anjo. Um anjo bom e humano com suas asas de plumas perfumadas, levando seu chapéu, suas estantes de livros, bicicleta, cama, armários.

Um anjo, quando se muda, deve ter muita coisa pra levar com ele: cartapácios com registros, caderno de milagres, álbuns de fotografia das pessoas por quem tem cuidados, pinturas com paisagens dos campos do Senhor.

As roupas do anjo devem ser brancas como nuvem, inclusive as botas.

Gostava que o meu anjo da guarda viesse mais pra perto de mim.

Meu coração anda necessitado de amigo com sabedoria e consolação. Ele podia até ficar morando aqui comigo. Se quisesse, podia subir no telhado, sentar perto da chaminé, lugar calmo e iluminado, de onde se tem uma boa vista do mundo.

O meu anjo da guarda. Há de expulsar a solidão que toma assento na sala. Nunca mais nenhum mal vai me acontecer. Quando de noite o medo se acercar de mim, o anjo me dará sua mão forte. Então eu dormirei como um menino. E vou sonhar outra vez.

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Foto: Colonia del Sacramento. Uruguai. J. Finatto

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O astrônomo do farelo

Jorge Adelar Finatto


O astrônomo do farelo procura a estrela perdida.

Entre o sagrado e o profano da vida pequena, ele busca beleza nas coisas mais simples. Como o explorador de cavernas que, na escuridão e na umidade,  tateia a fresta de luz que o conduz à primeira claridade do mundo.

Um dia - sempre tem um dia - o astrônomo do farelo perdeu a  sua estrela. Era uma pequena estrela azul e brilhante. Era uma estrela risonha, íntima e calma que habitava sua alma.

Quando ele a tocava com a ponta dos dedos, muito suavemente, ouvia a doce e misteriosa música que vinha do seu interior. Um dia, de repente, ela desapareceu.

Por ela, ele se tornou um homem calado e triste.  Um oco cresceu no seu coração. Ele ficou assim, torto no mundo. Passa as noites olhando o céu. Um homem ferido a bordo de uma louca procura.

O homem que perdeu a sua estrela.
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Foto: J. Finatto
Publicado no blog em 1º/8/10

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A travessia

Jorge Adelar Finatto

No fim da tarde, saí com um livro debaixo do braço.  Em direção ao café da esquina (todos os cafés do planeta ficam numa esquina). Ali  tem sempre uma mesa perto da janela, um cheiro de café passado na hora, uma vista bucólica da praça. Mas pra chegar lá é preciso vencer três tristes avenidas. Por elas voam doidos e impiedosos motoristas. Quando cheguei na beira da mais difícil, na saída de uma insana rótula, parou uma caminhonete com duas mulheres. Fizeram sinal para atravessar. Fiquei atordoado. Será isso possível? O normal é ser maltratado, humilhado, quando não atropelado, friamente, nessa vida de pedestre. Não sabia o que fazer. E se, quando estiver no meio da via, o veículo avançar ferozmente na minha direção, tendo eu de correr em desespero até cair? E se, depois disso, as moças fizerem ainda o famoso sinal com o dedo médio ereto, como vou me sentir? Indefeso embora, resolvi cumprir o fado de patético caminhante. Para meu espanto,  elas aguardaram gentilmente a travessia. Naquele momento de  pura epifania, pensei que nem tudo está perdido, o ser humano tem um futuro pela frente, preciso acreditar mais nas pessoas, etc., etc. Pedestre é um ser não apenas acuado como  deveras sentimental.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Monteiro Lobato e Tia Nastácia: a questão racial na literatura

Jorge Adelar Finatto


Fazer um julgamento de Monteiro Lobato como escritor racista, por conta de certas linhas infelizes que escreveu, é injusto com o homem que denunciou resíduos do sistema escravocrata no Brasil do início do século XX, em páginas memoráveis como no conto Negrinha. Se em alguns textos cedeu à tentação racista da época, em outros mostrou-se revoltado contra o racismo e suas mazelas.Talvez a melhor visão seja reconhecer as contradições do autor, procurando examinar o conjunto de sua obra.  O legado literário do escritor, nele incluída a beleza que é Tia Nastácia, merece essa consideração.


As pessoas valem pelo que trazem dentro de si, nos seus valores, sentimentos, no respeito aos outros. Reduzir alguém a preconceitos sociais, raciais e culturais é inaceitável. Representa a coisificação do indivíduo. O ser humano é muito mais do que isso.  

A consciência da sociedade brasileira evoluiu nas últimas décadas. Esse avanço se traduz no ordenamento jurídico, que tem na Constituição Federal de 1988 a mais alta expressão dessas conquistas. O estado democrático, com suas garantias legais, é a melhor arma contra a intolerância e as violações de direito.

Instalou-se, recentemente, um debate público a respeito do Parecer 015/2010, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. O documento originou-se de denúncia feita por um cidadão de Brasília em relação ao livro Caçadas de Pedrinho (1933), obra de Monteiro Lobato (1882-1948). O requerente, funcionário público que faz mestrado em Educação, apontou situações de preconceito e estereotipia racial no livro, envolvendo o negro e o universo africano, a partir de referências à personagem negra Tia Nastácia e a animais como urubu e macaco. 

O parecer do CNE está na internet. Após análise do caso,  o órgão concluiu, entre outros aspectos, pela necessidade de formar professores capazes de lidar pedagógica e criticamente com obras consideradas clássicas, presentes nas bibliotecas das escolas, que apresentam estereótipos raciais. Recomendou que não sejam selecionados livros para o Programa Nacional Biblioteca da Escola que contenham preconceito ou estereótipo racial. Determinou que, se alguma obra selecionada para o PNBE contiver preconceito, será exigido da editora que insira, na apresentação, nota explicativa e informações sobre estudos relativos à presença de estereótipos raciais na literatura. Essa providência deverá ser adotada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho. Além disso, o parecer reforçou a importância de práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial, ressaltando o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas. Devido às fortes manifestações que provocou, o documento será reexaminado pelo CNE em dezembro.

Algumas indagações surgem como matéria de reflexão.

Monteiro Lobato, pelo que escreveu nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, é um escritor racista? A resposta é clara: não. Pelo contrário, é um dos autores mais identificados com a cultura brasileira e sua diversidade. Caçadas de Pedrinho, com a turma do Sítio, é uma bela obra, Tia Nastácia é uma criatura adorável, mulher negra, espiritualmente rica, bondosa, cheia de histórias e uma espécie de guardiã da sabedoria popular.

A outra pergunta: em trechos do livro podem ser identificadas expressões que denotam estereótipo ou preconceito racial? A resposta também é evidente: sim.

Vejamos algumas passagens do livro Caçadas de Pedrinho relacionadas à Tia Nastácia:

"Emília repetiu-a, terminando assim:
- É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém - nem Tia Nastácia, que tem carne preta."

"resmungou a preta, pendurando o beiço."

"Sim, era o único jeito - e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros."

"E você, pretura?" 

"Desmaio de negra velha é dos mais rijos."

Ao longo da obra, há diversas referências a Tia Nastácia como negra e preta. São expressões com carga de preconceito sobre a cor da pele. O mesmo tratamento não é dispensado aos outros personagens. 

Apesar de conter essa linguagem que hoje não mais se aceita, o conteúdo de Caçadas de Pedrinho não é racista, porque não investe contra a etnia de origem africana, não desmerece  a pessoa negra além dessas expressões, nem lhe impõe tratamento infamante, discriminatório ou desumano.

As expressões são, antes, fruto da época e do meio. Lobato não ficou imune. No Brasil com fortes traços escravistas do início do século XX, o tratamento preconceituoso era uma realidade, infelizmente. Caçadas de Pedrinho tem origem no livro A caçada da onça, de 1924. O autor decidiu ampliar a história que foi publicada em 1933 com o novo título.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Um modo silencioso

Jorge Adelar Finatto



O poema é um modo
silencioso
de ser
e dizer
que vim ao mundo
me despedir



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Poema do livro O Habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998. Esses versos foram dedicados ao poeta e irmão Heitor Saldanha.

Foto: Passo dos Ausentes. J. Finatto.

Retratos

Jorge Adelar Finatto



Quem passar por esses dias em Gramado está convidado a fazer uma visita à minha exposição Retratos, que acontece na Cafeteria Bello Gusto, Av. Borges de Medeiros, 2193, centro da cidade. Imagens de Passo dos Ausentes estão lá, pra quem quiser ver, até final de dezembro. A entrada é no amor.


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Foto da exposição: J. Finatto

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Ruminante claro

Jorge Adelar Finatto


Deus me deu esse dia. Me dei a tarde de presente e saí por aí. Nunca vi tão rara composição de cores. A cidade nessa época é um quadro impressionista. Olho as coisas aqui debaixo, tristeza de não ser pássaro. É o que se vê:  luminosa aquarela: verdes, azuis, vermelhos dialogam com rosas, amarelos, brancos, ocres. No itinerário de colinas entre os bairros Moinhos de Vento e Bela Vista, há muita ladeira pra vencer. Jacarandás nas calçadas, buganvílias nos muros. Hibiscos, sim, hibiscos. Do bosque de um desmoronado casarão, escuto velhas conversas de fim de tarde, sob  a invisível pérgula. Os ausentes bebem suco de fruta há pouco colhida. Não vou falar agora do excesso de carros na rua,  do ruído, da fumaça, da fúria dos motoristas. Ninguém vai atropelar esse momento. Prossigo. Lilases flores caídas brilham no chão. Sou parte da aquarela da tarde que declina e nunca mais voltará. Habito o interior dessa misteriosa obra de arte. Do meu jeito: lento, ruminante, claro.
 
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Foto: J.Finatto

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Meus amigos

Jorge Adelar Finatto


Não esqueçam
de me visitar
nas noites
de inverno
quando o medo
cobra caro
e as feridas
não deixam mentir

insolúvel jogo
de espelhos
entre mim
e o que fui

ando bêbado
pela casa
meu coração
é operário
desempregado
com filho pra criar
mulher feia
sem crédito no armazém

me enrosco
em invenções
inúteis
pra repartir contigo
um espaço de ternura

sinto umas
coisas estranhas
caminharem atrás de mim
um cano de fuzil
um casal de velhos famintos
um câncer
e me desagrada não ser
como certos fantasmas

convoco o
silêncio e
suas raízes

inauguro a
manhã

não, eu não sou
uma estrela
um rio
um barco
nada se compara
ao que sinto

preciso todos
ao redor da mesa
principalmente
os desaparecidos
como certos crepúsculos
que a gente vê
fogem e nunca mais

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

Foto: J. Finatto