quarta-feira, 10 de julho de 2019

Um alquimista João

Jorge Finatto
 
João Gilberto. photo: Tuca Vieira, São Paulo 2006.
Wikipédia.
 
 
JOÃO GILBERTO foi um artista raro. A afirmação é clichê, mas um clichê incontornável. Uma notável exceção no mundo da música. Não só pelo talento como pelo comportamento discreto, avesso a badalações, holofotes, polêmicas. Recluso, concentrado no trabalho,  guardava com esmero sua vida privada, fugindo da celebridade.
 
Um criador que deu nova dimensão à música. Com ele o samba ganhou uma graça diferente, com doses inusitadas de silêncio. Saboreava cada palavra, cada acorde. Nada de gritaria. Um dos criadores da Bossa Nova, a música brasileira que o mundo mais conhece.
 
O canto suave, quase um sussurro. O toque personalíssimo ao violão. Tratava o instrumento com a dignidade de um concertista. Com João o violão brasileiro ganha uma nova sensibilidade, conquista outras esferas, à semelhança do que acontece com Villa-Lobos. Cada qual no seu jeito e no seu quadrado.
 
Causava estranhamento ver aquele homem sério, um senhor de terno e gravata, executando peças de música popular, soberbo maestro de si mesmo.
 
Não tolerava gente barulhenta e pouco educada na plateia. Passava pitos quando o ambiente não estava à altura de sua arte. Reclamava do som ruim, do ar-condicionado que desafina instrumentos. Temperamento difícil, obsessivo, nisso parecido com outros gênios.
 
Quando tocava e cantava, João era inventor de harmonias, desbravador de caminhos sonoros, de mundos. Um alquimista no universo da música. O mais rude metal se transforma em finíssimo ouro em sua voz, em suas mãos. 
 
Com os filhos adolescentes Clara e Lorenzo, fui assisti-lo no Teatro do Sesi, em Porto Alegre, no ano 2001. Generoso, prolongou o show muito além do previsto, atendeu pedidos, conversou. Sentiu cheiro de fumaça de cigarro que vinha da parte anterior do palco, indignou-se. O fumante, que permaneceu invisível, tratou de apagar o cigarro e, com o ar limpo, João continuou.
 
Ele lembrou do Guaíba, do pôr do sol de Porto Alegre, da professora Boneca Regina que o tratou como um filhou nas várias vezes em que esteve em sua casa durante os encontros de arte que ela promovia com sua família e amigos. Era 1955, ele contava 24 anos e estava passando uma temporada em Porto Alegre. Morou oito meses no Hotel Majestic, na Rua da Praia, o mesmo onde viveu Mario Quintana, que ele admirava. O antigo hotel é hoje a Casa de Cultura Mario Quintana. 
 
João Gilberto construiu uma obra original, alcançando efeitos incríveis com mínimos recursos. Tal despojamento e excelência só os grandes conseguem. A aparente simplicidade de sua voz e seu violão esconde uma oficina incansável, rigorosa, persistente, como poucas vezes se viu.
 
Morreu João faz poucos dias, em 6 de julho, aos 88 anos, em sua casa no Rio de Janeiro. Retirou-se do palco da vida. A luz do astro apagou-se. Mas há muito ele já era eterno em nossos corações.